3/04/2013

Vonnegut e o tremor de tempo

 

Durante as férias dos meses de Janeiro e Fevereiro, comprei alguns livros em uma loja no centro de Macapá, entre esses livros que, diga-se de passagem, estavam com preços bem acessíveis e, portanto, cabíveis ao meu parco orçamento, encontrei uma obra fantástica de um autor até então desconhecido de mim e de grande parte de meus amigos leitores. O livro do qual estou falando é “Timequake” do escritor Estadunidense Kurt Vonnegut. É uma das últimas produções literárias de Vonnegut - falecido no ano de 2007 em circunstâncias trágicas.


O romance conta a história de um tremor de tempo ocorrido em 13 de fevereiro de 2001 que fez com que o universo parasse de se expandir e regredisse até o dia 17 de fevereiro de 1991. Ao contrário da maioria dos livros e filmes de ficção científica em que os personagens voltam no tempo para mudar seus destinos, em “Timequake” Vonnegut foge a esse clichê e obriga os seus personagens a fazerem as mesmas coisas que tinham feito antes. Dez anos de um completo flash Bach.


         O texto de “Timequake” é recheado de referências autobiográficas, desde o massacre da cidade de Dresden, em 1945, que o autor presenciou, até a morte de seus dois irmãos, Bernard e Allie, e da primeira esposa, Jane, vítimas do câncer. Os principais acontecimentos da vida de Kurt Vonnegut se misturam com o cotidiano dos personagens Kilgore Trout (alter ego do escritor), Monica Pepper, Zoltan Pepper e Dudley Prince; o próprio Vonnegut se torna uma personagem, na medida em que utiliza o enredo para rememorar fatos marcantes de sua existência, com um tom saudosista de quem já está se despedindo



Considero Kurt Vonnegut um escritor de excelência e que, sem dúvida, recebeu a influência de mestres da literatura moderna como Aldous Huxley, George Orwell e outros, todavia a crítica ao progresso tecnológico por parte de Vonnegut é amenizada pelo tom irônico e bem humorado de sua escrita, isso o difere dos escritores acima citados. 



Abaixo segue um trecho de Timequeke:





"Agora imaginem o seguinte. Um homem cria uma bomba de hidrogênio para uma União Soviética paranóica, certifica-se de que ela funcione e, depois, ganha o prêmio Nobel da paz! Este personagem (...) foi o falecido físico Andrei Sakharov.


Ele ganhou seu Nobel em 1975 por exigir que fossem interrompidos o testes de armas nucleares. É claro que a dele já havia sido testada. Sua mulher era pediatra! Que tipo de individuo poderia aperfeiçoar uma bomba de hidrogênio enquanto estivesse casado com uma especialista em atendimento infantil? Que tipo de médica teria ficado com um companheiro capaz de uma resposta como a seguinte?


- Alguma coisa interessante hoje no trabalho, meu amor?

- Hum, hum. Minha bomba vai funcionar perfeitamente. E como você está indo com aquela criança que está com catapora?

            
Andrei Sakharov era uma espécie de santo em 1975, fato que não é mais celebrado agora que a guerra fria terminou. Ele era um dissidente na União Soviética. Clamou por um fim ao desenvolvimento e testes de armas nucleares e também por maior liberdade ao povo. Foi expulso da academia de ciências da União Soviética. Foi exilado de Moscou para uma minúscula comunidade numa região de solo permanentemente gelado.

            
Não lhe foi permitido ir a Oslo para receber seu prêmio da paz. Sua esposa pediatra, Elena Bonner, aceitou o prêmio em seu lugar. Mas, será que não está na hora de nos perguntarmos se ela, ou qualquer pediatra ou médico, não era mais merecedora de um prêmio da paz do que qualquer um que tivesse auxiliado na criação de uma bomba atômica para qualquer tipo de governo, não importa onde?

           
 Direitos humanos? O que poderia ser mais indiferente aos direitos de qualquer forma de vida do que uma bomba atômica?

            
Em junho de 1987, a Staten Island College na cidade de Nova York concedeu a Sakharov o título de doutor Honoris causa. Mais uma vez, o governo de seu país não quis permitir que ele viesse aceitá-lo pessoalmente. Eu fui convidado para representá-lo.

            
Tudo que eu precisava fazer era transmitir uma mensagem enviada por ele: “não desistam da energia nuclear.” Eu a recitei com um robô.

            
Com fui educado! É que isso ocorreu um ano após a calamidade nuclear mais letal que este planeta maluco havia presenciado até então: a de Chernobyl na Ucrânia. Crianças por todo norte da Europa adoecerão ou sofrerão as piores conseqüências nos anos futuros em decorrência daquele vazamento de radiação. Bastante trabalho para os pediatras!"


(Kurt Vonnegut, IN Timequake)

3/01/2013

RESENHA CRITICA Maria, Lzia de, Leitura e Colheita: Livros, leitura e formação de leitores. Petrópolis, RJ: Vozes. 2002.


 
    Se forem verificados os resultados a que chegam à escola, no que toca a alfabetização dos seus alunos, as conclusões seriam as mais tristes que se poderiam prevê, pois as escolas têm lançado mão, ainda na atualidade, de métodos a muito defasados e que não correspondem mais as necessidades dos indivíduos que nela se formam, nem aos anseios do mercado de trabalho.
 
    A escola, com sua forma tradicional de ensino, têm produzido seres humanos incapazes de dar conta das atuais demandas que lhe são conferidas, pois nessa conjuntura o mercado de trabalho exige do individuo que ele seja multifacetado no exercício de sua profissão e que possa, enfim, saber administrar, gerenciar, e, sobretudo, possa saber ler o mundo a sua volta. De acordo com Luzia de Maria (2002, pág. 15)
 
    É necessário interagir com a máquina, inserir dados, reagir conforme as etapas, reagir conforme as etapas do processo, realizar a correta leitura dos elementos apresentados, ter agilidade mental para interferir com rapidez e no momento exato. Enfim para corresponder a complexidade dos novos tempos, é necessário oferecer melhor formação àqueles que vão atuar nessa sociedade.
 
    Diante de tais problemas, quais são os desafios dos atuais educadores para reverter esse quadro? A professora Luzia de Maria, no capitulo de número um, do livro Leitura e Colheita, parece vislumbrar, a partir de uma analise construtivista, alguns resultados que podem corroborar para a melhoria no processo de ensino-aprendizagem da escola atual.
 
    Num primeiro momento a autora faz uma observação bastante salutar, no que toca a necessidade das novas exigências do mercado de trabalho, pois atualmente, entende-se que aquele profissional do passado, que era capaz de apenas operar um mecanismo da produção em série sem compreender todo o sistema ao qual estava ligado, já não mais tem espaço no mercado de trabalho, pois as necessidades do mercado mudaram e com elas mudam-se também a maneira de se formarem indivíduos aptos para o pleno exercício profissional.
 
    No mercado de trabalho do passado as mudanças eram relativamente lentas o que não exigia, por parte do operário, que ele se aperfeiçoasse sempre de uma nova gama de conhecimentos para dar conta de seu labor, mas na era da Revolução técnico-informacional as coisas são diferentes, pois a agregação de novas tecnologias faz com que o operário tenha sempre que lançar mão de conhecimentos com o qual, provavelmente, sequer entrou em contato durante toda a sua vida escolar, nesse sentido, será necessário, de acordo Luiza de Maria (2002, pag. 16):
 
    Construir conhecimentos, não apenas lhes oferecendo condições propicias para tal, mas também priorizando a autonomia enquanto condição essencial para que elas, fora do espaço escolar, dêem continuidade ao processo de aprender.
 
    A autora aponta como uma provável solução para essa problemática o investimento num trabalho maciço de pós-alfabetização, um trabalho que seja capaz de colocar o aluno em contato direto com a palavra escrita, que possa fazer do aluno um produtor de textos e levá-lo a tomar gosto pela leitura e exercer seu autodidatismo em toda a sua plenitude.
 
    Para que a escola possa formar alunos empoderados de autonomia suficiente para buscarem por si próprios conhecimentos necessários a existência, será preciso que professores de todas as séries entendam que ensinar uma criança a ser produtora de textos não significa, apenas, ensiná-la a decodificar o código lingüístico e sim fazer com que ela exercite a sua liberdade de expressão através da escrita e da leitura. Segundo Luzia de Maria (2002, pág. )
 
    Mas do que nunca se cobra da escola que saia da posição de simples “transmissora” de informações e assuma a formação de crianças aptas a construir conhecimentos, não apenas lhe oferecendo condições para tal, mas também priorizando a autonomia enquanto condição essencial para que elas, fora do espaço escolar, dêem continuidade ao processo de aprender.
 
    O posicionamento de Luzia de Maria, a respeito do processo de ensino-aprendizagem, encontra base teórica em muitos autores, dentre eles Jean Piaget, que entende que a produção de conhecimento só pode acontecer, de fato, de houver interação entre agentes cognitivos de leitura e as informações que estão sendo propiciadas aos indivíduos, ou seja, só pode haver aprendizado se o aluno estiver interessado naquilo que lê, ouve ou que escreve.
Maria, Luzia de, Leitura e Colheita: Livros, leitura e formação de leitores. Petrópolis, RJ: Vozes. 2002.
 
    Se fosse possível realizar uma avaliação panorâmica da escola na atualidade a que conclusões se chegaria? Essas conclusões seriam satisfatórias? Se não, quais medidas tomar frente a essas problemáticas? No segundo capitulo do livro Leitura e Colheita a professora Luzia de Maria procura responder a estas e outras indagações que se colocam diante de todos os estudiosos que têm pensado a educação neste tempo presente.
 
    Neste capitulo, Luzia de Maria trabalha a ideia de se repensar a escola enquanto instituição que segue a um determinado padrão, de repensá-la desde sua gênese até a sua atual formação, para enfim, fazer dela um instrumento que potencialize muitas vidas através da inserção de autonomia aos alunos. Sobre a origem da instituição escolar Luzia de Maria adverte:
 
    É bom lembrar que a instituição escola nasceu sob a influência moralista dos eclesiásticos do século XVII, *notadamente marcada por um regime de severa disciplina. Regime que resultou, nos séculos XVIII e XIX, no enclausuramento do internato, submetendo a criança a normas disciplinares cada vez mais rigorosas.
 
    Em seu texto Luzia de Maria se mostra avessa a ideia de que é necessário que haja silêncio em uma sala de aula para que possa haver aprendizado, pois segundo a autora o silêncio advém de uma forma um tanto quanto repressora e intimidadora que está no cerne da instituição escolar e que nada mais é se não o legado triste e cruel da origem moralista da escola.
 
    Para haver aprendizado se faz necessário que haja o diálogo, a discussão, a reflexão e a troca de informações entre professores e alunos e entre alunos e alunos, pois em uma sala de aula aonde o único a exercer o direito de tomar a palavra é o professor, o ensino, então está seriamente comprometido, uma vez que não existe interação e sim somente a imposição de ideias que, muitas vezes, não satisfazem os anseios dos alunos. Sobre o papel do professor na transformação da escola Luzia de Maria (2002, pág. 33) afirma:
 
    Neste sentido, a escola precisa ter professores muito bem preparados, não para que se despejem erudição sobre os alunos, mas que tenham noções acerca de como a aprendizagem se dá, para que, sabiamente e, pacientemente, sejam capazes de ouvi-las. Mais que ensinar, é preciso apenas que o professor não impeça a criança de aprender, que não deixe que se perca, no quotidiano escolar, a curiosidade natural das crianças.
 
    O professor que pretende mudar a realidade da escola atual precisa ter em mente que a educação deve ser um ato de transformação social e de ruptura com as velhas estruturas opressoras do passado, isso se ela possibilitar que se ouçam as vozes dos oprimidos, daqueles a quem o aparelho repressor do estado calou por longo período, sem lhes conceder a oportunidade de argumentação, do contrário o professor será somente mais um reprodutor da velha ordem estabelecida.
 
    Luzia de Maria compreende que é preciso que o educador entenda, de uma vez por todas, que o ato de ensinar é um ato político e que cabe ao educador fazer de seu aluno um indivíduo questionador, que seja capaz de ter o senso critico suficiente para examinar o mundo a sua volta, esse respeito Luzia de Maria escreve (2002, pág.39):
 
    A educação nunca é neutra. E nunca é demais repetir: educamos para a submissão, para a obediência cega e servil. Para a manutenção das estruturas vigentes ou educamos para a emancipação, para o questionamento, para o diálogo e a cooperação, para a mudança e a transformação.
 
    Se o cotidiano escolar for marcado por uma prática antidemocrática, se os currículos, as normas, a disciplina e o relacionamento interpessoal expressarem a opressão e o autoritarismo, qualquer discurso democrático será mero engodo, pura demagogia.
 
    O educador que quiser fazer a diferença na escola precisa praticar o letramento em sua sala de aula, precisar levar o seu aluno a ter prazer pela leitura e, sobretudo, o professor que quiser fazer a mudança em sua escola precisa começar a mudar a si mesmo, tornando-se ele mesmo um leitor ávido, capaz de lê não somente aquilo que está no livro didático, mas também o que está a sua volta como uma noticia no telejornal, um pronunciamento de algum político, uma propaganda em outdoor e enfim, o mundo a sua volta, pois somente ele poderá contagiar os seus alunos.

Resposta a uma questão de linguística baseada no livro a Lingua de Eulália, do professor Marcos Bagno.

Reflita e apresente um argumento próprio para justificar as atitudes contrárias ao preconceito que recai sobre as variedades não padrão.


O uso das variedades não-padrão são, em regras gerais, feito pelas camadas menos favorecidas da população, quer dizer, as pessoas que não representam a elite social ou intelectual. Nesse sentido é possível dizer que o desprestigio imposto as variedades não-padrão é fruto da relação de dominação que se estabelece entre classes sociais e que quando algum individuo sofre qualquer tipo de humilhação pelo modo que fala, na verdade, ele está sofrendo discriminação por conta de sua classe social, já que o seu modo de falar sugere, em certa medida, a sua classe social, sua origem, o seu meio e enfim a sua identidade individual. O preconceito linguístico é sem dúvida, o velho preconceito classista que tenta se impor de uma forma ou de outra e por essa razão não deve ser tolerado.

2/01/2012

Fatores externos que implicam no resultado do aproveitamento do aluno.




São diversos os fatores, entre externos e internos, que implicam nos resultados do ensino e no aproveitamento dos alunos, por exemplo, o nível de instrução da classe docente, suas condições de trabalho; as turmas demasiadamente volumosas em espaços pequenos demais para alguma atividade que exija um pouco mais de mobilidade; o salário não muito atraente para a classe docente o que faz com que muitos professores trabalhem em diversas instituições e quase sempre em vários turnos, o que acarreta muitas vezes no esgotamento físico e mental desses profissionais que se traduz na falta de planejamento das aulas e na indisposição para lecionar.

Para muito além dos fatores internos que contribuem e influenciam o resultado do aproveitamento dos alunos, há também de se considerar os fatores externos que reforçam muitas vezes os problemas dos fatores internos, já citados. Como exemplo podemos citar o caso de pais que negligenciam o processo educacional de seus filhos, relegando á escola o papel que lhes caberia por natureza.

Outro exemplo de um fator externo que influi no aproveitamento dos alunos é o fato de que muitos estudantes vão para escola mal-alimentados, por isso não conseguem assistir a aula com atenção necessária e de modo satisfatório, de maneira que possam absorver o conteúdo ensinado pelos professores. Esses mesmos estudantes que se alimentam mal, também dormem mal, em condições precárias para se viver decentemente.

Alguns desses estudantes trabalham fora, para contribuir na escassa renda familiar, quando não, trabalham em casa mesmo, nos afazeres domésticos, cuidando muitas vezes dos irmãos mais novos e quase não têm tempo para fazer o dever de casa e quando lhes sobra algum tempo disponível já estão esgotados pelo cansaço do trabalho cotidiano. Eles não têm em casa um ambiente que favoreça o aprendizado, o acesso à cultura letrada, o apego ao conhecimento, pois não há quem os oriente nesse sentido.

Em linhas gerais, se tratam de estudantes sem auto-estima e totalmente desmotivados, que não recebem nenhuma ajuda financeira ou afetiva de sua família e que concebem a escola, muitas vezes, como único lugar aonde podem fazer uma refeição decentemente. Essas não são influências positivas para que se alcance o aprendizado.

É problemático tentar melhorar a qualidade de ensino sem antes olhar para a estrutura desigual de uma sociedade em que poucos têm muito e muitos têm pouco, ou quase nada. Para haver melhoria na qualidade de ensino tem que haver primeiramente melhoria na qualidade da aprendizagem, e isso vai muito além dos muros da escola, passa uma revisão de projetos sociais e assistencialistas que dê a estudantes o suporte necessário para os estudantes se tornarem, de fato, os verdadeiros sujeitos do conhecimento.

  É necessário que os docentes e estudantes tenham condições para ensinar e para aprender. Aqueles precisam ter uma prática pedagógica eficiente e de qualidade e estes para que tenham, sempre, contrabalançadas as necessidades advindas da deficiência alimentar, emocional, artística, de estímulo e apoio familiar, para que possam dar resultados satisfatórios em seu processo de aprendizagem.

 Às vezes o mau resultado dos alunos na escola, não significa necessariamente que o ensino a eles ministrado seja de má qualidade. Seria um erro crasso colocar toda culpa disso apenas nos ombros da escola e dos professores, pois já sabemos que existem fatores preponderantes e que fogem a alçada da escola e até mesmo dos órgãos públicos que cuidam da educação.

As autoridades públicas precisam valorizar os profissionais da educação, e não se trata somente de professores, mas de todos que compõe a escola, dando-lhes salários mais condizentes com a importância de seus trabalhos. Uma educação de qualidade não faz distinção entre ricos e pobres, negros e brancos, homens e mulheres. Uma escola de qualidade pode ser pensada em termos de uma visão para além do próprio sistema educacional. 

1/31/2012

1984: UMA ABORDAGEM DA LITERATURA UTOPICA NA PERSPECTIVA DISTOPICA DE GEORGE ORWELL









RESUMO

   Esta monografia tem por objetivo realizar uma análise do romance distópico 1984, de George Orwell. Inicialmente, será realizada uma abordagem histórica da primeira metade do século XX, período em que a obra é concebida. É importante ressaltar a influência dos acontecimentos históricos para a concepção deste livro, já que Orwell como escritor político engajado presenciou e foi afetado pelos principais eventos desse período, a saber: sua experiência com o império, nas duas guerras mundiais, na ascensão das Ditaduras Totalitárias e na Guerra Civil espanhola. Igualmente importante para este trabalho é a formação do romance moderno e suas implicações para a produção literária de George Orwell. Nessa perspectiva serão estudadas as principais correntes do pensamento humano que influenciaram o romance moderno, entre as mais pertinentes estão a psicanálise de Freud, a relatividade de Einstein, a luta de classes de Marx e o processo de formação literária desencadeada por escritores como Virginia Woolf, Marcel Proust e James Joyce. Após isso será feito um apanhado das definições de Utopia e Distopia, através de uma caracterização das principais obras utópicas e distópicas já produzidas. Finalmente, no último capitulo será tecida uma análise da obra 1984, de George Orwell, buscando apontar as características distópicas dentro dessa obra e a critica que ela efetua ao pensamento utópico tradicional. Este trabalho está apoiado em uma pesquisa bibliográfica que busca por informações históricas e literárias traçar um panorama da literatura utópica e distópica e suas principais influências até alcançar o livro que é objeto de estudo deste trabalho. Além de um dos mais importantes romances de todos os tempos 1984 é também um dos mais expressivos representantes da literatura distópica, isso pode ser provado pela localização de todos os elementos distópicos nele encontrado.


Palavras - chave: Distopia. Utopia. 1984. George Orwell. Totalitarismo.


ABSTRACT

This article aims to perform an analysis of the dystopian romantic novel 1984, George Orwell. Initially, there will be a historical approach about the first half of the twentieth century, the period in which the novel was conceived. It is important to emphasize the influence of the historical events for this book’s conception, since Orwell, as a engaged political writer, saw and was affected by the main events of this period, namely, his experience with the imperialism, in the two world wars, in the rise of the Totalitarian Dictatorships and in the Spanish Civil War. Equally important for this article is the formation of the modern romantic novel and its implications for the production of George Orwell's literary. From this perspective will be studied the main currents of human thought that influenced the modern novel, which the most relevant are the psychoanalysis of Freud, Einstein's relativity, the Marx's class struggle and the process of literary formation started by writers like Virginia Woolf, Marcel Proust and James Joyce. Next it will be made an overview about the definitions of Utopia and Dystopia, by using the characterization of the main utopian and dystopian works ever produced. Finally, in the last chapter, it will be made an analysis of the work 1984, by George Orwell, pointing to the dystopian features within that work and the criticism that it performs about the traditional utopian thinking. This article is supported by a literature search that looks for historical and literary information, and provides an overview of utopian and dystopian literature and its main influences until reach the book that is the studied subject of this work. Besides be one of the most important novels of all time, 1984 is also one of the most significant representatives of dystopian literature. It can be proved by the location of all dystopian elements in it found.


Keywords: Dystopia, Utopia, 1984, George Orwell, Totalitarianism.


INTRODUÇÃO



    Este trabalho de conclusão de curso procura fazer uma análise dos elementos distópicos encontrados na obra 1984, de George Orwell a partir de uma pesquisa bibliográfica de todo processo de construção da literatura utópica e distópica. Para tanto foi necessário realizar uma abordagem do contexto histórico, ao qual a obra está inserida, buscando entender qual a importância destes eventos para a composição do livro.

    A publicação da obra 1984, de George Orwell se situa na primeira metade do século XX, período conturbado para a humanidade, que foi assolada por duas guerras que arrasaram economias e deixaram um lastro horrendo de destruição e morte jamais visto em toda história da humanidade. Aliado a isso, está à ascensão dos regimes totalitários que mostraram ao mundo os perigos de um governo autoritário e com poderes ilimitados sobre os indivíduos.

    Ainda tratando do contexto histórico, outro fator decisivo para a composição de 1984, foi à experiência de Orwell durante a Guerra Civil espanhola onde testemunhou a violência e crueldade com que o general Francisco Franco e seus aliados tratavam os opositores republicanos, para Hitchens (2009) aquele episódio assumiu papel fundamental para a alegoria política representada em A revolução dos bichos e 1984. Junto com a experiência de Orwell na Guerra Civil espanhola está o fato dele ter servido ao exército imperial inglês na Birmânia, então colônia inglesa. Lá Orwell tomou conhecimento da vileza com que os colonizadores ingleses subjugavam os colonizados birmaneses.

    Para fundamentar o texto que fala da contextualização histórica da publicação do livro 1984, foram utilizados como apoio teórico autores como: Arruda, Hitchens, Hobsbawm, Koshiba e Pereira, Moraes e Arendt que abordaram de forma significativa os grandes fatos ocorridos durante o século XX. Para entender quais as principais influências na obra de Orwell, e em particular em 1984, foi necessário realizar um apanhado das principais teorias que afetaram e moldaram o romance moderno, dentre essas teorias, destaca-se a psicanálise de Freud que influenciou fortemente escritores como Virginia Woolf, Marcel Proust e James Joyce que se notabilizou através da utilização do fluxo de consciência em seus romances.

    De Marx há a teoria da luta de classes, tão cara aos escritores do século XX, como é o caso de Orwell. A relatividade de Einstein também influiu na composição do romance moderno, sobretudo o romance do século XX que rompe com os paradigmas da literatura romanesca do século XIX. Nessa etapa da pesquisa foram utilizados autores com Cevasco e Siqueira, Silva, Hauser, Rosenfeld, Luersen.
Para compreender as características da distopia dentro da obra 1984, de George Orwell foi necessário estabelecer uma retomada de toda produção utópica existente, tendo em mente que as distopias são sátiras dos projetos utópicos e que elas só podem ser entendidas em sua plenitude por meio da análise dos projetos utópicos.

    O estudo das utopias se inicia a partir da obra A República, de Platão em que idealiza o estado perfeito, governada pelos sábios. Para Smith (2004, p.106) “A república foi à primeira das utopias”. Depois de A República foram analisadas as utopias recorrentes na idade média, as utopias religiosas e as utopias populares como o mito de Cocanha.

    Foram estudadas também as utopias modernas como o romance A utopia, de Thomas More, livro que dá nome ao gênero literário, em seguida a Cidade do sol, de Tommaso Campanella e a Nova Atlântida, de Francis Bacon. Por fim foram examinadas as utopias socialistas de Saint Simon e Charles Fourier.

    Finalizando com os romances utópicos, foi realizada uma breve apreciação de toda produção distópica já produzida, desde aquelas publicadas ainda no século XIX como é o caso de A Raça futura, da Duquesa de Newcastel e a Maquina Pára, de E. M. Foster até os quatros grandes clássicos da literatura distópica, escritas no século XX como é o caso de Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, 1984, de George Orwell, Nós, de Zamianty e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury.

    Para fechar este trabalho de conclusão de curso foi feito no último capítulo uma análise do livro 1984, de George Orwell à luz dos elementos distópicos nele encontrados. Para o aporte teórico do último capítulo dessa monografia foram usados os seguintes autores: Smith, Coelho, Carandell, Pimllot, Souza, Fromm e Pynchon.

    Entender como o livro 1984, de George Orwell se configura em uma distopia é objetivo central desta pesquisa, levando-se em consideração que as distopias são o reverso das utopias como assinala Smith (2004), logo então, 1984, de George Orwell é uma oposição ferrenha a todo e qualquer tipo de projeção utópica existente, interessa Fahrenheit 451, de Ray Bradbury saber, no entanto, como se processa essa oposição.

1. 1984: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA



    Nesse primeiro capítulo será abordado o contexto histórico do século XX, ressaltando os principais acontecimentos ocorridos nesse período que contribuíram para o desenvolvimento da obra de George Orwell, em particular 1984. Sendo assim, sua contextualização histórica, é de fundamental importância para o entendimento da construção distópica neste livro, que retrata um mundo em constante estado de guerra e tomado pelas ditaduras totalitárias, em especial o regime do “Grande Irmão”. Por conseguinte para compreensão e desenvolvimento deste trabalho, serão utilizados como apoio teórico autores como: Arruda, Cevasco e Siqueira, Hitchens, Hobsbawm, Koshiba e Pereira e Moraes, que abordaram de forma significativa os grandes fatos ocorridos durante o século XX.


1.1- AS DUAS GRANDES GUERRAS MUNDIAIS: PERÍODO DE INTENSA PRODUÇÃO LITERÁRIA



    O século XX foi estigmatizado pelas grandes guerras mundiais, não há como estabelecer qualquer referência a este século sem mencionar as grandes catástrofes mundiais que perduraram durante mais de um terço deste século. Segundo Hobsbawm (2007, p. 30):


    A humanidade sobreviveu. Contudo, o grande edifício da civilização do século XX desmoronou nas chamas da guerra mundial, quando suas colunas ruíram. Não há como compreender o Breve Século XX sem ela. Ele foi marcado pela guerra. Viveu e pensou em termos de guerra mundial, mesmo quando os canhões se calavam e as bombas não explodiam. Sua historia e, mais especificamente, a historia de sua era inicial de colapso e catástrofe devem começar com a da guerra mundial de 31 anos.


    Esse estado de caos em que se encontrava o mundo no século XX serviu de alicerce para que muitos escritores movidos pelo forte sentimento de descontentamento produzissem grandes e notáveis obras literárias. De acordo com Cevasco e Siqueira (1985, p. 74), é “Nesse quadro de abalos, numa Europa ‘grávida de desastre’, que homens e mulheres de sensibilidade refinada vão criar uma nova imagem da literatura”, destacando-se assim escritores que fizeram diferença tanto na poesia quanto na prosa.
Neste sentido, sobressaem autores como Ford Madox, que escreveu romances sobre a Inglaterra no decorrer da Segunda Guerra Mundial, John Galsworthy que evidenciou os primeiros anos de guerra e o crescimento do socialismo. A respeito deste, Burgess (2008, p. 253) destaca, “O mundo de Galsworthy era um mundo agonizante. O Liberalismo, com seu grande lema do progresso, iria tornar-se um pouco amargo para as pessoas que experimentaram a Primeira Guerra Mundial e descobriram que a ciência significava gás e armas ”. Segundo Hitchens (2010) George Orwell estaria nesse período servindo o exército da Inglaterra em território indiano e teria presenciado a violência com que os colonizadores tratavam os colonizados, as memórias de Orwell sobre esse período estão contidas no livro Dias na Birmânia.

    Entre os grandes destaques do século XX, no que diz respeito à literatura influenciada pela guerra, está o nome de Aldous Huxley, que, para Cevasco e Siqueira (1985, p. 82), “captou bem certos aspectos do mundo entre - guerras, onde já se dera a ruptura da estabilidade e do otimismo vitoriano”. E George Orwell na alegoria de seu celebre A Revolução dos Bichos criticou toda forma de autoritarismo existente no mundo, e em seu último romance intitulado, 1984 que é objeto de estudo dessa pesquisa, critica e recrimina qualquer tipo de repreensão na sociedade. Dessa forma, as Guerras Mundiais, foram sem dúvida, grandes fornecedoras de matéria literária para escritores dispostos a expor ao mundo o sentimento de angústia e revolta ocasionado pelas grandes batalhas travadas no século XX.

1.1.1- A Primeira Guerra Mundial



    A iminência de uma guerra já decorria desde o final do século XIX, tendo inúmeros fatores para seu desencadeamento. Nesse sentido, destaca-se o fator econômico como uma das causas que mais contribuíram para eclosão da Primeira Guerra Mundial. Conforme Júnior e Chacon (1991, p. 188), “a busca desenfreada por mercados, que originou o imperialismo, jogou as nações industrializadas em choques que nem sempre a diplomacia pôde evitar”. O revanchismo Francês foi outra razão que cooperou para o conflito mundial, segundo Arruda (1987), os franceses não aceitavam a perda do território da Alsácia-Lorena para a Alemanha na guerra Franco-Prussiana em 1871. A questão Balcânica, a qual Rússia e Áustria tinham os mesmos interesses foi mais um evento que contribuiu para que os ânimos entre os países europeus se exaltassem, dessa forma, fazendo com que a Europa vivesse em permanente estado de conflito.

    O surgimento do sistema de aliança, o qual se formou mediante interesses protecionistas, expansionistas e econômicos, e tendo sua origem no final do século XIX, estimulou ainda mais o conflito na Europa. Conforme Arruda (1987), a Europa se dividiu em dois blocos contrários, Alemanha, Áustria-Hungria e Itália formavam a tríplice aliança, do outro lado, a Tríplice Entente formada por França, Inglaterra e Rússia. Moraes (2003, p. 306) afiança:


    O cenário político europeu transformou-se totalmente entre o final do século XX e o inicio do seguinte. Do equilíbrio multipolar entre as potências, que mal ou bem sobreviveu durante todo o século XIX, a Europa passou a viver um período de confronto bipolar o novo quadro de alianças e os conflitos localizados criaram um clima de tensão muito grande.


    Dessa forma a política de aliança fortaleceu os conflitos já existentes, fazendo com que a paz e equilíbrio europeu dependessem dos interesses das potências envolvidas. Tal como salienta Arruda (1987, p. 138):

    O equilíbrio político europeu já não passava de uma aparência: as crises sucediam-se. Em 1914, uma delas precipitou os acontecimentos, dando inicio a uma guerra que se poderia ter limitado à Europa Central, mas que, por causa da política de alianças, acabou se transformando em um conflito mundial.


    De acordo com Hitchens (2010) em 1984, George Orwell fará uma critica ferrenha a política de alianças, satirizando o modo como os países mudavam de aliados e inimigos. Os conflitos se espalharam por outras regiões do planeta, envolvendo a Turquia, Japão e em seguida colônias dos países europeus. Grande parte das nações do mundo estava envolvida de alguma forma no conflito.

    A Primeira Guerra Mundial teve seu fim no ano de 1918, com a rendição dos países pertencentes à tríplice aliança. Segundo Moraes (2003, p. 307), “dois acontecimentos marcaram os destinos da guerra em direção ao seu fim: a entrada dos Estados Unidos na disputa e a saída da Rússia do conflito”. A Primeira Guerra Mundial culminou com um saldo de 20 milhões de mortos e vários países destruídos estrutural e economicamente, o cenário político passou apresentar o ceticismo em relação ao padrão liberal, dessa forma encorajando o surgimento de regimes e partidos de espírito autoritário como os de concepção socialista e fascista, regimes estes, que foram retratados na matéria ficcional de escritores, como é o caso de George Orwell em seu livro 1984 que será analisado nesta pesquisa.


1.1.2- A Segunda Guerra Mundial



    Um dos acontecimentos mais marcantes e aterrorizantes do século XX foi sem dúvida a Segunda Guerra Mundial. Um conflito armado que diferente da primeira guerra mundial reuniu países de todo mundo de maneira direta ou indireta. A guerra começou efetivamente a partir do momento em que a Alemanha de Adolf Hitler invadiu a Polônia, fazendo com que a Inglaterra e França declarassem guerra ao governo nazista. Sobre o inicio da guerra, Koshiba e Pereira (2009, p. 331), afirmam:


    A Segunda Guerra mundial eclodiu quando Hitler começou a aplicar seu programa internacional de expansão nazista [...] em primeiro de setembro ordenou a invasão da polônia depois de esta ter se recusado a entregar Dantzig. Dois dias mais tarde, a Grã-Bretanha e França declaram guerra à Alemanha.


    Depois de ter invadido e implantado um governo geral na Polônia a Alemanha voltou a sua atenção para conquistar a França, todavia a invasão do território Francês traria sérias implicações para as pretensões alemãs, uma vez que a invasão da França colocaria a Alemanha em guerra com a Inglaterra, principal aliada da França.

    De acordo com Koshiba e Pereira (2009, p. 331) “a principal preocupação de Hitler não era a Inglaterra e sim a União Soviética, já que Hitler queria evitar a todo custo uma guerra em duas frentes, para tanto ele assinou um acordo secreto de não agressão com a União Soviética”. Este pacto de não agressão deu a Alemanha condições necessárias para se fortalecer diante de seus rivais.

    Resumidamente, a Segunda Guerra Mundial pode ser dividida em três momentos como bem retrata Koshiba e Pereira (2009). O primeiro momento se inicia com a invasão da Polônia e vai até o ataque alemão a União Soviética; esta fase foi marcada pelas vitórias alemãs e pelo mito da invencibilidade do exército alemão; o segundo momento da guerra se inicia com a invasão da União Soviética até o desembarque das tropas da aliança na Itália; a terceira e ultima fase da guerra começa com a chegada das tropas americanas na Itália e vai até a rendição do Japão, depois que o governo americano lançou sobre as cidades de Hiroshima e Nagasaki duas bombas atômicas que as devastaram.

    A Segunda Guerra Mundial deixou um legado de miséria e destruição jamais avaliado em toda história da humanidade. Não há registros de guerras ou catástrofes que tenham vitimado tantas pessoas quanto a Segunda Grande Guerra. Koshiba e Pereira (2009, 336) alegam:


    Estima-se que aproximadamente mais de 50 milhões de pessoas morreram [...], dos quais mais 20 milhões eram soviéticos, o que representou mais de 10 % da população daquele país, e cerca de 7 milhões de alemães. Não se sabe ao certo quanto civis morreram, mas algumas estimativas chegam a mais de 17 milhões. Pelo menos 10 milhões de pessoas perderam a vida nos campos de concentração nazistas, das quais 6 milhões eram judeus.


    O período que compreende a Segunda Guerra Mundial foi também um momento de grande produção literária. Sobre a sua influência no plano literário Bonalume (2006, p. 92) afirma que “A maior guerra da história humana também produziu a maior bibliografia de história militar de todos os tempos. Há um pouco de tudo nas milhares de obras publicadas ao longo dos mais de 60 anos desde o fim do conflito”. E assim nos diversos escritos produzidos na Segunda Guerra Mundial existe uma variedade de temáticas que versam sobre a condição humana e todas as problemáticas do homem do século XX.
Boulos (2009, p.106) declara que “poucos episódios foram tão decisivos e inspiraram tantos livros, filmes e histórias em quadrinhos quanto a Segunda Guerra Mundial”. Não só as duas Grandes Guerras foram matéria para produção ficcional, mas também as ditaduras totalitárias que se ergueram a partir do período entre - guerras serviram como grande fonte para a criação literária daquele período.


1.2. OS REGIMES TOTALITÁRIOS



    A ascensão dos regimes totalitários na Europa, a partir da primeira metade do século XX, foi um fator que esteve por muito tempo no epicentro das discussões políticas e filosóficas do século passado. Foi também, imprescindível para a produção literária de escritores empenhados, entre eles George Orwell que criticou os regimes totalitários, em particular o Stalinismo na Rússia em seu famoso livro “A Revolução dos bichos” e na sua obra considerada a mais importante “1984”. A respeito desta Cevasco e Siqueira (1985, p.82) asseguram:


    Seu ultimo romance -1984- é, [...] uma previsão de um futuro sombrio, com o estado totalitário fiscalizando tudo, até os pensamentos mais íntimos de seus cidadãos, permanentemente sob a vigilância das telas do “grande irmão”, que lhes vasculham a intimidade.


    Além de escritores, pensadores das mais diversas correntes do conhecimento humano também se debruçaram a entender o fenômeno do totalitarismo na primeira metade do século XX. Para compreender sua formação, historiadores, filósofos, sociólogos, antropólogos e economistas, dedicaram seus estudos a esse tipo de organização política. Arruda (1987, p. 53), vê o totalitarismo da seguinte forma:


    O estado totalitário é um estado forte. Nele o poder central é praticamente absoluto, isto é, se trata de um regime político no qual o Estado exerce controle total sobre a vida pública e privada. Este tipo de estado generalizou-se pela Europa no período entre guerras.


    Nesse sentido, regimes totalitários eram organizações políticas cujo poder do estado era centralizado em apenas uma pessoa, um líder autoritário que comandava por meio da persuasão e principalmente da coerção com poder para vigiar e devassar a vida pública e privada de todos os cidadãos.


1.2.1- Surgimento das Ditaduras Totalitárias



    Os estados totalitários surgiram no período denominado de entre – guerras. De acordo Arruda (1989) a sua ocorrência foi mais concreta em países do leste europeu que se caracterizavam por não ter nenhuma tradição democrática e que estavam perturbados pela crise econômica de 1929. Hobsbawm (1995, p. 91) afirma:


    Sem o colapso de 1929, talvez a ascensão dos regimes totalitários na Europa tivesse se tornado algo inviável [...], sem ele não teria havido Hitler, quase certamente não teria havido Roosevelt. É muito improvável que o sistema Soviético tivesse sido encarado como serio rival econômico e uma alternativa possível ao capitalismo mundial [...] em suma, o mundo da segunda metade do século XX é incompreensível se não entendermos o impacto do colapso econômico.


Outro motivo que pode explicar o surgimento das ditaduras totalitárias na Europa é o fato de que muitos desses países tiveram sérios prejuízos ao termino da Primeira Grande Guerra. O primeiro país a ser denominado como totalitário foi sem dúvida, a Rússia, pois logo após a morte do principal líder da revolução socialista, Lênin. Josef Stalin assume o poder depois de travar uma disputa particular com Leon Trotski que acabou sendo exilado e posteriormente assassinado a mando de Stalin. Sobre a ascensão de Stalin ao poder Koshiba e Pereira (2009, p. 264) revelam:


    Com a morte de Lênin, o sonho de uma sociedade livre, igualitária e socialista converteu-se num pesadelo [...] Quanto a Stalin. Este apenas se aproveitou das circunstancias para organizar o primeiro estado totalitário moderno. Essa monstruosa degeneração da revolução relegou o operariado a um segundo plano, beneficiando uma burocracia corrupta e perversa que acabou transformando a “ditadura do proletariado” numa ditadura sobre o proletariado.


    Após a ascensão de Stalin ao poder, se instaurou um estado de pânico e temor absoluto, já que qualquer cidadão a qualquer momento poderia ser acusado de traição. O sentimento de medo na qual se encontrava a população russa encontrou a sua expressão mais forte nos famosos expurgos stalinistas, também conhecidos como os processos de Moscou, Koshiba e Pereira (2004, p. 328) discorrem sobre esse período:


    Não eram só os políticos as vitimas de Stalin. O terror estendeu-se as universidades, ao meio artístico e intelectual e até as empresas estatais [...] mesmo os altos escalões da policia secreta não escaparam. Yezhov, um de seus chefes, depois de ordenar inúmeras execuções, foi ele próprio executado e substituído por Beria. Todos os cidadãos sentiam-se vigiados e inseguros, visto que a linha divisória entre inocentes e culpados havia desaparecido completamente. Qualquer individuo a qualquer momento estava sujeito a uma acusação absurda e a ser arbitrariamente internado num campo de trabalho forçado, encarcerado ou executado.


    A repressão e crueldade dos governos totalitários foram retratadas em diversos romances daquele período, destaca-se entre eles a obra 1984, de George Orwell. Hitchens (2010, p. 86) afirma que “o grande irmão, o vilão de 1984 é uma personagem inspirada na figura do líder totalitário Josef Stalin. Ainda de George Orwell a Revolução dos Bichos constrói uma sátira da Revolução de outubro”. A literatura constituída com base na crítica aos regimes totalitários, vê com pessimismo exagerado o futuro da humanidade e com descrença as tentativas de concretização dos ideais de unidade e igualdade entre os homens.

    Na Itália um líder Mussolini totalitário assumiu o poder sob a bandeira de um movimento que ficou conhecido como fascismo. Arruda (1987, p. 172) explica as razões da ascensão do regime fascista na Itália:


    Nacionalismo italiano ficou exaltado após a I Grande Guerra Mundial, porque a Itália não tinha conseguido obter nos tratados de pós-guerra algumas possessões territoriais que ambicionava como a Dalmácia, que permaneceu ligada a Iugoslávia. Suas perdas na guerra, ao lado dos aliados, foram enormes (cerca de 650 mil vitimas), e a região de Veneza foi devastada; como a compensação territorial desses danos não veio, a desilusão aumentou ainda mais o desejo de novas conquistas.


    De acordo com Arruda (1987), outros pretextos podem justificar o totalitarismo na Itália, entre eles está o alto índice de desemprego que se agravou muito depois da Primeira Grande Guerra, os problemas com o superpovoamento e atraso econômico, inflação, desvalorização da moeda italiana e as enormes dívidas para como os países vencedores que lhe emprestaram dinheiro para financiar as indústrias militares na Primeira Grande Guerra e também o advento da revolução socialista. Sobre esse aspecto Hobsbawm (2005, p. 127) afirma:


A ascensão da direita radical após a Primeira Guerra Mundial foi sem dúvida uma resposta ao perigo, na verdade à realidade, da revolução social e do poder operário em geral, e à revolução de outubro e ao leninismo em particular. Sem esses não teria havido fascismo algum.


    O exemplo italiano de um estado totalitário foi seguido por diversos países do globo, principalmente da Europa central. Na Alemanha o caso foi um pouco diferente da Itália, já que aquela nação ao invés de aliada foi o principal inimigo dos países vencedores da Primeira Grande Guerra. Com a derrota e a abdicação do imperador Guilherme II, a Alemanha mergulhou numa enorme desordem política. Sobre esse período Boulos Junior (2009, p. 53) escreveu:


    Em 1919, foi votada a nova constituição do estado, que criava a republica de Weimar. Seu primeiro presidente foi Ebert. As dificuldades econômicas, sociais e políticas eram enormes, havia fome, greves e golpes políticos. A crise mundial de 1929 agravou a situação. Dela se aproveitou Hitler para subir ao poder.


    De acordo com Arruda (1987) depois dos problemas financeiros dos primeiros anos do entre - guerras até meados de 1924, a economia da Alemanha havia recuperado certa estabilização, devido os investimentos dos Estados Unidos, todavia de 1930 em diante, os investidores estrangeiros passaram a retirar os seus empréstimos.

    Adolf Hitler assumiu o cargo de Chanceler, chefe de governo, da chegada ao poder ao estabelecimento da ditadura totalitária não foi preciso grande esforço, acusou os comunistas de incendiarem o Reichstag que foi incendiado pelos próprios nazistas. Hitler colocou o partido comunista na ilegalidade e começou a perseguir seus membros ferozmente. Nesse sentido as liberdades constitucionais foram extintas e milhares de prisões foram efetuadas pela Gestapo, a polícia secreta do estado. Estava assim estabelecido o regime totalitário nazista na Alemanha. Como Mussolini na Itália Hitler detinha o poder absoluto na Alemanha.

    Outros ensejos apontam para o surgimento de um estado totalitário na Alemanha, entre eles está o sentimento de revanchismo que tomou conta, principalmente depois da Primeira Grande Guerra Mundial, uma vez que este país perdeu suas colônias e teve o seu território ocupado por tropas dos países vencedores.

    Na Espanha o totalitarismo se ergueu a partir da figura do General Francisco Franco que se projetou como oposição reacionária ao partido de esquerda da Frente Popular que elegera para o cargo de presidente da república o socialista de tendências reformistas e anticlericais Manuel Azaña. Arruda (1987, p. 178) descreve:


    Na Espanha, a frente popular, composta por partidos de esquerda das mais variadas tendências, ganhou as eleições de fevereiro de 1936, elegendo Manuel Azaña para a presidência da republica. O governo, de tendências reformistas, iniciou um programa de reforma agrária e ataques a igreja católica. Francisco Franco, representando a reação, liderou um movimento militar de oposição ao governo da republica. A sublevação começou a 18 de julho de 1936, no Marrocos espanhol, e aos poucos espalhou-se por toda Espanha.


    A Guerra Civil espanhola foi uma das mais sangrentas do século XX, com um total de mais de um milhão de mortos. Foi um conflito civil, mas que contou a com a participação indireta de diversos países, sobretudo os regimes totalitários de Hitler, Stalin e Mussolini que deram apoio incondicional a Francisco Franco.

    De acordo com Arruda (1987, p. 178) “divisões aéreas alemãs faziam bombardeios totais contra alvos não-militares, dizimando a população civil”. A guerra civil espanhola teve fim em 1939 e implantou o estado totalitário na Espanha que por lá ficou conhecido como Franquismo, como referência ao seu líder, o general Fran cisco Franco.

    Segundo com Hitchens (2010) George Orwell lutou a favor das forças republicanas na Espanha e lá presenciou todo horror dos regimes totalitários como torturas, assassinatos, julgamentos forjados e toda sorte de perversidade que mais viria a denunciar em Lutando na Espanha, A revolução dos bichos e 1984.



1.2.2- Características do Totalitarismo



    Para Arendt (2011), o Estado Totalitário é constituído de dois pilares fundamentais: o Imperialismo territorial e o Anti-Semitismo. E aspectos como xenofobia, preconceito de castas e o ódio racial se constituem em instrumentos de suma importância para a manutenção do poder absoluto nos estados totalitários.

    De fato, em regimes totalitários como na Alemanha de Adolf Hitler as políticas anti-semitas foram utilizadas para a manutenção do poder no estado alemão e para a expansão territorialista, uma vez que Hitler justificava o massacre de Judeus alegando que estes eram os grandes traidores da Alemanha e responsáveis diretos pela sua derrota na Primeira Grande Guerra. Sobre o posicionamento de Hitler, Arruda (1987, p. 175) esclarece:


    Opunha-se aos judeus num anti-semitismo cujas origens são difíceis de explicar. Via os judeus como fator de corrupção do povo alemão. Daí surgiu a sua doutrina racista, para qual os homens eram desiguais por natureza. A raça superior era a dos Arianos (germânicos), que na Alemanha existiam em estado puro.


    Os governos totalitários tinham um forte apelo nacionalista que buscava incitar a população a revoltar-se contra os inimigos que os havia humilhados. O caso da Alemanha é o exemplo mais simbólico dessa particularidade, uma vez que esta fora derrotada na primeira grande guerra e humilhada pelo tratado de Versalhes que tomava as suas colônias, desmilitarizava o país, dividia e ocupava o seu território com tropas das nações vencedoras. Sobre o nacionalismo nos regimes totalitários Hobsbawm (1995, p. 177) conclui:


    Todos tendiam a ser nacionalistas, em parte por causa do ressentimento contra estados estrangeiros, guerras perdidas ou impérios insuficientes, e em parte porque agitar bandeiras nacionais era um caminho tanto para a legitimidade quanto para a popularidade.


    De acordo com Koshiba e Pereira (2009) o totalitarismo possui algumas características básicas como ideologia oficial, terror policial e partido único de massa. Alguns acrescentam ainda a esse quadro: controle monopolista da comunicação, polícia secreta e controle central da economia.
As ideologias do partido único nos regimes totalitários são transformadas em verdades absolutas que não podem ser questionadas, quem o fizer, corre o sério risco de sofrer as retaliações por parte do estado totalitário. Os Estados Totalitários expressam toda a maldade que o homem jamais conheceu. Arendt (1951, p. 510) conclui:


    No afã de provar que tudo é possível, os regimes totalitários descobriram, sem o saber, que existem crimes que os homens não podem punir nem perdoar. Ao tornar-se possível, o impossível passou a ser o mal absoluto, imponível [sic] e imperdoável, que já não podia ser compreendido nem explicado pelos motivos malignos do egoísmo, da ganância e da cobiça, a ira não podia vingar, o amor não podia suportar, a amizade não podia perdoar. Do mesmo modo que as vitimas nas fabricas da morte ou nos poços de aquecimento já não são “humanas” aos olhos de seus carrascos, também esta novíssima espécie de criminosos se situa alem dos limites da própria solidariedade do pecado humano


    O impacto das duas Grandes Guerras Mundiais e a ascensão dos regimes totalitários mostrou o lado negro da ciência e da razão que outrora eram tidos como instrumentos de redenção da humanidade. Cevasco e Siqueira (1985, p. 83) afirmam que: “que os piores temores expressos na arte de Auden, Huxley e Orwell parecem se tornar realidade na segunda guerra mundial”. São recorrentes nas temáticas desses autores a retratação de regimes autoritários e de mundos arruinados por sucessivas guerras.


2- NOVAS INFLUÊNCIAS NO ROMANCE MODERNO E UMA VISÃO PANORÂMICA SOBRE A PRODUÇÃO UTÓPICA E DISTÓPICA



    Um gênero literário que, sem dúvida sofreu consideráveis modificações a partir das novas influências artísticas e científicas do século XX, foi o Romance. Já que 1984, de George Orwell é um romance, logo então, neste tópico será realizada uma analise de todas as influências e da constituição do romance moderno a partir dos movimentos, teorias científicas e pensamentos filosóficos que contribuíram de forma significativas para produção literária romanesca.Igualmente importante para composição deste capítulo será o estudo da produção literária utópica e distópica que influência diretamente o trabalho de Orwell.


2.1- ROMANCE MODERNO



    O romance começa a ser reconhecido efetivamente na escola romântica, no transcorrer da primeira metade do século XVIII, Silva (2006, p. 682), afirma “Com o romantismo, por conseguinte, a narrativa romanesca afirma-se decisivamente como grande forma literária, apta a exprimir os multiformes aspectos do homem e do mundo”. Assim, no romantismo, o romance começou a ganhar força necessária para mais tarde se tornar o gênero literário mais usual.

    Segundo Hauser (1995, p. 752), “o romance torna-se o principal gênero literário do século XVIII, porque dá a mais abrangente e profunda expressão ao problema cultural da época – a antítese entre individualismo e sociedade”. Dessa forma, emancipando-se por direito na história literária.

    Duas razões podem ser apontadas para o estabelecimento do romance: a primeira trata da quebra da rigidez na estética clássica, isto é, os gêneros clássicos se tornam mais flexíveis e chegam até mesmo a flertar com gêneros literários até então considerados menores, que é o caso do Romance. A segunda razão diz respeito à ascensão de um novo público leitor mais afeito a forma romanesca e menos familiarizado ás formas clássicas. Sobre essas transformações, Silva (2006, p. 679) afirma:


    Quando o sistema de valores da estética clássica começa, no século XVIII, a perder sua homogeneidade e a sua rigidez, e quando, neste mesmo século, começa a afirmasse um novo público, com novos gostos artísticos e novas exigências espirituais- um público burguês- o romance, o gênero literário de ascendência obscura e desprezado pelos teorizadores das poéticas, conhece uma metamorfose e um desenvolvimento muito profundo.


    Passado a fase experimental do romantismo, surgem no século XIX na Europa, grandes e prestigiosos escritores, que elevam o romance a altura de verdadeira análise da condição humana e que dominam a arte da literatura. Bem como salienta Silva (2006, p.683):


    Com Flaubert, Maupassant e Henry James, a composição do romance adquire uma mestria e um rigor desconhecidos até então; com Tolstoi e Dostoiewskij, o universo romanesco alarga-se e enriquece com experiências humanas perturbadoras pelo seu caráter abismal, estranho e demoníaco; com os realistas e naturalistas [...]. Em vez dos heróis altivos e dominadores, relevantes quer no bem quer no mal, tanto na alegria como na dor, característicos das narrativas românticas, aparecem nos romances realistas as personagens e os acontecimentos triviais e anódinos extraídos da baça e chata rotina da vida.


    O romance tradicional do século XIX respondia a um conjunto de valores compartilhados por uma sociedade que imaginava ter encontrado as respostas para todas as suas problemáticas, por essa época os romances tinham como características o tom mais cientifico em suas temáticas, resultado da influência das diversas correntes cientificas e filosóficas concebidas por esse período.

    Segundo Silva (2006, p. 683) “com os realistas e naturalistas, em geral, a obra romanesca aspira à exatidão da monografia, de estudo cientifico dos temperamentos e dos meios sociais”. Havia no romance realista-naturalista uma preocupação em se retratar a sociedade justificando as atitudes do homem através de um olhar cientificista.

    O final do século XIX significou para o romance um período de profundas modificações, no que tange as suas temáticas, objetivos e também a sua estética, já o século XX representou para o mundo não somente a chegada de um novo século, mas também um rompimento com uma tradição literária que já se encontrava em franca decadência e não correspondia mais aos anseios de um público leitor que vivenciava um novo momento histórico. Cevasco e Siqueira (1985, p. 77) afirmam:


    A poesia de T. S. Eliot significou numa ruptura radical com a do século XIX. A mesma quebra de tradição aparece no romance, com autores como Virginia Woolf, James Joyce e D.H Lawrence, cai por terra o romance vitoriano, estilhaçado na forma e no conteúdo do romance moderno.


    O Romance Moderno mudou de maneira radical as estruturas estéticas e temáticas do século anterior, que já se encontravam esgotadas e as circunstâncias pediam novas possibilidades de criação literária. De acordo com Cevasco e Siqueira (2006, p. 78) “o romancista, do Século XIX, transmitia um conhecimento seguro do mundo criado em sua obra e indicava ao leitor como este deveria interpretar as ações e os pensamentos dos personagens”. Mas ao se reportarem a literatura produzida já no Século XX, Cevasco e Siqueira (2006, p. 78) inferem:


    O artista não compartilha mais com ele (o publico leitor) de um conhecimento comum. Além disso, o escritor, exposto as novas teorias da filosofia, da economia, da psicanalise e das ciências em geral, vai perdendo o sentido unificado do mundo. Ele tem consciência de que é impossível se saber toda a verdade sobre alguém, assim como da complexidade e da ambiguidade [...] como consequência ele não pode mais narrar com a autoridade de seus predecessores, nem usar as mesmas técnicas que eles, sob pena de falsear a realidade.


    As mudanças na literatura do século XX, e, por conseguinte nesse novo romance só foram possíveis graças ao surgimento de diversas correntes cientificas e filosóficas que rompiam com as ideias e certezas de tempos atrás. Ao fazerem um apanhado das formas de pensamento que mais influenciaram a literatura do inicio do século, Cevasco e Siqueira (1985, p. 73) constatam:


    O relativismo substitui as teorias autoritárias e rígidas que haviam constituído um dos pilares da sociedade vitoriana. [...] Marx com sua visão materialista da historia, já questionara o sistema capitalista vigente. Darwin, também em plena época vitoriana, abalara a segurança do homem, ao colocá-lo, na escala biológica, não ao lado dos deuses, mas um degrau acima do macaco. No inicio do século XX, propagam-se as teorias de Freud sobre o papel do inconsciente no comportamento humano. Para qualquer lado que se olhe, o homem do inicio do século só vê interrogações, onde antes havia certezas.


    Na linha de frente do novo romance moderno despontam alguns nomes que se notabilizaram na literatura por terem empregados recursos formais até então impensáveis e que rompiam totalmente com a tradição linear do romance passado. Entre esses nomes destacam-se a inglesa Virginia Woolf, o irlandês James Joyce, o francês Marcel Proust. Ao fazer uma análise da obra de Virginia Woolf, Cevasco e Siqueira (1985, p. 79) afirmam:


    Ausência de narrador que tudo sabe seqüência temporal quebrada, visão personalíssima da vida. Estamos ai já bem distantes do romance tradicional” [...] o fluir do tempo é outra das preocupações constantes da autora. Em seus romances, a sequência temporal é quebrada, e o passado coexiste com o presente na consciência dos personagens.


    O fluxo de consciência, recurso narrativo criado a partir dos estudos psicanalíticos de Freud, mas particularmente da teoria da livre associação de ideias, foi uma das grandes inovações dessa geração. Segundo Rosenfeld (1996, p. 83.) o fluxo de consciência consiste:


    Na irrupção, no momento atual, do passado remoto e das imagens obsessivas do futuro não pode ser apenas afirmada como num tratado de psicologia. Ela tem de processar-se no próprio contexto narrativo em cuja estrutura os níveis temporais passam a confundir-se sem demarcação nítida entre passado, presente e futuro


Sobre esse recurso na obra de Virginia Woolf, Cevasco e Siqueira (1985, p. 78) afirmam:


    Woolf notabilizou-se pelo emprego do fluxo de consciência, técnica narrativa em que consiste na apresentação, na literatura, “de padrões do pensamento humano que sejam ilógicos, não gramaticais e, principalmente, associativos”.
Grande parte da ação nos romances de Virginia Wolf se dá na mente de seus personagens. Aliás, “ação” é força de expressão, já que muito pouco acontece em seus romances [...] podemos falar em ação no sentido convencional.


    Contemporâneo de Woolf foi o igualmente brilhante James Joyce celebrado pelas suas inovações na escrita, através do fluxo de consciência apurado e, principalmente pela influência que sofreu dos estudos psicanalíticos de Freud, sobretudo de suas análises sobre os sonhos e suas tentativas de explicá-lo. De acordo com Cevasco e Siqueira (1985) Joyce, revolucionou o romance a partir do momento em que busca criar histórias que reproduzem a estrutura de um sonho em que imagens são distorcidas e juntadas umas as outras.

    Mais tarde, as teorias de Freud alcançariam por intermédio da propagação de seu pensamento, a outros escritos, entre eles, George Orwell com seu livro, 1984 em que segundo Pimlott (2009, p. 387): “A Histeria sexual é deliberadamente usada para fermentar uma aversão sádica a inimigos imaginados e para estimular um amor masoquista e despersonalizado em relação ao Grande Irmão”. Em 1984, de Orwell a pratica sexual é proibida e toda forma de desejo e vontade se direcionam ao amor pelo Grande Irmão, líder totalitário da Oceânia, e ao ódio à Emmanuel Godstein, o opositor do Grande Irmão.

    O Romance, enquanto gênero literário sofreu grande impacto na primeira metade do século XX, por conta do período turbulento a qual passou o mundo e, principalmente a Europa. A Primeira e Segunda Guerra Mundial junto com a Guerra Civil Espanhola, ascensão dos regimes totalitários que analisamos no segundo tópico deste trabalho e os movimentos de vanguarda, em particular o futurismo serviram de matéria literária para a criação de romances de autores engajados que viam com pessimismo mordaz o futuro da humanidade, baseados no momento histórico que vivenciavam como declara Luersen (2008, pag. 12)


    Através da extrapolação e deformação de problemáticas referentes ao período em que as ficções distópicas foram publicadas, os autores conseguiam tanto empregar uma inegável tensão que favorecia a narrativa em seus livros, como também relacionar estas suas histórias, geralmente futuristas e com projeções fantasiosas, com a sociedade de seu tempo. O produto da comunicação, mais especificamente da propaganda, aparecia como instrumento governamental de controle, sendo percebido claramente naquela que talvez seja a obra literária distópica mais conhecida entre todas, 1984, de George Orwell.


    A evolução do Romance Moderno e a sua transformação no decorrer do século XX forneceram os instrumentos necessários para a criação literária de George Orwell, que foi fortemente afetado pelo movimento futurista e pelo contexto histórico de seu período. 1984, de George Orwell é um exemplo clássico de Romance Moderno, pois trás consigo os elementos e uma parte considerável das inovações literárias quando de sua publicação


2.2- UTOPIA



    Desde que o mundo existe o homem sempre tem sonhado com a construção de uma sociedade perfeita. Um lugar onde não haja fome, dor, trabalho excessivo e outros males que o tem o afetado desde o principio dos tempos. Para Coelho (1996. P. 7) “a imaginação utópica é interior ao homem, isto é, é algo de seu intimo, é intima dele, lhe é inerente”. Portanto a literatura utópica surge a partir desse sonho, se consolida e se torna um gênero literário. A partir dessa premissa é que será estudado neste tópico as principais produções literárias existentes.

    De acordo com François Laplantine (2002. P. 36), “utopia é a construção matemática da sociedade perfeita, uma construção submissa aos imperativos de planificação absoluta que tudo prevê e tudo controla”. O conceito de Laplantine para utopia toca em alguns pontos daquilo que de algum modo seja a utopia, no entanto se faz necessário realizar uma abordagem de todo processo de construção das produções utópicas para enfim entender o que é a utopia em toda sua completude.

    A primeira vez que o conceito sistematizado de Utopia apareceu foi no famoso livro “A República” do filosofo grego Platão, este imaginou uma nova forma de governo, fundamentada no equilíbrio entre os poderes, fazendo com que tanto o estado quanto o povo vivessem de forma justa e harmônica. Dessa forma, ele propõe uma sociedade que considerava ser a ideal. De acordo com Wojciekowski (2009), A República aborda muitas temáticas, falando desde justiça, e abrangendo até a teorização de uma sociedade impecavelmente justa debatendo ainda o desregramento da alma, a reencarnação e os castigos dos desonestos e as recompensa dos justos.

    A influência do pensamento utópico de Platão foi de fundamental relevância para os demais tipos de utopias que passaram a existir desde então, a exemplo, temos as utopias religiosas, o qual esse pensamento de Platão se consolidou com os preceitos religiosos da época. Desse modo, Coelho (1996, p. 15) afirma:


    A ideia de um paraíso a alcançar, depois, mais tarde, ao fim de alguma coisa- em todo caso, no futuro- ou a intuição de um paraíso perdido, esquecido lá para trás e do qual o homem teria saído ou sido expulso, são as formas comuns de manifestação religiosa da vontade utópica.


    O pensamento utópico submerge durante séculos na Idade Média, contudo se manteve a reminiscência das profecias religiosas, assim como o surgimento das profecias contraditórias, que segundo Carandell (1979, p. 34): “Determinarão o aparecimento, em fins da Idade Média, nos momentos de maior desespero devido às epidemias, à fome, as guerras e as invasões de mongóis e turcos, de inúmeras utopias de tipo popular”. Nessa ótica as utopias populares se apresentam a partir do desapontamento do povo em relação ao seu estado atual, passando a idealizar uma forma de vida inventariada nas mais variadas formas de prazeres. A este lugar se deu o nome de Cocanha. Trigueiro (2006, p. 01) afirma:


    A cocanha era um país imaginário localizado em algum lugar da Europa Medieval. Lá o seu povo vivia feliz e cheio de amor, não faltava emprego para ninguém, até por que não era necessário trabalhar, tudo era fácil e de graça. Nos rios corria vinho tinto da melhor qualidade, dinheiro dava em árvore e não tinha valor, não havia doença nem fome e tinha uma fonte de água que rejuvenescia as pessoas, ou seja, não havia idosos, ouro virava tijolo para as construções das casas, de dia e de noite tudo era festa com muita bebida e comida.


    Com o fim do feudalismo e a descoberta da America no século XVI, nasce no imaginário de muitos escritores, seguidos pelo pensamento utópico de Platão, novas e fantásticas utopias, formuladas na idealização de uma sociedade mais igualitária e que contrastava com a realidade da época. É nesse período que o inglês Thomas More, pública a sua mais notável obra, A Utopia, que em grego significa “lugar nenhum”, essa alegoria de um lugar primoroso, descrito por Thomas More, se deu além do já citado fim do sistema feudal e surgimento de novos territórios, por razões intrínsecas que passava a Inglaterra de seu tempo, como bem salienta Coelho (1996, p.27):


    Preocupado com a situação de sua Inglaterra, convulsionada diante da tremenda desigualdade da distribuição da renda, com suas classes desprotegidas assoladas pela fome endêmica (o que se traduzia em agitação e rebeliões), More cristalizava em sua obra, de certo modo, a vontade de outros como ele que pretendiam melhorar um pouco as condições sociais, sem chegar aos extremos da revolução.


    Dessa forma, contrastando com a situação da Inglaterra no século XVI, More passa a imaginar uma cidade ideal para se viver, destilando sátira ao modelo de governo vigente, fazendo com que sua obra se torne uma metáfora da Inglaterra da idade média. More discorre em A utopia, uma cidade perfeita que atendia aos anseios de todos. Conforme Carandell (1979):


    Na ilha chamada Utopia reina a justiça e o bem estar [...] os cidadãos dividem o dia em três partes: oito horas para dormir, dez para o ócio e seis para trabalhar [...] o Intercambio de produtos entre a cidade e o campo, bem como a perfeita entrega dos produtos dos particulares aos armazéns, fazem com que esse comunismo total impeça a pobreza e os seus reflexos (roubo, a acumulação). O dinheiro é desnecessário e se ensina a desprezar as pedras e metais preciosos. Cada família ocupa uma bonita casa com jardim [...] o governo é presidido pelo príncipe, eleito entre os arquifilarcos e estes, por sua vez, entre dez filarcos que são os representantes diretos de cada trinta famílias. A educação é uma combinação de ensino agrícola pratico e de aritmética e geometria.


    Segundo Wojciekowski (2009) essa analogia de embate entre a idealização de uma cidade perfeita e a situação que se encontrava a Inglaterra é a primeira conceituação e a mais conhecida sobre o que vem constituir uma utopia. Desse modo, passando desde então o titulo da obra de Thomas More, a designar essa forma de pensamento, de lugar perfeito e idealizado. O conceito para Coelho (1996, p. 19) se caracteriza pela busca de uma organização social:


    Que todos sejam tratados do mesmo modo, homens, mulheres e crianças. Que ninguém seja considerado superior aos outros por ter mais coisas do que eles. Que os mais competentes e honestos dirijam os negócios públicos. Que ninguém seja obrigado a fazer o que não quer o que não pode e não deve. Ou, então, que desapareça o dinheiro. E a propriedade privada. E que exista a liberdade de expressão, e a liberdade religiosa. E que a educação seja acessível a todos.


    Entre as muitas utopias produzidas nos séculos XVII e XVIII, destacam-se a Nova Atlântica, de Francis Bacon e a Cidade do Sol, de Campanella. Bacon em sua utopia defendia uma sociedade conduzida pelos cientistas, dessa maneira se contrapondo com o pensamento utópico de Platão e More. Conforme Carandell (1979, p. 48) a Nova Atlântica:


    É a ilha imaginária de Bensalem, situada além da América e governada por um rei, na qual se mantêm as classes sociais e a propriedade privada e onde funciona uma instituição toda poderosa, a Casa de Salomão, formada por cientistas, verdadeira elite do país [...] na faustosa ilha, o povo não conta. Apenas a ciência impera com seus fantásticos inventos que a Bacon pareciam tão possíveis como a outros utopistas suas ideias de igualdade ou comunidade.


    Campanella em sua obra utópica, A cidade do Sol, alegoricamente situada no Ceilão , consolida o pensamento utópico de Thomas more, de uma sociedade dirigida pela justiça com os anseios cientificistas de Bacon. Na cidade imaginada pelo autor, tudo era dividido de forma igualitária. Carandell (1979, p. 49-51) afirma:

    O comunismo de bens é total [...] as facções e serviços são distribuídas a todos por igual, ninguém deve trabalhar mais de quatro horas diárias, podendo dedicar o resto do tempo a estudo, à discussão, à leitura [...] a alegres exercícios mentais e físicos [...] opõe à promiscuidade privada [...] deve-se levar em conta [...] o máximo poder aos mais entendidos na ciência e que se ensina às crianças os princípios científicos e morais.


    A Revolução Francesa, com seu projeto iluminista e o lema de “liberdade, igualdade e fraternidade”, propõe novas expectativa utópicas que se solidificam ao prolixo século XIX, dessa forma passando a surgir no panorama mundial da época os chamados socialistas utópicos. Entre vários escritores destaca-se o francês Henri de Rouvroy, conde de Saint- Simon (1760-1825), que segundo Coelho (1996), pregava uma sociedade onde a propriedade privada não era admitida, constituída de uma classe industrial, o estado não governava, existia apenas para conduzir o direito aos benefícios sociais, como o trabalho, educação e assistência social, os governantes seriam os chefes de empresas, dessa forma deixando o povo de fora das decisões políticas e sua sociedade só existiria se a ciência se aliasse a religião, a um paraíso situado na terra e não em um lugar mítico.

    Outro socialista utópico a se destacar foi o também francês Charles Fourier (1772-1837) que defendia uma sociedade composta pelos falanstérios, espécie de prédio parecido com hotéis, Coelho (1996, p. 58-59) afirma:


    Funcionando basicamente como uma cooperativa. O objetivo do falanstério [...] era garantir a seus aderentes um mínimo vital de subsistência, a ser obtido não através de um salário, mas pela participação de todos na produção de unidade [...] organizada basicamente sobre a exploração de terra e não da indústria [...] ao contrário de Saint- Simon, Fourier visa na agricultura o caminho necessário para a nova sociedade.


    Marx e Engels, mesmo tendo a consciência do legado que os socialistas utópicos trouxeram para sociedade, fazem criticas mordazes a esse tipo de organização. Segundo Carandell (1979, p. 144- 145), Marx e Engels:


    Acusam-nos de não propor meios adequados para se atingir a sociedade ideal [...] acusa-os de apenas proporem ideais de sociedade em abstrato, esquecendo que o verdadeiro comunismo, o científico [...] consistia na realização daqueles objetos no quadro histórico concreto.


    Dessa forma, depreende-se que a utopia sempre se esboçará em quase todos seus projetos utópicos em um lugar inexistente, alegórico, geralmente situado em uma ilha de difícil acesso. Na valorização do contato com o ambiente natural e o trabalho prontuário de subsistência; no desaparecimento da propriedade privada e, por conseguinte dos contrates sociais, fazendo dessa maneira que reinasse a justiça e a harmonia entre os seres habitados nessas fantasiosas cidades.


2.3- DISTOPIA



    A literatura do século XX, sobretudo aquela produzida em sua primeira metade, tem como característica basilar o sentimento de descrença para com o futuro do homem, essa descrença é resultante tanto de uma realidade histórica desoladora, quanto da quebra de uma forma de pensamento a muito evidenciada no imaginário da literatura ocidental. Para Fromm (1961, p. 365):


    O sentimento de desesperança no futuro do homem contrasta marcadamente com uma das características mais fundamentais do pensamento ocidental: a fé no progresso humano e na capacidade do homem de criar um mundo de justiça e paz. Essa esperança tem suas raízes tanto no pensamento grego como no romano, assim como no conceito messiânico dos profetas do velho testamento.


    Essa esperança perdurou até a primeira metade do século XX, período marcado pelos maiores conflitos armados da história da humanidade. A velha tradição literária que tinha como principal característica a projeção de uma sociedade perfeita em algum lugar no futuro é rompida e substituída imediatamente por outra, que se distinguia por ser o seu reverso. Para Fromm (1961, p. 367):


    A esperança na perfeição individual e social do homem, claramente colocada em termo filosóficos e antropológicos nos escritos de filósofos iluministas do século XIII e nas obras de pensadores socialistas do século XIX, permaneceu inalterada até o período pós-primeira guerra mundial. Essa guerra, na qual milhões morreram pelas ambições territoriais das potências europeias, ainda que sob a ilusão de estarem lutando pela paz e pela democracia, foi o inicio do desenvolvimento que levou, num tempo relativamente curto, à destruição da tradição ocidental de esperança, que contava dois mil anos de idade, e a sua transformação num sentimento de desespero.


    É a partir desse sentimento de desesperança que a produção distópica começa a ganhar forma no cenário literário mundial, todavia anterior aos romances distópicos desenvolvidos no século XX, já haviam ocorrências de escritos que traziam consigo certo descontentamento para com o pensamento utópico e a crença no progresso cientifico. Neste tópico serão abordados os romances distópicos em suas primeiras aparições, ainda no século XIX, até o advento do século XX.

    De acordo com o dicionário Aurélio (1991, p. 730) distopia seria a “descrição ou representação sombria de sociedade submetida ao regime totalitário, como apresentadas em romances como 1984, de George Orwell, Fahrenheit 451, de Ray Bradbury ou admirável mundo novo de Aldous Huxley”. Apesar de, essa definição ser pertinente e se reporta aos três grandes clássicos da literatura distópica, ela parece, não dar conta de abarcar toda a dimensão deste gênero literário, uma vez que os primeiros romances distópicos são anteriores á esses três livros, remontando ainda o século XIX.

    Muitos autores costumam localizar as distopias como características do século XX, é o caso de Teixeira Coelho (1996) e Smith (2004) que classificam este gênero literário somente a partir da publicação de Admirável mundo novo, em 1932. Isso se justifica porque os três romances mais expressivos da literatura distópica são publicados somente no século XX, ofuscando as primeiras distopias escritas ainda no século anterior.

    Para melhor entender ou conceituar a distopia é necessário fazer uma retomada a partir de seus primeiros registros, período de ascensão da classe burguesa e industrial, de acordo com carandell (1989) surge no século XIX, momento áureo do pensamento iluminista, vultos daquilo que se tornaria mais tarde o novo gênero literário em oposição ao idealismo utópico, esse gênero era a anti-utopia . Carandell (1989, 36) aclara:


    Um século antes, por exemplo, a Duquesa de newcastel publicou a descrição de um novo mundo [grifo do autor], chamado mundo ardente [grifo do autor] [...], mas tanto nesta obra como na muito genial Swift pode-se ver também a origem das chamadas anti-utopias, próprias do século XX, nas quais se apresenta ironicamente a monstruosa sociedade atual como se fosse uma utopia feliz.


    Mais tarde, aparecerão no cenário literário obras como A raça futura, de Lord Lyton com fortes características distópicas. Na distopia idealizada por Lyton, em 1860, a vida se passa no subsolo terrestre e os homens são designados de vril-ya, pois possuem a energia atômica, chamada vril, que proporciona grande quantidade de bens. De acordo com Carandell (1980, p. 116) “trata-se da primeira anti-utopia, pois que a felicidade, derivada do poder do vril e do medo que inspira é inumana”. O poder do vril torna impossíveis as guerras e o poder absoluto, pois todos podem facilmente destruir o mundo ou facilmente comandá-lo.

    Como reação ao otimismo da nascente sociedade industrial e da utopia progressista de Wells, surge em 1904, o livro O Napoleão de Notting Hill, G. K. Chesterton, de acordo com Carandell (1980) se tratava de uma anti-utopia, pois o texto faz uma critica mordaz ao socialismo reformista defendido por Wells, uma vez que o autor descreve o mundo desgraçado a que se chegaria, caso o imperialismo continuasse.

    Em 1928 é publicado o livro A maquina pára, de E. M. Foster, ainda como reação ao otimismo no progresso cientifico, em particular, do maquinário industrial proposto por Wells que acreditava que as máquinas trariam a felicidade plena aos homens. Sobre esta obra carandell (1980, 124) explica:


    Foster imagina a sociedade em que as máquinas fazem tudo e onde os homens vivem presos em habitações unicelulares (comunicando-se entre si através de televisores), até que um dia as máquinas param, morrendo sepultados todos os habitantes do planeta.


    Antes mesmo da publicação de Admirável mundo novo, de Aldous Huxley em 1932, já havia sido publicado em 1928 um livro distópico chamado Nós, do escritor russo Yvgeni Zamianty para Smith (2004) sem este livro teria sido improvável que Huxley escrevesse Admirável mundo novo e Orwell tivesse criado o romance 1984. A influência desse livro foi tão grande para as distopias do século XX que Smith (2004, P. 631, 632) afirma:


    É muito superior a 1984 em termos de imaginação [...] é suficiente chamar a atenção para ele como a maior distopia já escrita nos tempos modernos e sublinhar que o livro de Orwell, embora esteja longe de ser um plágio, não poderia existir sem ele [...] nós está certamente entre os cento e poucos melhores romances de todos os tempos.


    No ano de 1932, o escritor britânico Aldous Huxley publica o livro Admirável mundo novo, que faz parte das três distopias mais expressivas do século XX. Para Carandell (1980, P. 126) se trata da “anti-utopia mais pessimista e sarcástica jamais escrita contra a fé do homem atual no progresso cientifico”. Em admirável mundo novo o autor faz uma critica mordaz ao progresso cientifico, na medida em que as crianças não são mais concebidas em parto normal, mas são apenas decantadas em laboratórios e condicionadas desde sua concepção.

    Em 1953, nos Estados Unidos, foi publicada outra distopia chamada Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Em seu conjunto o livro faz criticas a sociedade de consumo e não busca realizar uma previsão política e, sim social, principalmente no que tange a realidade americana. Para Passos (2007) a critica é direcionada a indústria cultural de massa, que já nos anos cinqüenta é identificada pelo autor como instrumento de alienação.

    Em 1949, após o termino da Segunda Guerra Mundial, George Orwell publica na Inglaterra o famoso livro 1984, distopia em que faz sátiras ferrenhas dos regimes totalitários, em particular, ao regime stalinista na Rússia. Para Hitchens (2010) é impossível ler o livro e não associá-lo aos expurgos ocorridos durante os processos de Moscou, há também as sessões de tortura pelo qual passa Wiston Smith, protagonista da trama, a intensa modificação do passado histórico e outros fatos que também podem ser associados ao que ocorreu na Rússia comunista. Para Carandell 1984 (1980, P. 130) representa:


    Um libelo anticomunista, mas também anticapitalista, na medida em que, como anti-utopia, mostra o trágico futuro que espera a civilização caso se limite ao sistema de controle dos indivíduos, com capacidade ilimitada que o estado pode ter para controlar através da violência e da propaganda.


    As distopias se caracterizam por serem sátiras das utopias e dos projetos idealizados pelos utopistas do passado. Coelho (1996, P. 45) chega a afirmar que “Admirável mundo novo e 1984 [...] ambas são, no fundo, a República levada as suas ultimas conseqüências.”. A República a que se refere o autor é o estado ideal criado por Platão, em que imagina um governo ditatorial com poderes absolutos sobre os indivíduos.

    De acordo com o período histórico em que foram escritas, as distopias assumem algumas características, mas em sua essência permanecem inalteradas. Para Passos (2007, P. 3) “a distopia é o contraponto, o inverso, a negação da utopia: a proposta de um avanço científico-social que culmina em estruturas opressoras e populações alienadas”. Para Bradbury, por exemplo, a grande ameaça à liberdade individual é a indústria cultural de massa, mas para Orwell e Zamianty o perigo maior eram as ditaduras totalitárias, tão comuns na primeira metade do século XX. Para Huxley o progresso científico poderia acarretar em uma tirania cerceadora das liberdades individuais.

3. ELEMENTOS DISTÓPICOS EM 1984



    Neste último capitulo será realizada uma análise dos personagens do livro 1984, e a descrição do futuro nessa distopia, com tudo que ela pode trazer de negativo, e a comparação das características mais marcantes nas utopias políticas que são distorcidas na distopia de 1984, segundo a visão de Orwell.


3.1- TRATAMENTOS DAS PERSONAGENS



    As personagens são o cerne da narração. É através delas que se dá o enredo. Podendo afirmar que sem elas não existiria enredo. Em toda narrativa até na mais real, como é o caso do documentário ou de uma entrevista há a presença de personagens. Segundo Candido (1968, p. 53-54):


    O enredo existe através das personagens; as personagens vivem no enredo [...] representa a possibilidade de adesão efetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos de identificação, projeção, transferência etc. A personagem vive o enredo e as ideias, e os torna vivos.


    Na obra 1984, de George Orwell, os personagens são tratados de forma indiferente e manipulados pela tirania do Grande Irmão, não possuem liberdade de pensamento e são ininterruptamente vigiados pelas teletelas, comandadas pela Polícia das Ideias, que tinha a função de vigiar todo e qualquer ato dos cidadãos da Oceania, continente onde o Grande Irmão governa.

    O personagem principal da obra é Winston Smith, um homem de trinta e nove anos que trabalha no Ministério da Verdade, Miniver na Novafala, um ser aparentemente fraco e hipocondríaco, que segue todos os dias a mesma rotina de uma vida monótona. Orwell (2009, p. 11-12):


    Winston, com seus trinta e nove anos e sua úlcera varicosa acima do tornozelo direito, subiu devagar, parando para descansar várias vezes durante o trajeto [...] o macacão azul usado como uniforme do Partido não fazia mais que enfatizar a magreza de seu corpo frágil, miúdo. Seu cabelo era muito claro, o rosto naturalmente sanguíneo, a pele áspera por causa do sabão ordinário, das navalhas cegas e do frio do inverno que pouco antes chegara ao fim.


    Winston morara sozinho em seu apartamento, e se casara uma vez, sua ex- esposa era totalmente fiel aos princípios do Partido, deixara Winston pelo fato de não ter conseguido ter filhos, embora pelo menos uma vez por semana eles praticassem o ato sexual, mas o faziam sem amor e sem afeto, somente para procriação, pois era um “Dever para com o Partido”. Winston é um dos personagens que questiona o modelo vigente de governo, não podendo manifestar sua intolerância contra o Partido do Grande Irmão, age secretamente, depositando seus pensamentos em caderno de notas, que passaria a ser uma espécie de diário, no qual relatava toda sua indignação perante o governo, registrava aquilo como uma espécie de documento que discorria sobre o presente, sobre o que acontecia naquele momento, ao escrever pensava nas gerações futuras, o deixaria como um legado de uma civilização que vivia em verdadeiro estado de repressão e sem liberdade. Orwell (2009, p.17-18)


    4 de abril de 1984, recostou-se na cadeira. Estava possuído por uma sensação de absoluto desamparo. Para começar, não sabia com certeza se estava mesmo em 1984 [...] nos tempos que corriam era impossível precisar uma data sem uma margem de erro de um ou dois anos. Para quem, ocorreu-lhe perguntar-se de repente, estava escrevendo aquele diário? Para o futuro, para os não nascidos.


    Ao contrário de Winston, está os Parsons, uma família que seguia com devoção e rigor os lemas do Partido, eram seres totalmente fácies de ser manipulados, o Sr. Parsons um típico cidadão que vivia para o seu líder, se dedicara desde criança a servi-lo, passou por todas as etapas com extrema dedicação até se torna membro do Partido. Orwell (2009, p. 72):


    Tudo em sua aparência evocava um meninozinho em dimensão aumentada, a tal ponto que, embora vestisse o macacão regulamentar, era quase impossível não pensar nele como se estivesse envergando o short azul, a camisa cinza e o lenço vermelho dos Espiões [...] Com efeito, sempre participava de uma caminhada comunitária ou de outra atividade física qualquer, Parsons aproveitava o pretexto para retomar o uso do short.


    Os filhos dos Parsons seriam o modelo de como as crianças eram educadas para servir ao Partido desde a sua mais tenra infância. Estavam sempre dispostas a delatar quem suspeitassem de traição. Eram verdadeiros agentes secretos do Estado. Preparados pela organização dos espiões eram extremamente obedientes aos lemas do Partido, possuíam apatia em relação a qualquer pessoa, inclusive aos próprios pais, os quais eram delatados por qualquer suspeita de Pensamento-crime, que eram crimes cometidos pelos pensamentos. Orwell (2009, p.36):


    Eram transformadas em selvagens incontroláveis de maneira sistemática – e nem assim mostravam a menor inclinação para rebelar-se contra a disciplina do partido e tudo que se relacionasse a ele. As canções, os desfiles, as bandeiras, as marchas, os exercícios com rifles de brinquedo, as palavras de ordem, o culto ao Grande Irmão - tudo isso, para elas, era voltada como uma espécie de jogo sensacional. Toda a sua ferocidade era voltada para fora, dirigida contra os inimigos do Estado, contra os estrangeiros, os traidores, os sabotadores, os criminosos do pensamento. Chegava a ser natural que as pessoas com mais de trinta anos temessem os próprios filhos. E com razão, pois era raro que uma semana se passasse sem que o Times trouxesse um parágrafo descrevendo como um pequeno bisbilhoteiro – “herói mirim” era a expressão usada com mais freqüência – ouvira às escondidas os pais fazerem algum comentário comprometedor e os denunciara à Polícia das Ideias.


    O Sr. Parsons era tão fanático e obediente ao Grande Irmão que nunca questionara suas atitudes, até mesmo quando fora preso pela Polícia das Ideias, pelo delito do Pensamento-crime, ainda que não lembrasse que tivera tido realmente um pensamento contra o governo, acreditava ter o cometido, confiava que o Partido jamais faria injustiça. Orwell (2009, p. 275):


    “Você é culpado?”, perguntou Winston.
“Claro que eu sou culpado!”, exclamou Parsons com um olhar servil para teletela. “Você acha que o Partido iria prender um inocente?” [...] “Pensamento-crime é uma coisa horrível, velho”, disse sentencioso. “Eu estava lá trabalhando, tentando fazer minha parte – nunca imaginei que tivesse alguma coisa negativa na minha mente. E aí comecei a falar dormindo. Você sabe o que eles me ouviram dizer? [...]‘abaixo o Grande Irmão’! Sim eu disse isso! [...] Sabe o que vou dizer a eles quando comparecer no tribunal? ‘obrigado’, vou dizer ‘obrigado por me salvarem antes que fosse tarde demais’”.


    Syme é mais um dos personagens secundários, igualmente aos Parsons seguia a doutrina do partido a risca, fazia parte do Departamento de Pesquisas, e trabalhava na elaboração do novo dicionário da Novafala, uma pessoa que Winston gostava de ter como companhia. Orwell (2009, p. 64-65):


    Era seu amigo Syme, que trabalhava no Departamento de Pesquisas. Talvez o termo não fosse “amigo”. Agora ninguém mais tinha amigo, só camarada: mas a companhia de alguns camaradas era mais prazerosa que a de outros. Syme era filólogo, especialista em Novafala [...] Era um sujeito minúsculo, menor ainda que Winston, de cabelo escuro e grandes olhos protuberantes ao mesmo tempo tristonhos e zombeteiros, que davam a impressão de interrogar a fisionomia do interlocutor enquanto falava com ele.


    Syme era muito inteligente, e segundo Winston seria capturado e morto, por apresentar conhecimento e informações em demasia, sendo que algum momento poderia se utilizados contra o Partido. Orwell (2009, p. 71-71):


    Syme será vaporizado, sem sombra de dúvidas, pensou Winston [...] Ele era desprovido de discrição, de indiferença, de uma espécie de estultícia salvadora. Ninguém poderia dizer que ele era inortodoxo. Acreditava nos princípios do Socing, venerava o Grande Irmão, se rejubilava com as vitórias, odiava os hereges, não apenas com sinceridade como com uma espécie de zelo incansável, com uma atualidade de informações de que membros comuns do Partido não nem chegavam perto.


    A ortodoxia e o comportamento dos Parsons e Syme mostram o pensamento e realidade da maioria da população, todos viam o Grande Irmão como algo positivo. Conforme Pimlott (2009, p.383) “– o estupidamente animado Parsons [...] o fanático Syme – são meras caricaturas de ativistas políticos”, desse modo veneravam o seu líder igualmente a um deus, suas regras jamais eram questionadas, seguidas fielmente pelos seus semelhantes, como verdadeiros mandamentos.

    Contrapondo-se aos pensamentos dos Parsons e Syme, Winston se indignava cada vez mais com a falsa democracia pregada pelo Estado. Ele sabia que tudo era maquiado pelo Partido, afinal fazia parte do Ministério da Verdade, o qual era responsável pelas notícias, seu trabalho consistia em alterar o que era dito no passado e que no atual momento discorria de maneira diferente, falsificando registros e destruindo qualquer prova que mencionasse o contrário do que se afirmava no presente, “Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”, dizia mais um dos lemas do partido, dessa forma o Grande Irmão manipulava o passado e a história sem nenhuma dificuldade. Orwell (2009, p.54)


    Esse processo de alteração continua valia não apenas para jornais como também para livros periódicos, panfletos, cartazes, folhetos, filmes, trilhas sonoras, desenhos animados, fotos, – enfim, para todo tipo de literatura ou documentação que pudesse vir a ter algum significado político ou ideológico. Dia a dia e quase minuto a minuto o passado era atualizado. Desse modo era possível comprovar com evidências documentais que todas as previsões feitas pelo Partido haviam sido acertadas; sendo que, simultaneamente, todo o vestígio de notícia ou manifestação de opinião conflitante com as necessidades do momento eram eliminados. A história não passava de um palimpsesto, raspado e reescrito tantas vezes quantas fosse necessário. Uma vez que executado todo o serviço, era absolutamente impossível provar a ocorrência de qualquer tipo de falsificação.


    Winston chegara mesmo a idealizar um futuro melhor onde as pessoas fossem livres e felizes, estaria assim diante de um pensamento utópico, se opondo ao mundo em que vivia. Orwell (2009, p.39):


    Ao futuro ou ao passado, a um tempo em que o pensamento seja livre, em que os homens sejam diferentes uns dos outros, em que não vivam sós – a um tempo em que a verdade exista e em que o que for feito não possa ser desfeito: Da era da uniformidade, da era da solidão, da era do Grande Irmão, da era do duplipensamento – saudações!.


    Igualmente a ele, Júlia, mostrava ter aversão ao Grande Irmão, era uma jovem integrante do Partido Externo, comandava a base juvenil antissexo, e trabalha no Ministério da verdade, no Departamento de Ficção, embora, seguisse a risca as obrigações que lhe eram dadas, odiava o partido e infringia todas as regras possíveis empregadas por ele, se mostrava ortodoxa com intuito de não levantar suspeita contra seu verdadeiro sentimento de repulsa ao governo. Orwell (2009, p. 157- 159)


    Júlia tinha vinte e seis anos [...] e trabalhava como ele bem imaginara, nas máquinas romanceadoras do Departamento de Ficção [...] Era “ininteligente, mas gostava de trabalhar com as mãos e ficava à vontade lidando com as máquinas [...] Fora líder da tropa dos Espiões e secretária setorial da Liga da Juventude antes de se filiar à liga juvenil Antissexo [...] Chegara a ser selecionada – sinal inflável de boa reputação-para trabalhar na Pornodiv, divisão do Departamento de Ficção encarregada de produzir pornografia barata para distribuir entre os proletas. Para ela, a vida era uma coisa muito simples. Você fica querendo se divertir e “eles”, ou seja, o Partido faz de tudo para evitar que você se divirta. Você faz tudo para infringir as regras. Ela parecia achar muito natural que “eles” quisessem privar você de seus prazeres, assim como era natural que você quisesse evitar ser flagrado. Odiava o partido e dizia isso com palavras grosseiras [...] a coisa mais inteligente a fazer era infringir as regras e dar um jeito de continuar vivo.


    É perceptível que Júlia queria apenas viver uma vida que transgredisse as normas impostas pelo Partido, não querendo se envolver em organizações contra ele, pois já tinha uma forma de fazer isso. Desobedecia ao Partido de formas mais insignificantes como comprar chocolate, café, açúcar e maquiagem no mercado negro à forma mais expressiva como o ato de manter relações sexuais com vários parceiros, uma vez que essa ação era totalmente condenada pelo Partido, considerada uns dos grandes crimes, Pimlott (2009, p.388), aduz “A felicidade sexual é a maior ameaça ao sistema”. As relações sexuais só poderiam ser feitas com seus parceiros e tinham o único intuito de atender as regras do Partido, de procriar para servir ao Estado.

    O sentimento de revolta de Winston, o afastavam cada vez mais dos lemas do Partido. Júlia assim como Winston tem a consciência de tudo que é aderente ao Partido é mentira e distorcido, envolvida pelo amor que sentira por Winston, se une ao seu companheiro para fazer parte de uma possível organização contra o governo, chamada de Confraria, organização secreta de conspiração, instruída para derrubada do estado e comandado por um dos maiores inimigos do partido, Goldstein. Ao se tornarem membros da confraria Winston e Júlia estavam sujeitos a qualquer missão que esta os determinasse, tendo como instrutor O’Brien um dos membros internos do Partido do Grande Irmão, que dizia estar infiltrado a serviço da Confraria. Orwell (2009, p. 21):


    O’Brien, membro do Núcleo do Partido e ocupante de um cargo tão importante e remoto que Winston fazia apenas uma vaga ideia de qual fosse sua natureza [...] O’Brien era um homem grande e corpulento, de pescoço grosso e rosto rude, jocoso, brutal. A despeito da aparência impotente, seu estilo não era desprovido de sedução. Tinha um jeito de reposicionar os óculos no alto do nariz que era curiosamente civilizado.


    O’Brien se mostra um dos personagens mais disfarçados e ortodoxos do romance, esperto farejava de longe quem poderia ser uma ameaça ao Partido. Observava Winston há anos, todos seus passos eram monitorados pelas teletelas, fingiu ser amigável, confiável e se dizia fazer parte da confraria, tudo com pretexto de capturar Winston, Orwell (2009, p. 287):

    O’Brien comandava tudo. Era ele que lançava os guardas contra Winston e também quem impedia que o matassem. Era ele que decidia quando Winston devia gritar de dor, quando devia ter um descanso, quando deveria ser alimentado, quando deveria dormir, quando as drogas deviam ser injetadas em seu braço. Era ele que fazia as perguntas e sugeria as respostas. O’Brien era o algoz, o protetor, o inquisidor, o amigo.


    Ainda a respeito de O’Brien, Pynchon (2009, p. 400-401) afirma :


    O’Brien, o sedutor e traidor, protetor e destruidor [...] acreditava com toda sinceridade no regime a que serve, podendo todavia perfeitamente se passar por um revolucionário dedicado, comprometido com a deposição do regime. O’Brien pensa em si como mera célula do organismo maior do Estado, mas é de sua individualidade convincente e contraditória que lembramos.


    Dessa forma, O’Brien seria representante da tirania, autoritarismo e individualismo, um personagem perverso e manipulador, que tinha total indiferença em relação ao ser humano, só se importando com as regras do Partido. Segundo Pimlott (2009, p. 383): “Dos três personagens principais, apenas o sinistro O’ Brien é uma construção [...] sombria e definitiva do totalitarismo”. Seu comportamento mostra como o poder do Grande Irmão era unilateral, e como seus representantes internos eram capazes de fazer verdadeiras lavagens cerebrais para aqueles que iam contra o Partido, utilizando as mais bárbaras formas de torturas para lhes arrancar a verdade e aceitar as verdades do Grande Irmão. Com esse poder de manipulação e persuasão O’Brien conduz Winston a ser tornar um verdadeiro seguidor das doutrinas do Partido, passando assim a venerar o grande irmão. Orwell (2009, p. 346):


    Olhou para o rosto descomunal. Quarenta anos haviam sido necessários para que ele descobrisse que tipo de sorriso se escondia debaixo do bigode negro. Ah, que mal-entendido cruel e desnecessário! Ah, que obstinado autoexílio do peito amoroso! Duas lágrimas recendendo a gim correram-lhe pelas laterais do nariz. Mas estava tudo bem, estava tudo certo, a batalha chegara ao fim. Ele conquistara a vitória sobre si mesmo. Winston amava o Grande Irmão.


    Dessa forma é perceptível que as personagens são manipuladas ideológica e psicologicamente pelo Grande Irmão, personagem que não aparece em nenhum momento interagindo como qualquer outro, sendo descrito através do narrador e das próprias personagens. Orwell (2009, p. 11)


    O vestíbulo cheirava a repolho cozido e a velhos capachos de pano trançado. Numa das extremidades, um pôster colorido, grande demais para ambientes fechados, estava pregado na parede. Mostrava simplesmente um rosto enorme, com mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, de bigodão preto e feições rudemente agradáveis.


    Para Hitchens (2009) a figura do Grande Irmão se assemelha fisicamente ao ditador Josef Stalin, uma vez que, o romance distópico 1984, seria uma alegoria política do dos regimes totalitários, sobretudo o Stalinismo Russo, muito comuns no século XX. Nessa ótica os personagens são representados como verdadeiros fantoches de um governo totalmente autoritário agindo de forma indiferente uns com os outros, controladas pelo medo e opressão.


3.2- DESCRIÇÕES DO FUTURO EM 1984



    Em sua obra 1984, Orwell é influenciado pelo seu estado vigente, assim procura fazer uma projeção de como estaria o mundo a partir desse estado atual, semelhante a Orwell, Thomas More, também imaginou em sua obra, Utopia, uma sociedade diferente da qual se encontrava. Projetando-a de forma positiva e utópica, com objetivo de fazer críticas ferrenhas ao governo Inglês da época, Fromm (2009, p.366- 367) afirma:


    A Utopia de Thomas More combinou uma critica penetrante da própria sociedade do autor, de sua irracionalidade e de sua injustiça, com um retrato de uma sociedade que, apesar de não ter alcançado talvez a perfeição, resolvera a maior parte dos problemas humanos que pareciam sem solução para seus contemporâneos. O que caracteriza a Utopia de Thomas More e todas as outras é que elas não discutem princípios em termos gerais, mas descrevem de forma imaginativa os detalhes concretos de uma sociedade que corresponde aos desejos mais profundos do homem [...] essas sociedades perfeitas não estão localizadas nos “fim dos tempos”, mas já existem – elas são distante geograficamente, e não no tempo.


    Na era de Orwell, mas precisamente na primeira metade do século XX, o mundo era marcado pelo cenário de catástrofes, guerras e autoritarismo. Fazendo referência a essa época, Fromm (2009, p. 368) alega:


    A insensibilidade moral da Primeira Guerra Mundial foi apenas o começo. Outros eventos se seguiram: a traição das esperanças socialistas pelo capitalismo estatal de Stalin; a grave crise econômica do fim da década de 1920; a vitória da barbárie em um dos mais antigos centros culturais do mundo – a Alemanha; a insanidade do terror stalinista durante a década de 1930; a Segunda Guerra Mundial, na qual todas as nações em conflito perderam algumas das considerações morais que ainda existiam na Primeira Guerra Mundial; a destruição ilimitada de populações civis, iniciada por Hitler e que teve sua sequência na destruição mais total de cidades como Hamburgo, Dresden e Tóquio, e, por fim, na utilização de bombas atômicas contra o Japão.


    Dessa forma, esse estado de desespero, descrença e desânimo que cerca o homem desse período, faz com que Orwell imagine uma sociedade em uma situação ainda mais desprezível ao qual se encontrara no momento. Sendo assim, essa projeção é feita no futuro e de forma negativa, caracterizando assim as ditas distopias (vide segundo capítulo), e que Souza (1998, p. 13) ressalta, “o viés da distopia inverte a perspectiva utópica, uma vez que é previsto como pior que o presente”. Ainda sobre esse futuro calamitoso na obra 1984, de George Orwell, Fromm (2009, p. 365) afirma:


    1984, de George Orwell, é a expressão de um sentimento, e é uma advertência. O sentimento, que se expressa é de quase desespero acerca do futuro do homem, e a advertência é que, a menos que o curso da história se altere, os homens do mundo inteiro perderão suas qualidades mais humanas, tornar-se-ão autômatos sem alma, e nem sequer terão consciência disso.


    O mundo descrito em 1984 é diferente das utopias antigas que geralmente eram retratadas geograficamente em ilhas, sendo que na obra de Orwell essa projeção se dá através do tempo, no futuro, o qual o mundo é totalmente funesto, as pessoas são apáticas, não se importando umas com as outras, manipuladas por um governo tirano e autoritário, que se dá através da figura do Grande Irmão. Fromm (2009, p. 369- 370), aduz: “1984 descreve a sociedade completamente burocratizada na qual o homem é um número, desprovido de toda noção de individualidade. Isso é ocasionado por uma mistura de terror ilimitado [...] e manipulação ideológica e psicológica”. Assim é uma sociedade totalmente controlada pelas mais diversas formas de poder.

    Nesse sentido no futuro idealizado por Orwell, uma das formas de poder empregada está no mau uso da língua como ferramenta de controle, neste caso a Novafala, língua oficial da Oceânia que substituiu a Velhafala, ou o inglês padrão. Criada com o único intuito de atender as necessidades idealistas do Partido. Os princípios da Novafala (2009, p. 347) afiançam:

    O objetivo da Novafala não era somente fornecer uma meio de expressão compatível com a visão de mundo e os hábitos mentais dos adeptos do Socing, mas também inviabilizar todas as outras formas de pensamento. A ideia era que, uma vez definidamente adotada a Novafala e esquecida a Velhafala, um pensamento herege – isto é, um pensamento que divergisse dos princípios do Socing – fosse literalmente impensável, ao menos na medida em que pensamentos dependem de palavras para ser formulos.


    A Novafala foi organizada de maneira a cominar o esclarecimento perfeito e perspicaz a todos os significados que um componente do Partido quisesse convenientemente transmitir, ao passo que abandonava todos os demais sentidos e até mesmo a possibilidade do individuo atingir a eles por meios encobertos. Diante disso, utilizam-se da invenção de novos termos e principalmente, ao banimento de palavras julgadas inconvenientes, assim como à subtração de significados heréticos. De acordo com, Os princípios da Novafala (2009, p. 348):


“A palavra livre continuava a existir em Novafala, porém só podia ser empregada em sentenças como: ‘o caminho esta livre ou: O toalete está livre’. Não podia ser usada no velho sentido de ‘Politicamente livre’ [...], pois as liberdades políticas e intelectuais já não existiam nem como conceitos, não sendo, portanto, passíveis de ser nomeadas”


Ainda a respeito da Novafala Pimlott (2009, p. 390) afirma:


    A linguagem é um testemunho: ela contém camadas geológicas de eventos do passado e valores fora de moda. Orwell estava fazendo uma observação relevante tanto para o comportamento de burocratas insignificantes como para ditadores quando notou a avidez com que aqueles que evitam a verdade afastam-se assustados de palavras conhecidas e as [sic] substituem com suas próprias. Na Oceânia, o Partido criou uma linguagem sanitizada, a Novafala, para assumir o lugar do inglês tradicional e suas associações desconfortáveis. Esse esperanto ideológico é composto por palavras curtas e apocopadas “que promovem um mínimo de eco na mente daquele que fala o idioma”, e que por fim torna impossível a construção de pensamentos heréticos.


    No futuro o casamento não se daria por amor, mas sim por conveniência, na forma de prover filhos como mão de obra para o governo. Sendo o próprio Partido encarregado de escolher os parceiros uns dos outros, ao passo que uma mínima afeição ou desejo sexual fosse percebida pelo conselho, a permissão para o casamento não era concedido. Orwell (2009, p.83-84):


    O crime imperdoável era a promiscuidade entre membros do partido [...] A intenção do Partido não era apenas impedir que homens e mulheres desenvolvessem laços de lealdade que eventualmente pudessem escapar de seu controle. O objetivo verdadeiro e não declarado era eliminar todo prazer do ato sexual. O inimigo era menos o amor que o erotismo, tanto dentro como fora do matrimônio. Todos os casamentos entre membros do Partido tinham que ser aprovados por uma comissão especialmente nomeada para esse fim, e – conquanto o princípio jamais fosse exposto com clareza – a permissão era sempre recusada quando havia sinais de atração física entre o homem e a mulher em questão.

    A educação das crianças era feita pela organização dos espiões, embora morassem com os pais, cabia ao Partido instruí-las para se tornarem membros dedicados ao governo, para isso eram educados de forma totalmente rígida e indiferente, eram tão fanáticas pelo Grande Irmão, que denunciavam sem nenhuma dificuldade os próprios pais. Nesse sentindo a família em 1984 era de acordo com Orwell (2009, p. 161):


[...] Estimuladas a gostar dos filhos quase nos moldes de antigamente. As crianças, por sua vez, eram voltadas sistematicamente contra os pais e aprendiam a espioná-los e a relatar seus desvios. Com efeito, a família se transformara numa extensão da Polícia das Ideias. Era instrumento graças ao qual todos podiam ficar noite e dia cercados por informantes que os conheciam intimamente.


    No futuro de Orwell não existia a liberdade, tudo era controlado pelas Polícias das Ideias, cada movimento era seguido pelos olhos atentos do Grande Irmão, como forma de intimidar seus cidadãos estampavam grandes cartazes com os seguintes dizeres: “O GRANDE IRMÃO ESTÁ DE OLHO EM VOCÊ”, além dos cartazes, havia ainda a mais intimidadora forma de repressão contra a liberdade, as teletelas, aparelho essencial em cada casa dos membros do Partido, ficavam ligadas o dia inteiro, não podendo ser desligadas, apenas sendo permitido diminuir o seu volume. Através delas eram transmitidos, discursos do Grande Irmão, estatísticas anuais da economia, captura de adversários, assim como, os dois minutos de ódio, destinado aqueles que haviam traído o Partido. Pimlott (2009, p. 394):


    O romance, de fato, pode ser visto como uma descrição das forças que ameaçam a liberdade e da necessidade de resistir a elas. A maior parte dessas forças pode ser resumida numa simples palavra: mentiras. O autor oferece uma escolha política – entre a proteção da verdade e um resvalo na falsidade oportunista para o benefício dos governantes e exploração dos governados, nos quais reside o sentimento genuíno e a esperança última.

    Dessa forma o futuro em 1984 é a visão mais pessimista de uma sociedade que vive um momento de descrença com o seu modo de vida, mas, sobretudo como afirma Pimlott (2009), é “um protesto contra as artimanhas dos governos. É uma saraivada contra o autoritarismo sobre toda a individualidade, uma polêmica contra toda ortodoxia, uma rajada anarquista contra todo conformista incondicional.”, sendo assim, 1984, expressa todo o inconformismo de Orwell, lançado sobre um futuro não muito distante e de forma nefasta, tudo que essa atual condição de sua sociedade pode vir a se tornar, caso não haja luta contra toda forma de repressão.


3.3 - AS CARACTERÍSTICAS UTÓPICAS E SUAS CORRESPONDÊNCIAS DISTÓPICAS.



    Partindo do principio de que as distopias são o contraste das utopias ou como diria Smith (2004) o inverso das projeções utópicas, será realizado neste momento uma análise pautada nas principais características que formam um romance utopista para a seguir compará-las a seus respectivos correspondentes no livro 1984, de George Orwell.

    A projeção de uma sociedade ideal sempre foi à característica mais expressiva do pensamento utópico. As utopias clássicas ou como prefere Coelho (1996) as utopias políticas baseiam-se em projeções futuras, mas que segundo Coelho (1996, p. 51) “se tratam de um futuro ucrônico, indeterminado, mítico: inexistente mesmo enquanto possibilidade”.

    A data de acontecimento do regime do Big brother em 1984 representa uma reação ao não determinismo utópico no que toca a sua realização. Carandell (1980) afirma que é possível que o fato de os projetos utópicos, em sua grande maioria, não terem uma data definida para sua realização seja satirizada por Orwell, uma vez que o titulo do livro, 1984, faz referência a uma data definida no opressivo regime que retrata o livro.

    Uma das características mais expressivas do imaginário utópico é o desejo de coletividade, este desejo aparece em muitos escritos utopistas como é o caso de a República, de Platão. Em sua utopia Platão sugere que a família tradicional, monogâmica deveria ser abolida em favor da vida em comunidade.

    O filosofo grego propõe a abolição da família justificando que ela seria a célula geradora de todos os conflitos sociais e que é dela que emana o desejo de posse que se mostra mais forte através da propriedade privada, para Coelho (1996) Platão enxergava com bastante lucidez a relação entre família e propriedade privada. Sobre a ideia que Platão fazia da família Coelho (1996, p. 24) afirma:


    A família deveria ser explodida para ser ampliada. Com isso se eliminaria, entre outras coisas, o sentimento de posse sobre as pessoas, manifesto nos membros da família tradicional [...] Platão imaginava que para se abolir a propriedade privada a família deveria sofrer a mesma sorte.


    Junto com a abolição da família tradicional está o desejo de eliminação da propriedade privada, Coelho (1996) afirma que este é um desejo tão antigo quanto à própria imaginação utópica e para Platão a propriedade privada estava na base de todos os males sociais, da agressividade e da competição entre os homens.

    Na distopia de 1984, essa característica é satirizada no livro do opositor do Grande irmão, Emmanuel Goldstein, livro que não por acaso chama-se Teoria e prática do coletivismo oligárquico. A concretização do desejo coletivista em 1984 significou a emancipação de uma nova classe social mais opressora do que a burguesia capitalista. Orwell (2009, p. 193)


    A chamada “abolição da propriedade privada” que se verificou em meados do século, significou, com efeito, a concentração da propriedade em número muito menor de mãos, mas com a diferença de que os novos donos eram um grupo em vez de uma massa de indivíduos. [...] Coletivamente o partido é dono de tudo na Oceania, porque tudo controla, e dispõe dos seus produtos como bem lhe parece.


    Na distopia de Orwell existe uma descrença muito grande no coletivismo tão sonhado pelos utopistas. Em 1984 o coletivismo nada mais é do que a afirmação de uma nova classe dominante, os membros do partido interno. O fim da propriedade privada em 1984 não representou nada mais do que a passagem de todas as riquezas para um número bem menor de mãos.

    Outro desejo muito presente nas utopias clássicas é o estabelecimento de uma linguagem universal, para Carandell (1980, p. 128) “as utopias sempre preconizaram o entendimento universal criando idiomas artificiais e investigando as características do signo lingüístico”. Diversos autores utopistas mencionaram em suas obras a criação de uma linguagem única a qual todos os homens teriam acesso.

    Em 1984, George Orwell cria em reação a essa característica utópica a novafala que fora concebida com a intenção de subjugar os habitantes do regime do Grande Irmão, Orwell viu na linguagem um instrumento perverso de manutenção da ordem estabelecida e de uma forma de se iludir o povo. Princípios da Novafala (2009, p. 347):

    A nova fala era o idioma oficial da oceania e fora concebido para atender as necessidades ideológicas do socing, ou socialismo inglês. Em 1984 ainda não havia quem o empregasse como meio exclusivo de comunicação, tanto oralmente como por escrito. Os editoriais do Times (grifo do autor) eram redigidos no novo idioma, mas era um tour de force (grifo do autor) que só especialistas conseguiam executar. Previa-se que novafala substituísse completamente a velhafala (ou inglês padrão, como chamamos) por volta de 2050.

    Outra característica do pensamento utópico que encontra reação em 1984 é o insularismo. Os autores utopistas em sua grande maioria situaram suas sociedades ideais em lugares imaginários, mas precisamente em ilhas a que alguém chegava com muita dificuldade.
Carandell (1980) chama a atenção para o tipo tradicional de utopia que se traduz numa lenda ou num relato literário sobre uma ilha perdida no oceano, na qual alguns homens afortunados levam um tipo de vida feliz. Para Souza (1998, p. 14):

    Pode-se interpretar esse isolamento das comunidades utópicas dizendo, por exemplo, que essas sociedades fechadas querem proteger-se de influências nefastas das outras sociedades, mas pode-se também recorrer a ideia de ruptura: a utopia com apresentação de uma sociedade que inverte a realidade, expressa tal inversão pelo seu isolamento.

    Em 1984 ao invés de ilhas perdidas no oceano, existem os três superestados que formam os três grandes blocos concebidos após a grande guerra atômica. As ilhas utópicas são lugares de paz e fartura, mas os superestados da distopia de Orwell são regiões que vivem em estado constante de guerra onde as populações passam por diversas privacidades e cujos limites são demarcados de acordo com as batalhas. Orwell (2009, p. 174):

    Com a absorção das Europa pela Rússia e do império britânico pelos Estado Unidos , passaram a ter existência efetiva duas das três grandes potências, a Eurásia e a Oceania. A terceira, a Lestásia, só surgiu como unidade distinta após outra década de lutas confusas. As fronteiras entre os superestados são arbitrárias nalguns pontos, e noutros flutuam segundo as fortunas da guerra, mas de modo geral obedecem linhas geográficas.

    Entre as características utópicas também se destaca a abolição da arte. Em muitos escritos utopistas vêem-se referências para a extinção de qualquer forma de manifestação artística. No documentário, utopias e distopias, Pinto (2011) afirma que “Platão, por exemplo, expulsou de sua utopia os poetas, por considerar que a arte encarnava o lado mal da razão”. Sobre esse aspecto da utopia Platônica Coelho (1996, p. 36) afirma:


    O artista, o poeta, isto é, aquele que de modo particular põe em exercício a primeira consciência, a consciência do sentir, será escorraçado de sua cidade ideal. Nela, ele não tem vez. Platão argumenta que a arte só serve para enganar os homens, desviando-os da razão – mas o que ele teme na verdade é a liberdade, a subversão, o caos criativo que a prática artística pode trazer ao negar os controles e as ideias feitas típicas da consciência racional.


    A utopia de Platão que expulsou os poetas antecipou as distopias do século XX, em particular 1984, de George Orwell, que não deu lugar aos artistas em suas projeções, exemplo disso no livro 1984 é o desaparecimento da literatura com a instituição da novafala e o cerceamento do estado do Big Brother sobre toda forma de manifestação artística. Orwell (2009, p.348):


    A literatura do passado terá sido destruída, inteirinha. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron- só existirão em versões novafala, não apenas transformadas em algo diferente, como transformadas em obras contraditórias do que eram antes [...] todo mecanismo de pensamento será diferente. Com efeito, não haverá (grifo do autor) pensamento.


A ideia de constante vigilância exercida por um estado utópico também será uma tônica que causará a reação dos escritores distópicos. Coelho (1996) afirma que a utopia proposta por More antecipa as teletelas de 1984. Sobre o estado de constante vigilância que More institui em sua Utopia, Coelho (1996. P 32) aclara:


    Além do mais todos ficam de olho em você, de modo que se é obrigado a trabalhar e fazer um uso conveniente do tempo livre. Este olho debruçado sobre todos antecipa o grande irmão de 1984 (grifo do autor) que a todos vigia através da TV.


    Outra característica que envolve as utopias é o desejo de um governo centralizado. Platão propõe em sua utopia que um grupo fechado, autointitulado capaz, é quem escolheria o governante e esse governante deveria ser o líder amado e inquestionável, Coelho (1996) afirma que esse exemplo foi seguido alegremente pelos regimes totalitários, através da história.

    Outra utopia em que se manifesta o desejo de um governo centralizado é o romance A Cidade do sol, de Tommaso Campanella, para Souza (1998. P. 19) “O anseio de um governo centralizado se revela na utopia da Cidade do sol” Na distopia de Orwell a centralização do poder se dá através do endeusamento da figura do Big brother que a todos vigia através das tele-telas. Orwell (1975. P. 195): “O grande irmão é a forma em que o partido resolveu se apresentar ao mundo. Sua função é de ponto focal para o amor, medo reverência, emoções que podem mais facilmente ser sentidas em relação a um indivíduo do que a uma organização”. 

    Entender as distopias como processo de desconstrução do pensamento utópico é questão fundamental para a compreensão da obra 1984. As características utópicas que são pervertidas, deformadas e satirizadas em 1984 transformam o sonho utópico nos mais terrível dos pesadelos imaginado pelo homem, as distopias. 1984 é a realização do sonho utópico, mas é uma realização que da qual o ser humano quer livrar-se.


CONSIDERAÇÕES FINAIS



    Mergulhar no universo da literatura é uma jornada fascinante, e que se mostra inesgotável quando se pensa em suas infinitas possibilidades. Com 1984 não poderia ser diferente, pois a leitura deste romance abre caminho para novas perspectivas de pesquisa com referências que merecem ser analisada a luz do pensamento da historiografia literária.

    1984 é um romance distópico publicado em um momento critico da história da humanidade. Souza (1998) afirma que é possível que este livro não pudesse ser concebido em outras circunstâncias. Para Smith (2004) 1984 é satírico, mas cheio de esperanças, se trata de uma evocação do que poderia ter acontecido. 1984 é uma alegoria politica que nos fornece um retrato de um determinado momento histórico. 1984 é uma distopia porque traz como principal característica a sátira aos projetos utópicos tão sonhados por escritores de outrora. O governo centralizador idealizado por Platão em A República e Campanella em A Cidade do Sol são características levadas até as últimas conseqüências por Orwell em 1984, o que acarreta na construção de um governo totalitário.

    O estado de constante vigilância descrito em a Utopia, de Thomas More é satirizado por Orwell na figura do Grande Irmão que tudo vê e na polícia da ideia o que pode desvendar qualquer centelha de rebelião. Na distopia de Orwell não há privacidade, pois de acordo com Pinto (2010) ela é devassada pela figura do Grande Irmão que a tudo vigia e que a todos vê.

    1984 é a realização de toda proposta utópica, porém é uma realização às avessas, que se concretiza a partir dos piores temores do ser humano. Para Coelho (1996, p. 44) “Admirável mundo novo e 1984. Em ambas, o estado não oculta sua vocação totalitária, e tanto uma como a outra são, no fundo, A república levada até suas últimas conseqüências”. A distopia é a concretização do sonho utópico ao mesmo tempo em que é a desconstrução de toda ilusão e de toda fé no advento de uma sociedade ideal.
Fromm (2009) assinala que 1984 é um sentimento que expressa o desespero acerca do futuro do homem e é uma advertência de que a humanidade poderá perder as suas qualidades mais humanas caso não tomem consciência disso.

    As distopias, sobretudo aquelas publicadas no século XX, as mais expressivas, revelam um paradoxo histórico impressionante. O homem que numa época de miséria, fome, guerras e toda sorte de males, quando tinha todas as razões práticas para desacreditar da existência ou sequer do advento de uma sociedade perfeita, uma sociedade em que todos os problemas seriam extintos, quando o progresso técnico - cientifico ainda não lhe permitia realizar as utopias, porque viviam em sociedades e realidades históricas de grande opressão, ainda assim esse homem sonhou em realizar as utopias.

    Já o homem moderno, sobretudo aquele que presenciou as atrocidades da primeira metade do século XX e cujo progresso cientifico pode lhe proporcionar a realização das tão sonhadas utopias, pode tornar real uma sociedade de onde as doenças, o trabalho penoso e a fome seriam extirpados. Esse mesmo homem parece não acreditar mais nas utopias e chega até a denunciá-las como uma forma de pensamento maléfico. Fromm (2009, p.369) afirma:

    As utopias negativas expressam o sentimento de impotência e desesperança do homem moderno assim como as utopias antigas expressavam o sentimento de autoconfiança e esperança do homem pós-medieval. Não poderia haver nada mais paradoxal em termos históricos [...] é questão essencial para as utopias negativas não apenas descrever o futuro rumo ao qual nos movemos como também explicar o paradoxo histórico.


    É papel fundamental das distopias explicar esse paradoxo histórico. Somando-se ao raciocínio de Fromm é possível citar outro autor que como homem moderno não deseja mais as utopias, porém acredita que seja necessário lutar contra a sua realização. Para Berdiaeff in Carandell (1980. p. 127):


    As utopias parecem muito mais realizáveis hoje do que se julgava antes. E agora encontrâmo-nos perante outro problema igualmente angustiante: como evitar a sua definitiva realização? As utopias são realizáveis. O mundo caminha para as utopias. Talvez comece uma nova era em que os intelectuais e as classes cultas sonhem com um modo de evitar a utopia e de voltar à sociedade não utópica, que seja menos perfeita, porém mais livre.

    As utopias hoje podem se tornar reais, pois o progresso técnico-cientifico dá ao homem moderno essa possibilidade, importa saber, entretanto, se esse homem ainda sonha com o advento de uma sociedade perfeita, no caso de uma negativa é correto afirma que é papel basilar das distopias, sobretudo de 1984, de Orwell ajudar a entender esse processo de descrença que tem tomado conta da humanidade e que se tem verificado a partir do momento em que o homem verdadeiramente consegue arregimentar todos os instrumento necessários para finalmente desfraldar o seu tão sonhado projeto utópico.


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