11/26/2016

Ben Pimlott sobre 1984, de George Orwell (1989).

    É fácil entender por que o último romance de George Orwell, publicado em junho de 1949, sete meses antes da morte do autor, foi um sucesso instantâneo. Em primeiro lugar, é uma narrativa perversamente indecorosa que leva a fantasia adolescente – de rebeldia solitária, sexo furtivo e terror implacável – a um extremo escandalosamente inaceitável. Segundo, e mais importante, essa história singular foi amplamente interpretada como comentário social a até mesmo como profecia.

            Não é surpreendente, talvez, que o romance tenha sido entendido dessa forma. Monotonia, escassez material e burocracia governamental eram um modo de vida não apenas no romance, mas na Grã-Bretanha em que foi escrito. Na mesma época, o totalitarismo era um medo que se aproximava furtivamente. A Alemanha nazista num passado recente e China e Rússia no presente de então amolduravam a consciência politica ocidental. Havia a sensação de se estar olhando sinistramente para uma bola de cristal colocada a uma imaginável curta distância.

            É importante pensar no romance da mesma maneira hoje. É uma marca da extraordinária influência do autor que, à medida que o 1984 histórico se aproximava, a data no calendário fosse discutida em todo o mundo quase com apreensão, como se fosse uma espécie de milênio. Mas isso agora é passado e alguns podem se perguntar se o prazo de validade do romance já se esgotou. Por quanto tempo pode uma história sobre um futuro que passou continuar a alarmar seus leitores?

            Há aspectos do romance que certamente incitam o crítico moderno a ser condescendente. Não apenas a suposta advertência contida no livro estava completamente equivocada no seu intervalo de tempo (não houve, até aqui, uma terceira guerra mundial ou uma revolução ocidental e os sistemas totalitaristas são hoje menos, e não mais, comuns do que quarenta anos atrás), mas as fraquezas literárias do romance podem ser vistas com mais clareza agora. Se 1984 é um romance acessível, isso se deve em parte à lucidez da escrita de Orwell. Mas isso se deve também à falta de sutileza de sua caracterização e a uma trama muito simples.

Esta última pode ser brevemente resumida. O romance se passa no ano de 1984 em Londres (“Pista de pouso número 1”), na oceânia, uma superpotência controlada pelo restritivo “Partido” e comandada por seu líder, o grande irmão. Dentro desse estado não existe lei e há apenas uma regra: a obediência absoluta em ação e pensamento. A sociedade da oceânia é repartida hierarquicamente entre o núcleo do partido, o mais privilegiado, um partido externo subserviente, e uma massa indistinta de “proletas”. O herói, Winston Smith, é um membro do partido externo que trabalha no ministério da verdade (isto é, da mentira) como falsificador de registros. 

   Apesar da pressão extraordinária para se conformar ao sistema, Winston secretamente reage contra ele. É abordado por outra oficial secundária, Julia, que reconhece nele um espírito afim. Encorajados pelo amor, eles pedem a um burocrata de alto escalão do núcleo do partido que os coloque em contato com uma força de oposição chamada de confraria, supostamente liderada pelo arqui-inimigo do grande irmão, à maneira de Trotski, Emmanuel Goldstein. O estímulo que recebem de O’Brien, porém, revela-se uma manobra traiçoeira. Eles são presos e separados. Ambos sucumbem a interrogatórios e traem um ao outro. Libertado antes de sua liquidação final, Winston descobre que aprendeu a amar o Grande Irmão.

Como entretenimento, o romance funciona bem, em certo nível. Mas tem limitações enquanto arte. Falta desenvolvimento à narrativa, o diálogo é por vezes fraco e maioria das pessoas é bidimensional, existindo apenas para explicar uma opinião política ou para atingir de raspão um tipo existente no mundo real. Entre as figuras secundárias no romance, uma mulher que canta enquanto estende roupas nos alegra e somos assombrados pela imagem lúgubre da mãe há muito desaparecida de Winston. Mas os conhecidos do herói do partido externo – o estupidamente animado Parsons, ou o fanático Syme – são meras caricaturas de ativistas políticos; enquanto a maior parte dos proletas, com seus agás não aspirados e clichês de cockneys atrapalhados, parece saída de um exemplar da revista Punch[1] anterior à guerra. O Sr. Charrington, o antiquário que aluga um quarto para ninho de amor de Winston, e que se revela um policial do pensamento disfarçado, é extraído de uma centena de romances de suspense baratos.

            Dos três personagens principais, apenas o sinistro O’Brien é uma construção intelectual: não chega a ser um ser-humano de carne e osso, mas a imagem sombria e definitiva do totalitarismo. Winston e Julia são mais substanciais. Aspectos de Winston são encontrados nos romances anteriores de Orwell. Ele é um solitário e um perdedor, um membro sem expectativas da baixa classe-média alta, cheio de uma raiva impotente contra aqueles que controlam sua vida. Ficamos deprimidos com a situação difícil de Winston e, quando ele é elevado pelo amor e pelo compromisso político, torcemos pelo seu bem-estar. No entanto, ele nunca supera a sua própria autocomiseração, e é difícil sentirmos a queda desse sujeito pouco atraente como uma tragédia.

Julia é uma criação mais agradável e simpática. Talvez ela contenha algo da primeira esposa de Orwell, Eileen, que morreu em 1945. Julia certamente tem uma solidez e um toque de humor que faltam ao resto. O maior alívio é descobrir, quando estamos a ponto de sermos sufocados pelo atoleiro de desalento da oceânia, que a política é absolutamente entediante para Júlia:

“outra coisa em que não estou interessada é na próxima geração, meu querido. Só estou interessada em nós.”
“Você só é rebelde da cintura para baixo”, disse ele.
Ela achou aquela frase brilhantemente inteligente e envolveu-o nos braços, delicada.

No entanto, Julia contém uma contradição. Do mesmo modo que é a personagem mais cativante do livro, ela também é a menos apropriada. Ao contrário do moroso Winston, ela é um espírito livre:

Para ela, a vida era uma coisa muito simples. Você fica querendo se divertir e “eles”, ou seja, o partido, faz de tudo para evitar que você se divirta. Você faz de tudo para infringir as regras.

Ficamos gratos por Julia existir. Mas somos levados a imaginar como esse ideal fantasioso de um garoto de escola particular, um ideal de feminilidade descomplicada, saudável, solar, poderia de algum modo sobreviver à propaganda enlouquecedora do partido. Ou ainda, se ela conseguia sobreviver, por que não outros? Winston (“o último homem da Europa”) até faz sentido como uma relíquia da antiga era, mas Julia parece ser a prova de que os métodos da nova era não funcionam. No entanto, um tema do livro é que esses métodos são inevitavelmente eficazes. Nos próprios termos do romance, Julia parece um anacronismo: seu caso de amor clandestino pertence a um país sob ocupação, o reino de Odete, e não a um país totalmente controlado.

Julia (com toda sua inconsistência) inspira vida ao romance; mas a sua presença mal e mal sustentaria um conto. Se não houvesse nada no romance além dos personagens e da narrativa, ele dificilmente seria lido hoje, exceto com uma curiosidade. Há, de fato, muito mais. O que faz do romance uma obra-prima da escrita política – o equivalente moderno, como corretamente apontou Bernard Crick, do Leviatã de Thomas Hobbes – é a textura extraordinária do pano de fundo. Disfarçado de ficção de horror cômica, 1984 é na verdade um ensaio de não ficção sobre o poder maligno. Ele funciona para nós, analisando e atacando o sistema político, da mesma maneira que o livro herético de Emmanuel Goldstein funciona para Winston:

Em certo sentido (o livro) não lhe dizia nada de novo, o que era parte do fascínio. Dizia o que ele teria dito, se tivesse a capacidade de organizar seus pensamentos dispersos. Era o produto de uma mente semelhante à sua, porém muitíssimo mais poderosa, mais sistemática, menos amedrontada. Os melhores livros, compreendeu, são aqueles que lhe dizem o que você já sabe.

Tal como em outras passagens de Orwell, o falso e conivente amadorismo do estilo do autor nos tranquiliza com o entendimento de que ele não apenas está certo, mas também que está dizendo o que sempre pensamos mas nunca fomos capazes de formular em palavras.

É difícil reconhecer 1984 como sátira. Alguns o enxergaram como um ataque ao stalinismo ou ao totalitarismo em geral, ou as tendências diretivas (na época do governo trabalhista) do socialismo de estado britânico. Outros o interpretaram como uma investida contra as pretensões e o iliberalismo dos intelectuais de esquerda ocidentais. Outros, ainda, explicaram-no como uma febril alucinação advinda da tuberculose, um libelo contra a escola preparatória ou (o que deve ser a mesma coisa) um delírio sadomasoquista. O romance provavelmente contém elementos disso tudo. No entanto, é mais que apenas um ataque satírico, e muito mais que o produto de uma imaginação febril. Apesar de fazer uma espécie de advertência, não é uma profecia (o que Orwell sabia, tanto quanto qualquer um, ser impossível e sem sentido). Ele não está também muito preocupado com eventos contemporâneos. É um livro sobre o presente contínuo: uma atualização da condição humana. O que mais importa é que ele nos lembra de muitas coisas nas quais normalmente evitamos pensar.

O livro choca onde é mais certeiro. Ficamos indiferentes às descrições embaraçosas dos encontros de Winston com os proletas - o que parece dizer mais sobre as próprias dificuldades de classe do autor do que sobre o apartheid social num mundo real ou ameaçado. Mas a descrição de um sistema baseado no desvio ideológico e na manipulação psicológica imediatamente nos afeta. A malversação da razão, à maneira de sonho, toca nosso nervo mais sensível. Não é nenhum acidente, na verdade, que, das muitas palavras e conceitos de 1984 que se encontram agora em uso comum por pessoas que nunca leram o livro, a maior parte se relaciona ao poder do estado de distorcer a realidade. No âmago da percepção do romancista está o duplipensar, definido como “o poder de sustentar duas crenças contraditórias na mente simultaneamente, aceitando as duas”. Como muitos aforismos de Orwell, esse parece absurdo a primeira vista e depois se torna um aspecto da vida política cotidiana.

Em O zero e infinito (Darkness at noon), de Arthur Koestler, um romance anterior que também explorou os limites teóricos do totalitarismo, o autor mostrava a aniquilação moral produzida por uma ideologia na qual ao fim era permitido justificar quaisquer meios. A inovação de Orwell foi abolir o fim. Enquanto outras ideologias se justificaram em termos de um objetivo futuro, o socing, a doutrina do partido da oceânia, não tem uma meta. Como O’Brien explica a Winston, “só nos interessa o poder em si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida longa, nem felicidade: só o poder pelo poder, poder puro”. Mas poder para quê? A resposta de O’Brien nos diz o que já sabemos sobre a opressão em toda a parte: “O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder”. A oceânia é uma sociedade estática movida por um equilíbrio do sofrimento. Diz O’Brien: “Se você quer formar uma imagem do futuro, imagine uma bota pisoteando um rosto humano – para sempre”.

1984 toma muito emprestado de A revolução dos gerentes, de James Burnham, cuja imagem de um mundo dividido em três grandes unidades, cada uma governada por uma elite autoeleita, é refletida na Teoria e prática do coletivismo oligárquico, de Goldstein, e na divisão do mundo nas três superpotências de Oceânia, Eurásia e Lestásia, perpetuamente em guerra entre si. Mas também há muito, indiretamente, de Sigmund Freud. A provação da sociedade de Oceânia, na qual tudo é feito coletivamente e na qual, no entanto, todos permanecem sós, é a negação do erótico. É isso que conflagra os sentimentos dominantes de “medo, ódio, adução e triunfo orgiástico”. A histeria sexual é deliberadamente usada para fermentar uma aversão sádica aos inimigos imaginados e para estimular um amor masoquista e despersonalizado em relação ao Grande Irmão.

Ninguém, nem o cético Winston, está imune. A emoção de massa, nos lembra repetidamente o autor, é quase irresistível. O conceito dos “Dois minutos de ódio” é uma das invenções mais famosas de 1984. O autor mostra seu herói no meio dessa obsessão organizada, incapaz de se impedir de participar. Winston consegue transformar o “Um êxtase horrendo de medo e sentimento de vingança” que “parecia circular pela platéia inteira como uma corrente elétrica” em ódio direcionado à garota sentada atrás dele (que mais tarde descobrimos ser Julia). “alucinações vívidas, belas, passavam-lhe pela mente. Haveria de golpeá-la até a morte com um cassetete de borracha (...) Haveria de violentá-la e no momento do clímax cortaria sua garganta.” Por quê? Porque “era jovem e bela e assexuada, porque queria ir para a cama com ela e nunca o faria”. Tal ódio particular, esclarece Orwell, é o propósito do puritanismo de Oceânia. A felicidade sexual é a maior ameaça ao sistema e o preceito de Julia (“O que você faz ou diz não importa: o importante são os sentimentos”) é muito mais perigoso do que as dúvidas intelectuais de Winston. “Aboliremos o orgasmo”, diz O’Brien, com sua habitual aptidão de ir diretamente ao cerne das coisas. “Nossos neurologistas já estão trabalhando nisso.”

O equilíbrio psíquico entre a angústia privada e aceitação da crueldade oficial em 1984 não antecipou o futuro tanto quanto ajudou a dar forma ao modo como outros – incluindo os sobreviventes – iriam descrever o totalitarismo. Obras de Alexander Soljenítsin (Um dia na vida de Ivan Denisovich e O primeiro círculo, por exemplo) exibem claramente a marca do conceito de Orwell de um mal estável, sem finalidade, dentro do qual vítimas e perseguidores estão trancados mutuamente. É o relato da plasticidade da razão de 1984, porém, que teve impacto mais intenso. O horror completo do livro começa quando fica evidente que todos na Oceânia, mesmo os membros do cínico porém fanático núcleo do partido, estão sendo irracionais. Orwell sem dúvida estava pensando na tentativa de Stalin de fazer as leis da genética concordarem com o marxismo-leninismo, quando apresentou o Grande Irmão como o mestre do Universo:

“Que são as estrelas?”, disse O’Brien com indiferença. “pontos de fogo a alguns quilômetros de nós. Poderíamos tocá-las, se quiséssemos, ou apagá-las. A terra é o centro do universo. O sol e as estrelas giram em torno dela. (...) Para certos fins, naturalmente, isso não é exato. Quando navegamos no oceano, ou quando prevemos um eclipse, muitas vezes achamos mais conveniente supor que a terra gira em torno do sol e que as estrelas estão a milhões de quilômetros de distância. Mas e daí? As estrelas podem estar próximas ou distantes, segundo as nossas necessidades. Você acha que nossos matemáticos não são capazes de fazer isso? Já se esqueceu do duplipensamento?”

            Isso é loucura, evidentemente. Mas a quem cabe determinar o que é loucura e o que é sanidade numa sociedade em que todos, incluindo os que controlam o pensamento, aprendem a acreditar que dois e dois podem ser cinco? Orwell nos lembra o quanto nossa aceitação do conhecimento objetivo é volúvel, e quão incerto é nosso domínio dom passado.

Primo Levi – que sobreviveu a Auschwwitz para tornar-se o melhor escritor sobre o holocausto – descreveu em os afogados e os sobreviventes (The drowned and the saved) como Hitler contaminou a moral de seus subordinados ao negar-lhes o acesso à verdade. Levi conclui que “a história completa do breve ‘Reich milenar’ pode ser relida como uma guerra contra a memória, uma falsificação da realidade...”. a guerra incessante da oceânia contra a memória – na qual todo fragmento de prova que entre em conflito com a mais recente linha oficial é sistematicamente destruído e uma pista falsa é colocada em seu lugar – é uma das invenções mais engenhosas a aterrorizantes do romance.

Outra invenção é o assassinato da linguagem. A história feita com isenção é uma artéria essencial da liberdade, talvez a mais essencial, e 1984 pode ser visto como um diploma de erudição histórica. Uma segunda artéria é a pureza linguística. A linguagem é testemunho: ela contém camadas geológicas de eventos do passado e valores fora de moda. Orwell estava fazendo uma observação relevante tanto para o comportamento de burocratas insignificantes como para ditadores quando notou a avidez com que aqueles que evitam a verdade afastam-se assustados de palavras conhecidas e a substituem com suas próprias. Na oceânia, o partido criou uma linguagem sanitizada, a Novafala, para assumir o lugar do inglês tradicional e suas associações desconfortáveis. Esse esperanto ideológico é composto por palavras curtas e apocopadas “que provocam um mínimo de eco na mente daquele que fala o idioma”, e que por fim torna impossível a construção de pensamentos heréticos. Orwell dá exemplos da Novafala no mundo real: Nazi, Gestapo, Comintern, Agitprop. Há muitos outros exemplos. Por conseguinte, Levi nota como, na Alemanha de Hitler, expressões como “solução final”, “tratamento especial”, “unidades de emprego imediato” disfarçavam uma realidade apavorante. Poderíamos acrescentar nossos próprios exemplos da era do terror nuclear: overkill,[2] o verbo “to nuke”,[3] o semijocoso guerra nas estrelas.

Duplipensamento, Novafala, criminterrupção (a faculdade de “capacidade de estacar, como por instinto, no limiar de todo pensamento perigoso (...) Em suma, criminterrupção significa burrice protetora”) são firmes e eternos em qualquer estado autoritário ou totalitarista, o que ajuda a explicar porque o romance, distribuído secretamente, tem sido apreciado com tanto entusiasmo no Leste Europeu. Ao mesmo tempo, os termos também se referem a aspectos de qualquer birô, corporação ou partido político numa democracia, para não dizer de qualquer profissão dominada pelo uso de jargões ou disciplinas acadêmicas de orientação ortodoxa. Eles são previsões apenas no sentido de que qualquer polêmica prevê uma consequência nefasta se não prestarmos atenção à sua injunção.

Todavia, 1984, com sua data muito específica, tem sim um ponto de referência histórico. Não é por acaso que Orwell chama a ideologia do partido de Socing, e a apresenta como uma perversão do socialismo inglês. Alguns enxergaram isso como uma acusação ao governo trabalhista de Clement Attle. De fato, Orwell, que continuou a se ver como um socialista democrata e como um defensor do partido trabalhista, não estava muito interessado na política veloz de meados da década de 1940, de modo que passou grande parte do período de gestação e escrita do romance (interrompido por uma grande temporada no hospital com tuberculose) longe da fofoca política de Londres, na casa de campo na ilha de jura.

No entanto, o romance pode ser visto – como seu predecessor, A revolução dos bichos – como uma contribuição ao debate que se travava dentro dos círculos socialistas. Tal como A revolução dos bichos, o livro não antecipa controvérsias futuras mas retorna às do pré-guerra. A experiência política mais importante da vida de Orwell (descrita em Homenagem à Catalunha) foi a guerra civil espanhola, na qual o autor foi ferido enquanto lutava pela milícia revolucionária POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista). Orwell retornou da Espanha amargamente hostil em relação ao comunismo comandado por Moscou, cuja influência continuava difusa na intelligentsia progressista britânica. Ele ficou menos surpreso do que muitos membros da esquerda com o pacto nazi-soviético de agosto de 1939 (que teve sequência na invasão alemã na Rússia em 1941, que levou Stalin à guerra ao lado dos aliados, e depois no esfriamento das relações entre aliados e soviéticos, que fez novamente da Rússia um inimigo em potencial do ocidente praticamente tão logo a guerra terminou). O cinismo e impermanência das grandes alianças de poder é uma parte essencial de 1984.

A Oceânia não é, em nenhum sentido, uma sociedade socialista. Pelo contrário. Um exemplo fundamental do duplipensamento é que “o partido rejeita e avilta cada um dos princípios originalmente defendidos pelo movimento socialista, e trata de fazê-lo em nome mesmo do socialismo”, Logo, a Oceânia não pode ser entendida como um argumento a favor do fracasso do socialismo. A questão não é a realização das promessas socialistas, mas sua rejeição e distorção. Alguns podem ouvir ecos de O caminho da servidão, de Friedrich Von Hayek, no relato de Goldstein de como “em cada variante do socialismo surgida a partir de cerca de 1900, o objetivo de instalar a liberdade e a igualdade foi sendo abandonado cada vez mais abertamente”. No entanto, Orwell não é menos crítico em relação aos antissocialistas. Nos anos de 1940, diz Goldstein, “todas as principais correntes de pensamento político eram autoritárias. (...) Todas as novas teorias políticas, seja lá como se autodenominassem, reeditavam as ideias de hierarquia e regimentação”. Se pista de pouso número 1 é uma versão da Londres do período de austeridade (como a interessante adaptação para o cinema de Michael Radford sugere), então dificilmente há a intenção de se isolar o socialismo trabalhista para uma crítica particular. De fato, Goldstein também deixa claro que os sistemas das outras superpotências, Eurásia e Lestásia, são praticamente idênticos.

O ataque de Orwell não é direcionado ao socialismo, mas a pessoas crédulas ou egoístas que se dizem socialistas, e a algumas de suas ilusões. Uma ilusão – que ainda é parte da retórica da plataforma – é a de que, quaisquer que sejam os obstáculos e contratempos que apareçam no caminho, a classe trabalhadora irá inevitavelmente triunfar. Orwell inverte essa ideia. Na Oceânia, a liberdade relativa das pessoas da classe trabalhadora não passa de um sintoma do desprezo a elas direcionado. “Nada a temer do lado dos proletários”, declara Goldstein. Pode-se conceder a eles liberdade intelectual, acrescenta (com um chute na virilha das pretensões liberais e socialistas), “porque carecem de intelecto”.

No entanto, os proletas ocupam um lugar importante no romance. Se há esperança, reflete Winston, ela lhes pertence. Há esperança? A mensagem na superfície do romance parece ser que não há nenhuma. A oceânia é uma sociedade além do totalitarismo. Mesmo em Auschwitz ou no Gulag, uma comunidade qualquer poderia continuar existindo e o heroísmo era possível. Mas na Oceânia, o heroísmo é vazio porque não há ninguém para salvar. A esperança pisca brevemente e então se extingue: a tentativa de Winston de preservar sua identidade é um mero clamor ao vento. A resistência física ao terrorismo do partido significa causar o próprio fracasso. Orwell sublinha o argumento de Koestler em O zero e o infinito de que lutar contra a opressão com os métodos do opressor é uma capitulação moral. Orwell usa O’Brien, enquanto este aparentemente testa a decisão de Winston de atuar como co-conspirador, para aprisionar Winston num compromisso monstruoso;

“Se, por exemplo, jogar ácido sulfúrico no rosto de uma criança for uma ação que de alguma forma atenda a nossos interesses, será capaz de executá-la?”
“Sim.”

Mais tarde, O’Brien, o interrogador, pergunta a Winston:

“E você se considera moralmente superior a nós, com nossas mentiras e nossa crueldade?”

Tudo de que ele precisa é colocar uma fita da conversa anterior para validar seu argumento.
Mesmo com tudo isso, porém, 1984 está longe de ser um livro desesperador. Como um quebra-cabeça intelectual, o romance é quase impermeável: todas as respostas ou objeções fáceis são espertamente antecipadas e bloqueadas. Mas o mundo grotesco que retrata é imaginário. Não há razão para interpretar a escuridão da visão literária de Orwell como uma negação de qualquer alternativa no mundo real. O romance, de fato, pode ser visto como uma descrição das forças que ameaçam a liberdade e da necessidade de se resistir a elas. A maior parte dessas forças pode ser resumida numa simples palavra: mentiras. O autor oferece uma escolha política – entre a proteção da verdade e um resvalo na falsidade oportunista para o benefício dos governantes e exploração dos governados, nos quais reside o sentimento genuíno e a esperança última.

O romance, portanto, é sobretudo subversivo, um protesto contra as artimanhas dos governos. É uma saraivada contra o autoritarismo sobre toda a individualidade, uma polêmica contra toda ortodoxia, uma rajada anarquista contra todo conformista incondicional. “É intolerável para nós”, diz o funesto O’Brien, “a existência, em qualquer parte do mundo, de um pensamento incorreto, por mais secreto e impotente que seja.” 1984 é um grande romance e um grande tratado por causa da clareza de seu chamado, e irá resistir porque sua mensagem é permanente: os pensamentos incorretos são a essência da liberdade.



[1] Revista Britânica de humor publicada de 1841 a 2002. (N. T.)
[2] Uso da força excessiva para se atingir um objetivo. O termo tornou-se comum durante o período da guerra fria, referindo-se à corrida armamentista nuclear entre os Estados unidos e a União Soviética. Ambos construíram arsenais capazes de destruir os dois países diversas vezes. (N.T.)
[3] Verbo que tem origem no termo “nuclear”. Significa “lançar bomba atômica”. (N.T.)

11/23/2016

Se uma criança numa manhã de verão

Estou muito grato pela boa indicação de leitura feita pela minha amiga, professora Adriana, que a algumas semanas atrás me emprestou o livro Se uma Criança Numa Manhã de Verão: Carta ao meu filho sobre o amor pelos livros, do Romancista e critico literário italiano Roberto Cotroneo. Depois de ter lido esse livro maravilhoso, fico imaginando que grande critico literário dever ser Cotroneo, pois escreveu um livro simples, mas que respondeu a muitas dúvidas que eu mesmo tinha a respeito da literatura.

Se uma Criança Numa Manhã de Verão é uma carta de Cotroneo endereçada ao seu filho Francesco, de apenas dois anos, onde ele relata a sua paixão pela literatura e prova que ela não é algo que deva ser posto em pedestais, muito pelo contrário, precisa estar cada vez mais próxima do leitor comum. Roberto Cotroneo enxerga a literatura como a possibilidade de descoberta do mundo. 

Abaixo tem um trecho escolhido por mim.

“Haverá algum joyceano, em Dudlin, que não tenha, pelo menos por um momento, acreditado poder encontrar na rua alguém com a cara de Stephen Dedalus? E haverá alguma criança que, numa noite de verão na qual o sono custa chegar, não tenha imaginado ver no céu o veleiro de Peter Pan? Quero ensinar-lhe a ver esse veleiro, quero escrever este livro para contar-lhe que até os livros sérios, até os livros dos adultos, até os livros difíceis não passam de veleiros disfarçados, e que possuem o mesmo encantamento do barco movido a pó dourado de Peter Pan. E preste atenção, Francesco, não se esqueça disto: confie em quem gosta de ler, confie naquele que sempre traz no bolso um livro de poesias. Olhe com desconfiança para os que afirmam não ter tempo, que dizem achar a literatura uma coisa bonita, que na juventude ainda dá para ler, mas que depois... São todos uns mentirosos, não dão a mínima, e mentem sabendo que estão mentindo”.

(Roberto Cotroneo, IN Se uma Criança Numa Manhã de Verão)

11/22/2016

Erich Fromm sobre 1984, de George Orwell (1961)

Erich Fromm
1984, de George Orwell, é a expressão de um sentimento, e é uma advertência. O sentimento que expressa é de quase desespero acerca do futuro do homem, e a advertência é que, a menos que o curso da história se altere, os homens do mundo inteiro perderão suas qualidades mais humanas. Tornar-se-ão autômatos sem alma, e nem sequer terão consciência disso.
            O sentimento de desesperança no futuro do homem contrasta marcadamente com uma das características mais fundamentais do pensamento ocidental: a fé no progresso humano e na capacidade do homem de criar um mundo de justiça e paz. Essa esperança tem suas raízes tanto no pensamento grego como no romano, assim como no conceito messiânico dos profetas do velho testamento. A filosofia da história presente no velho testamento parte do princípio de que o homem cresce e se revela no curso da história, tornando-se finalmente o que é em potencial. Ela pressupõe que o homem desenvolve seu potencial para a razão e para o amor de forma plena, tornando-se assim equipado para compreender o mundo, sendo uno com a natureza e seus semelhantes e preservando ao mesmo tempo sua individualidade e sua integridade. A paz universal e a justiça são as finalidades do homem, e os profetas tem fé em que, apesar de todos os erros e pecados, esse “fim dos tempos” chegará, simbolizado pela figura do Messias.
Essa noção profética era um conceito histórico, um estado de perfeição a ser alcançado pelo homem no tempo histórico. A cristandade o transformou num conceito trans-histórico, puramente espiritual, embora não tenha abandonado a ideia da conexão entre as normas morais e a política. Os pensadores cristãos do fim da idade média enfatizaram que, apesar de o “Reino de Deus” não pertencer ao tempo histórico, a ordem social deveria compreender os princípios da cristandade e a eles corresponder. As seitas cristãs anteriores e posteriores à reforma enfatizaram essas demandas de maneiras mais urgentes, mais ativas e revolucionárias. Com o colapso do mundo medieval, a percepção da força e da esperança do homem não apenas na perfeição individual, mas também na social, ganhou novo alento e tomou novos rumos.
Um dos mais importantes foi a nova forma de escrever que se desenvolveu durante o renascimento, cuja primeira manifestação foi a Utopia (literalmente: “não-lugar”) de Thomas More, denominação que passou a ser aplicada a outros trabalhos similares em geral. A Utopia de Thomas More combinou uma crítica penetrante da própria sociedade do autor, de sua irracionalidade e de sua injustiça, com o retrato de uma sociedade que, apesar de não ter alcançado talvez a perfeição, resolvera a maior parte dos problemas humanos que pareciam sem solução para seus contemporâneos. O que caracteriza a Utopia de Thomas More e de todas as outras é que elas não discutem princípios em termos gerais, mas descrevem de forma imaginativa os detalhes concretos de uma sociedade que corresponde aos desejos mais profundos do homem. Contrastando com o pensamento profético, essas sociedades perfeitas não estão localizadas no “fim dos tempos”, mas já existem – elas são distantes geograficamente, e não no tempo.
À Utopia de Thomas More sucederam-se duas outras, A cidade do sol, do frei italiano Campanella, e Cristianópolis, do humanista alemão Andreae, sendo esta última a mais moderna das três. Existem diferenças de ponto de vistas e de originalidade nessa trilogia de utopias, ainda que as diferenças sejam de pouca importância se comparadas com o que elas têm em comum. Utopias foram escritas desde então por séculos a fio, até o inicio do século xx. A mais recente e mais influente delas foi Daqui a cem anos: Revendo o futuro (Looking Backward), publicada em 1888. À parte A cabana do pai Tomás e Bem Hur, foi sem dúvida o livro mais popular da virada do século, com tiragem de muitos milhões de cópias nos Estados unidos e traduzido para mais de vinte línguas.[1] A Utopia de Bellamy é parte da grande tradição americana tal como expressa pelo pensamento Whitman, Thoreau e Emerson. É a versão americana das ideias que, na época, tiveram sua expressão mais vigorosa no movimento socialista europeu.
A esperança na perfeição individual e social do homem, claramente colocada em termos filosóficos e antropológicos nos escritos de filósofos iluministas do século XVIII e nas obras dos pensadores socialistas do século XIX, permaneceu inalterada até o período pós-primeira guerra mundial. Essa guerra, na qual milhões morreram pelas ambições territoriais das potências europeias, ainda que sob a ilusão de estarem lutando pela paz e pela democracia, foi o início do desenvolvimento que levou, num tempo relativamente curto, à destruição da tradição ocidental de esperança, que contava dois mil anos de idade, e a sua transformação num sentimento de desespero. A insensibilidade moral da primeira guerra mundial foi apenas o começo. Outros eventos se seguiram: a traição das esperanças socialistas pelo capitalismo estatal de Stalin; a grave crise econômica do fim da década de 1920; a vitória da barbárie em um dos mais antigos centros culturais do mundo – a Alemanha, a insanidade do terror stalinista durante a década de 1930; a segunda guerra mundial, na qual todas as nações em conflito perderam algumas das considerações morais que ainda existiam na primeira guerra mundial; a destruição ilimitada de populações civis, iniciada por Hitler e que teve sequência na destruição ainda mais total de cidades como Hamburgo, Dresden e Tóquio, e, por fim, na utilização de bombas atômicas contra o Japão. Desde então a raça humana foi defrontada com uma ameaça ainda maior: a destruição de nossa civilização, senão de toda humanidade, por armas termonucleares tais como existem atualmente e tal como são desenvolvidas em proporções crescentes e assustadoras.
A maioria das pessoas, no entanto, não está a par dessa ameaça e de sua própria desesperança. Alguns acreditam que, só porque os armamentos modernos são tão destrutivos, a guerra é impossível; outros declaram que, mesmo 60 ou 70 milhões de americanos fossem assassinados no primeiro ou no segundo dia de uma guerra nuclear, não haveria motivos para crer que a vida não seguiria como antes, depois que o primeiro choque fosse superado. O livro de Orwell é importante precisamente porque exprimiu o novo sentimento de desesperança que impregna nossa era antes que este se manifestasse e dominasse a consciência das pessoas.
Orwell não está só nesse esforço. Dois outros escritores, o russo Zamyatin em seu livro Nós, e Aldous Huxley em seu Admirável mundo novo, exprimiram o sentimento do presente e uma advertência para o futuro de maneiras muito similares à de Orwell. Essa trilogia do que pode ser chamado de “utopias negativas” de meados do século XX é o contraponto à trilogia das utopias positivas mencionadas anteriormente, escritas no século XVI e XVII.[2] As utopias negativas expressam o sentimento de impotência e de desesperança do homem moderno assim como as utopias antigas expressavam o sentimento de autoconfiança e esperança do homem pós-medieval. Não poderia haver nada mais paradoxal em termos históricos do que essa mudança: o homem, no início da era industrial, quando na realidade não possuía os recursos para um mundo no qual a mesa estaria posta para todos os que desejassem comer, quando vivia num mundo no qual existiam razões econômicas para a escravidão, para a guerra e para a exploração, e no qual o homem apenas intuía as possibilidades de sua nova ciência e de sua aplicação técnica e à produção – ainda assim, o homem no início do progresso moderno era repleto de esperança. Quatrocentos anos mais tarde, quando todas essas esperanças são realizáveis, quando o homem pode produzir o suficiente para todos, quando a guerra se tornou desnecessária porque o desenvolvimento técnico pode dar a qualquer país mais riquezas do que as conquistas territoriais, quando este planeta está em processo de se tornar tão uno quanto era um continente quatrocentos anos atrás, no momento exato em que o homem está prestes a concretizar sua esperança, ele começa a perdê-la. É questão essencial para as três utopias negativas não apenas descrever o futuro rumo ao qual no movemos como também explicar o paradoxo histórico.
As três utopias negativas diferenciam-se entre si em detalhamentos e ênfase. Nós, escrito na década de 1920, tem mais características em comum com 1984 que Admirável mundo novo. Nós e 1984 descrevem a sociedade completamente burocratizada na qual o homem é um número, desprovido de toda noção de individualidade. Isso é ocasionado por uma mistura de terror ilimitado (no livro de Zamyatin uma cirurgia cerebral é adicionada, de forma que o homem se transforma até fisicamente) e manipulação ideológica. Na obra de Huxley, a principal ferramenta para transformar o homem num autômato é a utilização de sugestões hipnóticas em massa, o que permite prescindir do terror. Pode-se dizer que os exemplos de Zamyatin e Orwell lembram mais as ditaduras nazistas e stalinistas, enquanto o Admirável mundo novo de Huxley é um retrato do progresso do mundo ocidental industrial, posto que ele acompanha a tendência do presente sem mudar sua essência.
Apesar dessa diferença, há uma questão básica em comum entre as utopias negativas. A questão é filosófica, antropológica e psicológica, e talvez religiosa. É a seguinte: pode a natureza humana ser modificada de tal maneira que o homem esquecesse seu desejo de liberdade, dignidade, integridade, amor – ou seja, pode o homem esquecer que é humano? Ou tem a natureza humana uma dinâmica que reagiria à violação dessas necessidades humanas básicas com a tentativa de transformar uma sociedade inumana numa sociedade humana? Deve-se notar que os três autores não tomam partido do relativismo psicológico hoje comum a tantos cientistas sociais; eles não partem da ideia de que não existe algo como “natureza humana”; de que as qualidades essenciais ao homem não existem; e de que o homem, ao nascer, é apenas uma página em branco na qual uma sociedade qualquer escreve seu texto. Eles pressupõem que o homem se empenha intensamente na luta pelo amor, pela justiça, pela verdade, pela solidariedade, e, nesse aspecto, são muito diferentes dos relativistas. De fato, eles afirmam a luta e a intensidade dessas lutas humanas ao descrever os próprios meios que apresentam como necessários à sua destruição. Em Nós, é necessário realizar uma cirurgia cerebral similar à lobotomia para eliminar as demandas humanas da natureza humana. No Admirável mundo novo, a seleção biológica artificial e as drogas são necessárias, e em 1984 é a utilização completamente sem limites de tortura e lavagem cerebral. Nenhum dos três autores pode ser acusado de pensar que a destruição da humanidade dentro do homem é fácil. Todavia, os três chegam à mesma conclusão: que essa destruição é possível, com os meios e técnicas que atualmente são de conhecimento comum.
Apesar das muitas similaridades com o livro de Zamyatin, o 1984 de Orwell dá sua própria contribuição original à questão “como pode a natureza humana ser modificada?”. Tenciono falar agora sobre alguns conceitos mais especificamente orwellianos.
A contribuição de Orwell mais imediatamente relevante para o ano de 1961 e para cinco a quinze anos seguintes é a conexão que ele faz entre a sociedade ditatorial de 1984 e a guerra atômica. Guerras atômicas surgiram pela primeira vez na década de 1940; uma guerra atômica em larga escala eclodiu aproximadamente dez anos depois, e centenas de bombas foram arremessadas nos centros industriais da Rússia europeia, da Europa ocidental e da América do Norte. Depois dessa guerra, os governos de todos os países convenceram-se de que a continuidade da guerra significaria o fim da sociedade organizada e, consequentemente, de seu próprio poder. Por essas razões, mais nenhuma bomba foi arremessada e os três grandes blocos de poder existentes “simplesmente continuaram a produzir bombas atômicas e a armazená-las para o momento da oportunidade decisiva que, acreditavam, viria mais cedo ou mais tarde”. Resta ao partido dominante descobrir como “matar centenas de milhões de pessoas em poucos segundos sem aviso prévio”. Orwell escreveu 1984 antes da descoberta das armas termonucleares, e é apenas uma nota de rodapé da história afirmar que a meta mencionada já havia sido alcançada nos anos 1950. A bomba atômica lançada sobre as cidades japonesas parece pequena e ineficaz quando comparada à chacina em massa que pode ser obtida com a utilização de armas termonucleares capazes de varrer do mapa noventa ou cem por cento da população de um país em minutos.
A importância do conceito de Orwell sobre a guerra reside em diversas observações muito perspicazes.
Em primeiro lugar, ele demonstra o significado econômico da produção contínua de armamentos, sem a qual o sistema econômico não pode funcionar. Além disso, fornece um retrato impressionante de como deve se desenvolver uma sociedade que se prepara constantemente para a guerra, que o tempo todo tem medo de ser atacada e se prepara para descobrir os meios de aniquilar completamente seus oponentes. O retrato de Orwell é pertinente porque oferece um argumento vigoroso contra a noção popular de que é possível salvar a liberdade e a democracia dando continuidade à corrida armamentista e encontrando um impedimento “estável”. Esse retrato reconfortante ignora o fato de que, com o “progresso” técnico crescente (que cria armas inteiramente novas a cada cinco anos aproximadamente, e que em breve permitirá o desenvolvimento de bombas de cem ou mil megatons em lugar de dez), toda a sociedade será forçada a viver em subterrâneos, mesmo que o poder destruidor de bombas termonucleares seja mais profundo que as cavernas, que o militarismo se torne dominante (de fato, senão pela lei), que o medo e o ódio de um possível agressor destruam as atitudes básicas de uma sociedade democrática e humanista. Em outras palavras, a corrida armamentista contínua, mesmo que não levasse à eclosão de uma guerra termonuclear, levaria à destruição de todas as qualidades de nossa sociedade que pudessem ser chamadas de “democráticas”, “livres” ou “pertencentes à tradição americana”. Orwell demonstra a ilusão que é pressupor que a democracia pode continuar existindo num mundo que se prepara para a guerra nuclear, e o faz de maneira imaginativa e brilhante.
Outro aspecto importante é a descrição que Orwell faz da natureza da verdade, que na superfície é um retrato do tratamento que Stalin dispensa à verdade, especialmente nos anos 1930. Mas todo aquele que enxergar na descrição de Orwell apenas outra denúncia do stalinismo estará confundindo um elemento essencial da análise de Orwell. Na verdade, ele fala sobre um progresso que também está acontecendo nos países industriais do ocidente, apenas num ritmo mais lento que na Rússia e na china. A questão básica levantada por Orwell é se há algo que se possa denominar “verdade”. “A realidade” diz o partido dominante, “não é externa. A realidade existe na mente humana e em nenhum outro lugar (...) tudo o que o partido reconhece como verdade é a verdade”. Se isso é fato, ao controlar a mente dos homens o partido controla a verdade. Num diálogo dramático entre o protagonista do partido e o rebelde vencido, uma analogia digna do diálogo de Dostoiévski entre o inquisidor e Jesus, os princípios básicos do partido são explicados. Ao contrário do inquisidor, entretanto, os líderes do partido nem sequer fingem que seu sistema tem o intuito de tornar o homem mais feliz, porque os homens, sendo criaturas frágeis e covardes, querem escapar da liberdade e são incapazes de encarar a verdade. Os líderes são conscientes do fato de que eles próprios têm apenas uma meta, que é o poder. Para eles, “o poder não é um meio; é um fim. E poder significa capacidade de infligir dor e sofrimento ilimitados a outro ser humano”.[3] Consequentemente, o poder, para eles, cria a realidade, cria a verdade. A posição que Orwell atribui aqui à elite do poder pode ser vista como uma forma extrema de idealismo filosófico, mas é mais relevante reconhecer que os conceitos de verdade e realidades presentes em 1984 são uma forma extrema de pragmatismo na qual a verdade passa a subordinar-se ao partido. Um escritor americano, Alan Harrington, que em Life in the Crystal Palace (A vida no palácio de cristal) [4] oferece um retrato penetrante e sutil da vida numa grande corporação americana, cunhou uma excelente expressão para o conceito contemporâneo da verdade: “verdade móvel”. Se trabalho para uma grande corporação que afirma que seu produto é melhor que o dos concorrentes, questionar se essa afirmação é justificada ou não no âmbito da realidade discernível torna-se irrelevante. O que importa é que, enquanto sirvo a essa corporação em particular, tal afirmação passa a ser a “minha” verdade e abro mão de questionar se ela é uma verdade objetivamente válida. De fato, se mudo de emprego e me transfiro para a corporação que era até agora “minha” concorrente, devo aceitar a nova verdade – de que seu produto é melhor – e, subjetivamente falando, essa verdade será tão verdadeira quanto a anterior. Um dos desenvolvimentos mais característicos e destrutivos de nossa sociedade é o fato de que o homem, ao se tornar cada vez mais um instrumento, transforma a realidade, progressivamente, em algo relacionado a seus próprios interesses e funções. A verdade é provada pelo consenso de milhões; ao slogan “como é possível que milhões estejam errados” é adicionado “e como pode estar certa a minoria de um só”. Orwell demonstra muito claramente que num sistema no qual o conceito de verdade como julgamento objetivo acerca da realidade é abolido, todo aquele que construir uma minoria de um só deve ser convencido de que é insano.
Descrevendo o tipo de pensamento dominante em 1984, Orwell cunhou um termo que já se tornou parte do vocabulário moderno: “duplipensamento”. “Duplipensamento significa a capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias, e acreditar em ambas (...) esse processo precisa ser consciente, ou não seria conduzido com a necessária precisão, mas também precisa ser inconsciente, do contrário traria consigo um sentimento de falsidade e, portanto, de culpa.” É precisamente o aspecto inconsciente do duplipensamento que irá induzir muitos leitores de 1984 a acreditar que o método de duplipensamento é empregado pelos russos e pelos chineses, embora seja algo totalmente estranho a eles. Isso, no entanto, é uma ilusão, como alguns exemplos podem demonstrar. Nós, do ocidente, falamos em “mundo livre”, e nele incluímos não apenas sistemas como o dos Estados Unidos e Inglaterra, baseados em eleições livres e liberdade de expressão, como também ditaduras sul-americanas (pelo menos as incluímos enquanto existiram) e várias formas de ditadura, como as de Franco e Salazar, e as da África do Sul, Paquistão e Etiópia. Quando falamos em mundo livre, referimo-nos a todos os estados que se posicionam contra a Rússia e a China, e de forma alguma, como as palavras podem dar a entender, a estados que tenham liberdade política. Outro exemplo contemporâneo da sustentação e aceitação simultânea de duas crenças contraditórias pode ser encontrado em nossa discussão sobre armamentos. Gastamos parte considerável de nossa renda e energia na construção de armas termonucleares, e fechamos nossa mente para o fato de que elas podem ser acionadas, destruindo um terço ou metade de nossa população (e da população do inimigo). Algumas podem ir ainda mais longe; de modo que Herman Kahn, um dos mais influentes escritores da estratégia atômica hoje em dia, declara: “...em outras palavras, a guerra é horrível, não há dúvida quanto a isso, mas também a paz é horrível, e é próprio do tipo de cálculo que fazemos atualmente comparar o horror da guerra ao horror da paz, e ver o quanto aquele é pior”.[5]
Kahn presume que a guerra termonuclear possa significar a destruição de 60 milhões de americanos, e ainda assim considera que, mesmo em tal caso, “o país se recuperaria rápida e efetivamente” (ib., p. 74) e que “vidas normais e felizes para a maioria dos sobreviventes e seus descendentes” (ib., p. 21) não seriam eliminados pela tragédia da guerra termonuclear. Essa visão considera que: a) nos preparamos para a guerra de modo a preservar a paz; b) caso a guerra ecloda e os russos matem um terço de nossa população, e caso lhe façamos o mesmo (e mais, claro, se pudermos), mesmo assim as pessoas viverão alegres depois; c) não apenas a guerra, mas também a paz é horrível, e é necessário examinar o quanto a guerra é mais horrível que a paz. Pessoas que aceitam esse tipo de raciocínio são chamadas de “sóbrias”; aquelas que duvidam que a morte de 2 ou 6 milhões de pessoas deixaria a América essencialmente intata não são “sóbrias”, aqueles que apontam para as consequências morais, políticas e psicológicas de tal destruição são chamadas de “não realistas”.
Ainda que este não seja o lugar para uma discussão extensa do problema do desarmamento, esse exemplos deve ser oferecidos para que se chegue a um ponto essencial para a compreensão do livro de Orwell, isto é, que o “duplipensamento” já está conosco e não é meramente algo que acontecerá no futuro, em ditaduras.
Outra questão importante na discussão de Orwell está intimamente relacionada ao “duplipensamento”, a saber, que em uma manipulação bem-sucedida da mente, a pessoa não mais está dizendo o oposto do que pensa, mas pensa o oposto do que é verdadeiro. Assim, por exemplo, se ela desiste completamente de sua independência e de sua integridade, se passa a ver-se como algo pertencente ao estado, ao partido ou à corporação, então dois e dois são cinco, ou “Escravidão é liberdade”, e ela se sente livre porque não tem mais consciência da discrepância entre verdade e falsidade. Isso se aplica especificamente às ideologias. Assim como os inquisidores que torturavam seus prisioneiros acreditavam agir em nome do amor cristão, o partido “rejeita e avilta cada um dos princípios originalmente defendidos pelo movimento socialista, e trata de fazê-lo em nome mesmo do socialismo”. Seu conteúdo é invertido para o oposto, e ainda assim as pessoas acreditam que a ideologia significa o que diz. A esse respeito, Orwell refere-se obviamente à falsificação do socialismo pelo comunismo russo, mas deve-se acrescentar que o ocidente também é culpado de falsificação semelhante. Apresentamos nossa sociedade como uma sociedade onde se pratica a livre iniciativa, o individualismo e o idealismo, quando na realidade tais palavras não passam de palavras. Somos uma sociedade industrial-gerencial centralizada, de natureza essencialmente burocrática e motivada por um materialismo apenas levemente mitigado por preocupações verdadeiramente espirituais ou religiosas. Relacionado a isso está outro exemplo de “duplipensamento”, ou seja: poucos escritores, ao discutirem a estratégia atômica, tropeçam quando não mencionam o fato de que matar, do ponto de vista cristão, é tão ou mais maléfico do que ser morto. O leitor encontrará várias outras características de nossa sociedade ocidental contemporânea na descrição de Orwell em 1984, contanto que consiga subjugar seu próprio “duplipensamento”.
Não há dúvida de que o retrato de Orwell é excessivamente desanimador, em especial se reconhecemos que, como o próprio Orwell indica, não se trata apenas do retrato de um inimigo, mas de toda a raça humana no final do século XX. É Possível reagir a esse retrato de dois modos: tornando-se mais desesperançado e resignado, ou sentindo que ainda há tempo e reagindo com maior clareza e mais coragem. Todas as três utopias negativas dão a entender que é possível desumanizar o homem por completo e ainda assim a vida continuar. Podemos duvidar da exatidão desse pressuposto e pensar que, na eventualidade de que o cerne humano do homem fosse destruído, também o futuro da humanidade estaria sendo destruído. Tais homens seriam tão verdadeiramente inumanos e desprovidos de vitalidade que haveriam de destruir-se uns aos outros, ou morreriam de puro tédio e ansiedade. Se o mundo de 1984 vier a tornar-se a forma dominante de vida neste planeta, isso quer dizer um mundo de loucos, e portanto um mundo inviável (Orwell indica muito sutilmente ao apontar para o brilho demente nos olhos do líder do partido). Estou certo de que nem Orwell, nem Huxley, nem Zamyatin gostariam de asseverar que esse mundo de insanidade está destinado a se realizar. Pelo contrário, é bastante óbvio que a intenção deles é fazer soar um alarme, ao mostrar para onde estamos indo, caso não tenhamos sucesso na promoção do renascimento do espírito de humanidade e dignidade que está nas próprias raízes da cultura ocidental. Assim como os outros dois autores, Orwell simplesmente sugere que a nova forma de industrialismo gerencial, na qual o homem constrói máquinas que agem como homens e desenvolve homens que agem como máquinas, conduz a uma era de desumanização e completa alienação, na qual homens são transformados em coisas e se tornam apêndices do processo de produção e consumo.[6] Os três autores sugerem que esse perigo existe não apenas nas versões russa e chinesa do comunismo, mas que é inerente ao modo moderno de produção e organização e é relativamente independente das várias ideologias. Orwell, como os autores das outras utopias negativas, não é um profeta do desastre. Ele deseja nos alertar e nos acordar. Ainda tem esperança – mas ao contrário dos escritores das utopias das fases iniciais da sociedade ocidental, a sua é uma esperança desesperada. A esperança só pode concretizar-se, nos ensina 1984, se percebemos o perigo que confronta os homens hoje, o perigo de uma sociedade de autômatos que terão perdido todos os traços de individualidade, amor e pensamento crítico, e que não serão capazes de percebê-lo em decorrência do “duplipensamento”. Livros como o de Orwell são advertências poderosas, e seria lamentável se o leitor, de modo autocomplacente, interpretasse 1984 como mais uma descrição da barbárie stalinista, sem perceber que o livro também se refere a nós.


[1] A edição mais recente foi publicada pela New American Library of World Literature, Inc., Nova York, 1960 (CD26).
[2] Deve-se acrescentar que O tacão de ferro, de Jack London, que prediz o fascismo na América, foi a primeira das modernas utopias negativas.
[3] Cf. esta definição de poder em Erich Fromm, Escape from Freedom. Nova York: Rinehart & Co., Inc., 1941. E também a definição de Simone Weil de que o poder é a capacidade de transformar uma pessoa viva num cadáver, ou seja, numa coisa.
[4] Alan Harrington,  Life in the Crystal Palace. Nova York: Alfred A. Knopf Inc., 1959; Londres: Jonathan Cape, Ltd., 1960.
[5] Cf. H. Kahn, On Thermonuclear War. Princeton: Princeton University Press, 1960, p. 47, n. 1.
[6] Este problema é analisado em detalhes em Eric Fromm, The Sane Society. Nova York: Rinehart & Co., Inc., 1995.

11/14/2016

Arte de mestre[1]


José Paulo Paes


    Este ensaio foi escrito a convite da fundação Ayacucho, da Venezuela, para servir de prólogo a uma edição em espanhol de Cacau/ Gabriela, cravo e canela da prestigiosa biblioteca Ayacucho, em cujo catálogo figuram os principais autores da América latina, antigos e modernos. O convite me deu a oportunidade, ou melhor, o pretexto de voltar a debruçar-me, desta vez analiticamente, sobre duas obras capitais de um romancista por quem tenho velha e fiel admiração. (...).

            Com Gabriela, pude avaliar o quanto o espontâneo talento de narrador testemunhado em Cacau amadurecera em arte de mestre na grandeza de um quadro de tessitura por assim dizer polifônica, dos mais bem logrados de que se pode orgulhar a prosa de ficção do Brasil (...).

            Os vínculos de Gabriela, cravo e canela (1958) com o clima ideológico da época em que foi escrito e publicado não são, nem de longe, imediatos e declarados como os de Cacau com o obreirismo de programa dos anos 30. Trata-se de vínculos antes de omissão que de comissão. Explicando melhor: É na medida em que não faz praça de um compromisso explícito de engajamento que Gabriela dá boa conta da circunstância histórica de sua composição, o final dos anos 50, quando o desmonte do mito stalinista aliviara finalmente os escritores de esquerda das coerções mais tirânicas do chamado realismo socialista. Visto desta perspectiva, Gabriela parece estar nos antípodas de Cacau, tantas são as diferenças que dele o estremam. Duas parecem ser particularmente relevantes.

            Primeira, a de sua ação não se ambientar num passado como o do narrador autobiográfico de Cacau, que, por muito próximo, em pouco ou nada se distinguia do presente de seus leitores. A história de Nacib e Gabriela remonta ao ano de 1925, “um tempo curto de meses e longo de acontecimentos”, particularmente decisivo na crônica da cidade de Ilhéus, pois foi nesse ano que a dragagem do porto, para abri-lo a navios de grande calado, possibilitou a exportação direta do cacau, com o consequente ascensão político e social dos exportadores e o declínio não menos consequente do poder absoluto dos coronéis. Se por mais não fosse, a visada histórica facultou in limine a Gabriela desobrigar-se das palavras de ordem da imediatez politica, num distanciamento cujos benefícios puderam ser vistos desde Terras do sem-fim (1943). (...)

            Outra diferença de monta entre Cacau e Gabriela está na mudança do registro da voz narrativa, que passa da primeira pessoa da autobiografia para a terceira do discurso indireto. (...) A todo passo, soa em Gabriela a duplicidade de vozes involucrando “ao mesmo tempo, duas intenções diferentes: a intenção direta do personagem que fala e a intenção refrangida do autor”.[2]Com isso, o uníssono ideológico do romance de engajamento, onde o outro só aparece como caricatura, cede lugar a polifonia das vozes sociais, cada qual com a sua inflexão própria e o seu próprio universo de valores. E essas vozes múltiplas se articulam- para levar um pouco mais adiante o símile musical- com duas claves distintas. De um lado, a clave do coletivo, que rege, na história de ilhéus, o confronto dramático entre o coronel e o exportador, ou que dá no mesmo, entre a tradição e a inovação. 

    De outro, a clave do pessoal, em cuja pauta se inscreve o ídilio entre Nacib e Gabriela. Ambas as claves confluem no empenho de modular, por nexos progressivos de consonância, a passagem do individual ao grupal, do econômico ao ético, do histórico a mítico, do sentimental e do dramático ao cômico e ao picaresco, num amplo, variado tecido sinfônico cujo poder de convencimento dá a medida do grau de mestria a que pôde chegar a arte de ficção de Jorge Amado.

            A amplitude sinfônica responde inclusive por uma terceira e óbvia diferença, a da extensão física entre as cento e poucas páginas de Cacau e as quinhentas e tantas de Gabriela. Foram estas as necessárias para erguer uma complexa polifonia narrativa, com dezenas de personagens e perto de uma centena de figurantes, onde nada é demais ou de menos: cada elemento, por mínimo que seja, tem o seu lugar certo e a sua função especifica a cumprir na ordem de uma totalidade social artisticamente representada. E, ao falar nesse tipo de totalidade, está-se implicitamente falando (...) de uma dimensão épica ou heroica, residual, herdada por Gabriela de terras do sem-fim para desenvolver não no mesmo diapasão, mas num diapasão idílico-paródico-pastoral cujas primícias, como vimos, estão em Cacau.

            Esta perspectiva de uma continuidade, menos fácil de distinguir porque subjacente à ostensiva perspectiva de diferenças, se escalona na série de romances que vão de Cacau a Gabriela. Podem alguns deles até ser vistos como retomada e ampliação, em separado, de motivos apenas esboçados no primeiro desses dois livros, e que, enriquecidos de todas as conotações adquiridas durante o percurso, voltarão a confluir no segundo deles. (...)

            Pode-se dizer que em Gabriela ambos os espaços, o rural e o urbano, se interpenetram. Diferentemente de Salvador, tão afastada da zona cacaueira, embora dela recolha os maiores proventos, como exportar pelo seu próprio porto- pelo menos até 1925- todo o cacau lá produzido, Ilhéus não passa de uma extensão ou apêndice citadino dessa zona, de que tanto depende. Tal dependência e proximidade estão metonimicamente expressas no fato de os forasteiros que lhe andam pelas ruas se entontecerem com “o perfume das amêndoas do cacau seco, tão forte”. 
    
    Esta metonímia de ordem olfativa é particularmente significativa num romance onde o primado do aromático, patente desde as duas especiarias referidas no seu título- cravo e canela-, remete de pronto aos prazeres do paladar, intimamente ligado aos do sexo numa tábua de valores sensuais que ficam tão longe da frugalidade proletária de Cacau quanto perto do hedonismo da cultura folclórica, em que a cozinha regional ocupa o mesmo lugar de honra do ritual religioso. Isso numa equipoderância de valores materiais e espirituais tão bem destacada nessa cultura por Mikhail Bakhtin.[3]

            (...) Na estrutura de Gabriela se justapõe duas linhas narrativas- a do coletivo, centrada na luta politica entre o exportador Mundinho Falcão e o coronel Ramiro Bastos, e a do individual, voltada para o idílio amoroso de Nacib com Gabriela. O fato de o nome de a protagonista dar título ao romance pareceria indicar um predomínio desta última linha sobre a outra, não fosse o predomínio logo a seguir desmentido pelo subtítulo de Crônica de uma cidade do interior. Este aparente conflito de ênfases entre titulo e subtítulo tem a ver com uma questão menos de hegemonia que de representatividade: entre a heroína e a cidade haveria algum laço de equivalência ou consubstancialidade sob cuja ótica o conflito se resolveria. O laço realmente existe e, em se tratando de um romance plurívoco, tem vigência em vários níveis.

(...) Desde o princípio, confluem na narrativa, em enfretamento critico, o tema da sujeição/libertação feminina e o tema do atraso/progresso urbano. O jogo de paralelismos e interações entre os dois temas dialéticos se vai enriquecendo com o avanço da narrativa. Por aí se evidencia a íntima correlação de um com o outro, não obstante situarem-se em esferas diversas, um na da ética, o outro na da economia.

            O realce de semelhante tipo de correlação era de se esperar num romance histórico de costumes como Gabriela, cujo assunto, conforme já se disse, é o declínio do poder dos coronéis e a ascensão dos exportadores de cacau. Esse processo político-econômico tem repercussões na vida social de Ilhéus, sobretudo nas relações entre os sexos. Apressa uma mudança de costumes que começa por libertar as mulheres das coerções mais tirânicas de uma moralidade semifeudal. É o que reconhece, a propósito do direito tacitamente reconhecido ao marido de matar a esposa adúltera, o filho do todo poderoso coronel Ramiro, Tonico Bastos: “costumes feudais. (...) Aqui vivemos no século passado”. Tais costumes eram resquícios de um passado guerreiro, quando as lutas pelas posses da terra ainda selvática e as dificuldades de povoá-la impunham hábitos de vida a um só tempo frugais e senhoriais. (...)

            Á altura em que se passa a ação de Gabriela, o código moral dos coronéis já era sentido como retrógrado, embora ainda não fosse abertamente desafiado. Para a sua obsolescência concorria a própria transformação do modo de vida, de rural para urbano; a antiga sobriedade no viver (...) ia se perdendo em Ilhéus e Itabuna, onde começavam os coronéis a comprar e a construir boas moradias, bangalôs e até mesmo palacetes. Eram os filhos, estudantes nas faculdades da Bahia, que os obrigavam a abandonar os hábitos frugais. Para exprimir figuradamente a necessidade de mudança de hábitos, o romancista encontra em certo momento uma metonímia saborosa, em que resume a diferença de opiniões entre dois coronéis de prol. Um é o coronel Altino Brandão, de Itabuna, o mesmo que pontificara sobre as vantagens do casamento a Mundinho Falcão no escritório deste; o outro é o já octogenário coronel Ramiro Bastos, que ele tenta convencer a aliar-se politicamente ao exportador, em vez de hostilizá-lo.

            (...) Não por acaso o subcapítulo (...) se intitula “Das cadeiras de alto espaldar”. A diferença entre a austeridade das antigas mas incômodas cadeiras de espaldar alto e o conforto das modernas poltronas estofadas serve bem para dar concretude ao contraste de uma noção de mando como direito conquistado pela força e mantido pela tradição com o conceito de poder como emanação da vontade geral e atualização do espirito dos tempos. Ou seja, o contraste de uma moral ascético-conservadora de guerreiros com uma moral hedonístico- progressista de comerciantes, um enfrentamento do velho com o novo corporificado respectivamente no grapiúna Ramiro Bastos e no carioca Mundinho Falcão.

            Os variados incidentes da efabulação do romance vão ilustrar, cada qual à sua maneira, as sucessivas vitórias do novo, a despeito da resistência do velho. Castigada pelo pai, o coronel Melk Tavares, por seu namoro com o engenheiro encarregado da dragagem do porto, um homem casado, Malvina foge do colégio interno em Salvador e vai para São Paulo trabalhar e estudar por conta própria. No episódio, entrecruzam-se o coletivo e o individual na medida em que o gesto de independência de Malvina fora precipitado pelo mesmo engenheiro que, trazido a Ilhéus para dragar o porto, por interferência de Mundinho Falcão junto ao governo federal, desfere com isso um golpe mortal na hegemonia dos coronéis, prestigiados pelo governo estadual[4] enquanto este pôde usufruir o privilégio de exportar-lhes todo o cacau pelo porto da capital do estado. O escândalo causado pelo assassinato de sinhazinha e seu amante, pelo marido enganado, evidencia, por outro lado, que o código moral dos coronéis já não era tão tacitamente aceito como antes, e isso se confirma no final do romance, quando o processo contra o matador, movido pelas famílias das vítimas, tem por desfecho a sua condenação- um fato até então inédito nos fastos jurídicos de Ilhéus. (...)

            Tão radical transformação de costumes, ainda que houvesse estado a gestar-se desde antes, se completa nos poucos meses a cuja crônica histórica Gabriela se propôs. Nesse processo, idílio entre Nacib e Gabriela desempenha o papel de foco. De certo modo, pode-se considerar os demais sucessos narrados no livro como uma espécie de panóplia em cujo centro se destaca ele, não como cena estática, mas como elemento da dinâmica do processo. Mesmo porque idílio tem uma dramática própria desencadeada pelo desastrado casamento que lhe serve de divisor de águas. Antes de se resolver a desposa sua cozinheira, Nacib desfrutara sem problemas tudo quanto ela lhe dava de sim sem nada pedir em troca. Na mesa, “o tempero entre o sublime e o divino” da sua comida; na cama, “o fogo a crepitar inextinguível” da sua carne mulata, cor de canela, com cheiro de cravo. Ela lhe veio aumentar inclusive a prosperidade econômica, pois o sabor dos seus quitutes, tanto quanto a graça de sua presença (...) fizeram aumentar a afluência do bar Vesúvio. (...) paradoxalmente, são as próprias virtudes dela que acabam por provocar inquietações e angustias no seu amante-patrão. (...) começou ele a temer que lhe pudessem roubar a cozinheira, oferecendo-lhe alguém melhor posição e maior paga, ou a amante, montando-lhe casa própria e a enchendo de presentes. Não bastasse isso, entram a atormentá-lo ciúmes dos olhares cobiçosos de que a rodeiam os frequentadores do bar Vesúvio. Após muito excogitar, Nacib encontra afinal no casamento no casamento a solução supostamente ideal para os seus sustos de patrão e os seus zelos de amoroso. Afrontando a opinião pública, à qual escandalizava um comerciante de respeito a desposar uma retirante de vida atirada, e a falta de entusiasmo da própria Grabriela, o matrimônio se realiza, e de papel passado.

            A partir daí, as coisas começam a desandar na vida até então regalada de Nacib. O sumiço de Gabriela do bar Vesúvio, aonde não ia mais por imposição o marido, faz cair o movimento da casa. Outrossim, as proibições sociais ligadas à sua nova condição de Sra. Saad fazem-na perder a espontaneidade de criança, entristecer, sentir-se prisioneira. (...) Até na cama Nacib a sente agora diferente. Embora ela continuasse a mostrar-se carinhosa, era como se as exigências da nova posição social “refreassem seu ardor, contivessem seu desejo, esfriassem seu peito”. Isso até o dia em que ele a surpreende na cama com Tonico Bastos. Depois de surrar-lhe o amante e a expulsar de casa, descobre um jeito de anular igualmente o casamento, com o que voltam ambos ao estado de solteiros. Mas os interesses comerciais o forçam a recontratá-la, meses mais tarde, como cozinheira; mais adiante ainda, volta a frequentar-lhe o leito, se bem ocasionalmente, sem mais nenhum compromisso de exclusividade de uma ou de outra parte.

            Pode-se ler este idílio em três movimentos- antes, durante e depois do casamento-, com uma espécie de fábula admonitória contra o instinto burguês de posse empenhado em estender até o domínio do sexo, através do instituto do casamento monogâmico, a santificação em lei da propriedade privada. Em apoio de semelhante, haveria a circunstância de, longe do proletarismo de Cacau e dos romances que a ele se seguiram até Gabriela, este último estar a todo consagrado à representação da luta da burguesia progressista de Ilhéus contra o atraso feudal do coronelato do cacau. Nacib é um condigno representante desse tipo de burguesia, e para se ter uma medida da mudança de ênfase de Cacau para Gabriela, na Ilhéus deste passa à categoria de protagonista um daqueles vagos “árabes do comércio local que trocavam língua” na Pirangi daquele, onde não faziam jus senão a essa fugacíssima menção. Mas privilegiar tal leitura fabular seria atribuir a Gabriela um propósito de crítica ideológica que lhe parece ser estranho: nele, a antítese povo X burguesia, quando presente, assume mais o caráter de um confronto de valores éticos e culturais do que de uma oposição politica tipo explorados X exploradores tão à flor do texto nos romances engajados seus predecessores.

            O malogro do casamento de Nacib está mais bem ligado a uma ética pastoral cujas linhas de força se prolongam de Cacau a Gabriela para aqui assumir uma outra e mais rica configuração. Talvez possa causar espécie falar de pastoralismo no caso de um romance de ação ambientada na cidade e não no campo. Tanto mais a mais pastoral de suas personagens, vinda embora da ruralidade do agreste, dela abdica de alma leve para se urbanizar em definitivo, sem qualquer nostalgia e nenhum sentimento de culpa. Entretanto, conforme mostrou bem William Empsom ao estudar-lhe versões tão pouco campestres quanto A Ópera do mendigo, de John Gay, ou Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, o princípio pastoral não depende necessariamente, para se atualizar em literatura da situação campestre onde se originou: basta conservar-lhe, como pedra de toque, os valores essenciais, sobretudo a oposição de base entre vida natural e vida artificial. No caso de Gabriela, ademais, haveria a circunstância atenuante de Ilhéus estra umbilicalmente ligada, como já vimos, à ruralidade da zona cacaueira; por estar mais perto daquele do que deste, ainda o emblematiza em certa medida.[5] (...)
            
    O bom selvagem de Rousseau é um constructo filosófico tipicamente pastoral, e em Gabriela ele se corporifica sob a forma do que William Empson, ao estudar o pastoralismo infuso nas duas Alices de Lewis Carroll, chamou de “criança-juiz”. Cabe entender por isso uma visão crítica das convenções a partir da perspectiva da ingenuidade. No fundo, é o mesmo recurso de que se valeram os enciclopedistas no seu desmascaramento, via prosa de ficção, da irracionalidade do antigo regime, e que encontrou sua mais bem lograda utilização em L’ingénu, de Voltaire, a fábula de iroquês cujos olhos de selvagem, por inocentes, têm o condão de atravessar as máscaras sociais para descobrir por trás delas as hipocrisias que os olhos civilizados, por culpados, evitam ou fingem não ver. Na perspectiva da ingenuidade crítica, o selvagem e a criança, mercê de sua maior proximidade das origens (sociais num caso, biológicas no outro) se equivalem, e Gabriela tem algo de uma e outro sempre, com a espontaneidade dos seus gostos- andar descalça, brincar na rua, dançar no terno de reis, ir ao circo, rir quando quiser, deitar com quem lhe agrade-, acaba pondo em xeque os tabus que a impedem de satisfazê-los. (...)
            Salta aos olhos, no caráter de Gabriela, um forte traço de infantilidade que chega por vezes à beira do retardamento mental. Todavia, o fato de estra acompanhado de uma sexualidade amadurecida, segura de si, faz que a verossimilhança ceda, no caso, seus direitos a coerência simbólica. Na sua feliz animalidade, que não conhece outro limite para o desejo que não seja a ânsia de plenitude, própria e alheia, ela é o sexo no grau máximo, pastoral, de naturalidade. Daí que também nesse domínio a sua lógica de bom selvagem seja não menos subversiva do código estabelecido. Ela se entregava de noite ao retirante Clemente “como se nada fora”, pois “no outro dia era como se ela nem se recordasse, olhava-o como aos outros, tratava-o como aos demais”, paradoxo que o Negro Fagundes assim elucida ao companheiro de jornada e de labuta: “Ela não é mulher pra se viver com ela. (...) Tu pode dormir com ela, fazer as coisas. Mas ter ela mesmo, ser dono dela como é de outras, isso ninguém nunca vai ser”. (...) João Fulgêncio (...) também se recusa a rotular Gabriela, sequer com o epíteto de “alma de criança” proposto por um dos seus interlocutores: “Gabriela é boa, generosa, impulsiva, pura. Dela podem-se enumerar qualidades e defeitos, explica-la jamais. Faz o que ama, recusa-se ao que não lhe agrada. Não quero explicá-la. Para mim basta vê-la, saber que existe”. (...)

            A retomada do esquema pastoral em Gabriela se faz também sob a forma de um encontro idílico de classes que lembra o de Cacau, mas com diferente distribuição de papéis. Do homem de classe “inferior” requestado por mulher de classe “superior”,[6] passa-se a situação inversa. Nos dois casos, malogra a superação das diferenças sociais pela força do amor, vitorioso no tipo mais convencional de idílio. (...) Não implica a separação dos amantes, mas tão só uma mudança ou correção no regime de relação entre eles, que aponta criticamente, de um lado, para o caráter repressivo do casamento como instituição a serviço da vontade burguesa de posse, e, de outro, para uma incompatibilidade de raiz entre a liberdade sexual enquanto valor da natureza e as convenções artificiais que a buscam refrear. A circunstância de Nacib voltar ao leito de Gabriela depois da anulação do casamento, mas já agora sem exigências de exclusividade, comporta por sua voz uma dupla leitura. Rebaixando-a de esposa a amante ocasional, de estatuto equivalente ao das mulheres da vida cuja frequentação retoma, ele alcança resolver, dentro do quadro da moralidade burguesa, a dissonância subversiva ali introduzida por ela. Contudo, ao aceitar de novo os favores de Gabriela, o ex-marido traído está implicitamente reconhecendo vitoriosa a permanente liberdade de escolha de parceiros por ela conquistada, com o que o episódio casamento/descasamento assume inflexão pedagógica. (...)

            Gabriela também encarna miticamente a ânsia de independência e liberdade sexual da mulher. Isso num momento histórico propício, em que o atraso feudal dos coronéis tem de ceder às exigências modernizadoras do progresso. (...) A mudança de padrões políticos- a ascensão de Mundinho Falcão e o fim do absolutismo coronelício- é comparada a uma mudança dos padrões sexuais: a derrocada da lei dos coronéis na punição do adultério e a libertação de Gabriela das coerções do matrimônio burguês, alçando-a a símbolo de independência e liberdade do seu sexo. Além disso, a personificação do princípio heroico num “membro importante” da sociedade de Ilhéus, nada menos que o seu venerando cacique político, e do princípio pastoral num “membro desimportante”, nada mais do que uma cozinheira elevada a condição de heroína, aponta diretamente para o duplo registro tragicômico inseparável das atualizações modernas do pastoralismo.

            (...) (convém) realçar uma dinâmica interna, especificamente literária, da arte de ficção de Jorge Amado, em contraposição a ênfase em fatores externos, de ordem sociopolítica ou circunstancial, comumente invocados para explicar as singularidades de sua trajetória, sobretudo a passagem, cujo divisor de águas é exatamente Gabriela, cravo e canela, de um engajamento declarado para o que, se não chegar a configurar-se como desengajamento (não o pode ser qualquer das formas de populismo), tampouco implica comprometimento com um programa ideológico.

            Conforme se viu no curso da análise, a passagem, ainda que condicionada por fatores externos, se faz em termos de uma lei interna, o princípio pastoral, cujas atualizações foram acoroçoadas num ou noutro sentido por eles. Da continuidade de tal princípio irão dar testemunho os livros que se seguem a Gabriela. Dois deles, Tereza Batista cansada de guerra (1972) e Tieta do Agreste (1977), giram em torno de protagonistas femininas que, correspondem ainda mais de perto ao molde da prostituta pastoralizada desentranhando da Ópera do mendigo pela pinça analítica de Empson como uma metáfora crítica da hipocrisia das classes dominantes. De igual modo, o Quincas Berro Dágua da novela homônima (1960) ou o Pedro Archanjo de Tenda dos Milagres (1970), na sua condição de marginais da sociedade burguesa, dão-nos, enquanto protagonistas, uma visão crítica dela. Um por pertencer ao mundo da boemia popular, outro ao mundo do candomblé, dois mundos eminentemente antiburgueses, são atualizações do “homem do povo” cuja origem idílica ou pastoral, dentro do romance, foi bem acentuada por Mikhail Bakhtin, que assim lhe resume os traços definidores: “o homem do povo surge como portador da atitude sábia para com a vida e a morte, perdida pelas classes dominantes. (...) Sua imagem relaciona-se a uma descrição particular da comida, da bebida, do amor, da procriação. (...) Frequentemente, destaca-se em primeiro plano uma incompreensão sábia (e reveladora) do homem do povo face à mentira e convenções”.[7]

            Não é difícil reconhecer, nesses traços, o rosto de vários dos heróis e heroínas amadianos aqui citados de passagem ou considerados mais de perto. Por mais do que figurações ideológicas, eles são tipos humanos cuja força de convencimento tem muito a ver com a vitalidade da cultura popular afro-brasileira da Bahia. Dessa cultura, que vem resistindo a ação aplastadora dos meios de comunicação de massa, a obra de ficção de Jorge Amado, dela sempre tão próxima, desde os primeiros tempos de engajamento enragé, é sem dúvida uma das expressões mais altas e mais fiéis.

José Paulo Paes (1926-98) foi poeta, ensaísta e tradutor de inúmeros idiomas.



[1] Texto extraído do livro de Cacau a Gabriela, um percurso pastoral (Casa de Palavras, 1991) e editado por Ilana Goldstein. As de mais notas pertencem a José Paulo Paes.
[2] Mikhail Bakhtin. Questões de literatura e de estética: A teoria do romance (trad. A. F. Bernardini e outros). São Paulo, Hucitc/Unesp, 1988, p. 127.
[3] Bakhtin (op. Cit., pp.282-316 e 317-32) estuda na obra de Rabelais a fidelidade desta aos valores do que chama de antigo complexo folclórico, onde (...) as convenções falsas e ideal do além eram desconhecidos. Nesse complexo, as várias séries de “valores” (do corpo humano, da indumentária, da nutrição, da bebida e da embriaguez, da copulação, da morte, dos excrementos) se entrecruzavam sem distinções hierárquicas e com estatuto de equiponderância.
[4] Esta íntima ligação entre coronelismo e poder estadual era característica da “política dos governadores” institucionalizada no governo Campos Sales, como a própria estrutura de poder da República velha contra a qual se voltou o movimento tenentista. Ver, a propósito, Edgar Carone, Revoluções do Brasil contemporâneo (1922-1938). 3 ed. rev. São Paulo, 1977, p.20.
[5] William Empson. Some versions of pastoral. A atudy of the pastoral form in literature. Harmmondsworth, Penguin, s. d., p.2003.
[6] Ter certa pertinência, no caso, lembrar que na poesia lírica provençal havia um gênero conhecido como “pastorela” ou “pastoreta” caracterizado pelo debate entre um cavaleiro e pastora, debate de que esta saía usualmente vencedora. Cf. Joseph T. Shipley (ed.). Dictionary of world literary terms: Criticism, forms, technique. Londres, Georges Allen e Inwin, 1995, p. 301.
[7] Mikhail Bakhtin, op. Cit., p. 342.