José
Paulo Paes
Este ensaio foi escrito
a convite da fundação Ayacucho, da Venezuela, para servir de prólogo a uma
edição em espanhol de Cacau/ Gabriela,
cravo e canela da prestigiosa biblioteca Ayacucho, em cujo catálogo figuram
os principais autores da América latina, antigos e modernos. O convite me deu a
oportunidade, ou melhor, o pretexto de voltar a debruçar-me, desta vez
analiticamente, sobre duas obras capitais de um romancista por quem tenho velha
e fiel admiração. (...).
Com Gabriela, pude
avaliar o quanto o espontâneo talento de narrador testemunhado em Cacau amadurecera em arte de mestre na
grandeza de um quadro de tessitura por assim dizer polifônica, dos mais bem
logrados de que se pode orgulhar a prosa de ficção do Brasil (...).
Os vínculos de Gabriela,
cravo e canela (1958) com o clima ideológico da época em que foi escrito e
publicado não são, nem de longe, imediatos e declarados como os de Cacau com o obreirismo de programa dos
anos 30. Trata-se de vínculos antes de omissão que de comissão. Explicando
melhor: É na medida em que não faz praça de um compromisso explícito de
engajamento que Gabriela dá boa conta
da circunstância histórica de sua composição, o final dos anos 50, quando o
desmonte do mito stalinista aliviara finalmente os escritores de esquerda das
coerções mais tirânicas do chamado realismo socialista. Visto desta
perspectiva, Gabriela parece estar
nos antípodas de Cacau, tantas são as
diferenças que dele o estremam. Duas parecem ser particularmente relevantes.
Primeira, a de sua ação não se ambientar num passado como
o do narrador autobiográfico de Cacau,
que, por muito próximo, em pouco ou nada se distinguia do presente de seus
leitores. A história de Nacib e Gabriela remonta ao ano de 1925, “um tempo
curto de meses e longo de acontecimentos”, particularmente decisivo na crônica
da cidade de Ilhéus, pois foi nesse ano que a dragagem do porto, para abri-lo a
navios de grande calado, possibilitou a exportação direta do cacau, com o
consequente ascensão político e social dos exportadores e o declínio não menos
consequente do poder absoluto dos coronéis. Se por mais não fosse, a visada
histórica facultou in limine a Gabriela desobrigar-se das palavras de
ordem da imediatez politica, num distanciamento cujos benefícios puderam ser
vistos desde Terras do sem-fim
(1943). (...)
Outra diferença de monta entre Cacau e Gabriela está na
mudança do registro da voz narrativa, que passa da primeira pessoa da
autobiografia para a terceira do discurso indireto. (...) A todo passo, soa em Gabriela a duplicidade de vozes
involucrando “ao mesmo tempo, duas intenções diferentes: a intenção direta do
personagem que fala e a intenção refrangida do autor”.[2]Com
isso, o uníssono ideológico do romance de engajamento, onde o outro só aparece
como caricatura, cede lugar a polifonia das vozes sociais, cada qual com a sua
inflexão própria e o seu próprio universo de valores. E essas vozes múltiplas
se articulam- para levar um pouco mais adiante o símile musical- com duas
claves distintas. De um lado, a clave do coletivo, que rege, na história de
ilhéus, o confronto dramático entre o coronel e o exportador, ou que dá no
mesmo, entre a tradição e a inovação.
De outro, a clave do pessoal, em cuja
pauta se inscreve o ídilio entre Nacib e Gabriela. Ambas as claves confluem no
empenho de modular, por nexos progressivos de consonância, a passagem do
individual ao grupal, do econômico ao ético, do histórico a mítico, do
sentimental e do dramático ao cômico e ao picaresco, num amplo, variado tecido
sinfônico cujo poder de convencimento dá a medida do grau de mestria a que pôde
chegar a arte de ficção de Jorge Amado.
A amplitude sinfônica responde inclusive por uma terceira
e óbvia diferença, a da extensão física entre as cento e poucas páginas de Cacau e as quinhentas e tantas de Gabriela. Foram estas as necessárias
para erguer uma complexa polifonia narrativa, com dezenas de personagens e
perto de uma centena de figurantes, onde nada é demais ou de menos: cada
elemento, por mínimo que seja, tem o seu lugar certo e a sua função especifica
a cumprir na ordem de uma totalidade social artisticamente representada. E, ao
falar nesse tipo de totalidade, está-se implicitamente falando (...) de uma
dimensão épica ou heroica, residual, herdada por Gabriela de terras do sem-fim para desenvolver não no mesmo
diapasão, mas num diapasão idílico-paródico-pastoral cujas primícias, como
vimos, estão em Cacau.
Esta perspectiva de uma continuidade, menos fácil de
distinguir porque subjacente à ostensiva perspectiva de diferenças, se escalona
na série de romances que vão de Cacau a
Gabriela. Podem alguns deles até ser vistos como retomada e ampliação, em
separado, de motivos apenas esboçados no primeiro desses dois livros, e que,
enriquecidos de todas as conotações adquiridas durante o percurso, voltarão a
confluir no segundo deles. (...)
Pode-se dizer que em Gabriela
ambos os espaços, o rural e o urbano, se interpenetram. Diferentemente de
Salvador, tão afastada da zona cacaueira, embora dela recolha os maiores
proventos, como exportar pelo seu próprio porto- pelo menos até 1925- todo o
cacau lá produzido, Ilhéus não passa de uma extensão ou apêndice citadino dessa
zona, de que tanto depende. Tal dependência e proximidade estão metonimicamente
expressas no fato de os forasteiros que lhe andam pelas ruas se entontecerem
com “o perfume das amêndoas do cacau seco, tão forte”.
Esta metonímia de ordem
olfativa é particularmente significativa num romance onde o primado do
aromático, patente desde as duas especiarias referidas no seu título- cravo e
canela-, remete de pronto aos prazeres do paladar, intimamente ligado aos do sexo
numa tábua de valores sensuais que ficam tão longe da frugalidade proletária de
Cacau quanto perto do hedonismo da
cultura folclórica, em que a cozinha regional ocupa o mesmo lugar de honra do
ritual religioso. Isso numa equipoderância de valores materiais e espirituais
tão bem destacada nessa cultura por Mikhail Bakhtin.[3]
(...) Na estrutura de Gabriela
se justapõe duas linhas narrativas- a do coletivo, centrada na luta
politica entre o exportador Mundinho Falcão e o coronel Ramiro Bastos, e a do
individual, voltada para o idílio amoroso de Nacib com Gabriela. O fato de o
nome de a protagonista dar título ao romance pareceria indicar um predomínio
desta última linha sobre a outra, não fosse o predomínio logo a seguir
desmentido pelo subtítulo de Crônica de
uma cidade do interior. Este aparente conflito de ênfases entre titulo e
subtítulo tem a ver com uma questão menos de hegemonia que de
representatividade: entre a heroína e a cidade haveria algum laço de
equivalência ou consubstancialidade sob cuja ótica o conflito se resolveria. O
laço realmente existe e, em se tratando de um romance plurívoco, tem vigência
em vários níveis.
(...)
Desde o princípio, confluem na narrativa, em enfretamento critico, o tema da
sujeição/libertação feminina e o tema do atraso/progresso urbano. O jogo de
paralelismos e interações entre os dois temas dialéticos se vai enriquecendo
com o avanço da narrativa. Por aí se evidencia a íntima correlação de um com o
outro, não obstante situarem-se em esferas diversas, um na da ética, o outro na
da economia.
O
realce de semelhante tipo de correlação era de se esperar num romance histórico
de costumes como Gabriela, cujo
assunto, conforme já se disse, é o declínio do poder dos coronéis e a ascensão
dos exportadores de cacau. Esse processo político-econômico tem repercussões na
vida social de Ilhéus, sobretudo nas relações entre os sexos. Apressa uma
mudança de costumes que começa por libertar as mulheres das coerções mais
tirânicas de uma moralidade semifeudal. É o que reconhece, a propósito do
direito tacitamente reconhecido ao marido de matar a esposa adúltera, o filho
do todo poderoso coronel Ramiro, Tonico Bastos: “costumes feudais. (...) Aqui
vivemos no século passado”. Tais costumes eram resquícios de um passado
guerreiro, quando as lutas pelas posses da terra ainda selvática e as
dificuldades de povoá-la impunham hábitos de vida a um só tempo frugais e
senhoriais. (...)
Á altura em que se passa a ação de Gabriela, o código moral dos coronéis já era sentido como
retrógrado, embora ainda não fosse abertamente desafiado. Para a sua
obsolescência concorria a própria transformação do modo de vida, de rural para
urbano; a antiga sobriedade no viver (...) ia se perdendo em Ilhéus e Itabuna,
onde começavam os coronéis a comprar e a construir boas moradias, bangalôs e
até mesmo palacetes. Eram os filhos, estudantes nas faculdades da Bahia, que os
obrigavam a abandonar os hábitos frugais. Para exprimir figuradamente a
necessidade de mudança de hábitos, o romancista encontra em certo momento uma
metonímia saborosa, em que resume a diferença de opiniões entre dois coronéis
de prol. Um é o coronel Altino Brandão, de Itabuna, o mesmo que pontificara
sobre as vantagens do casamento a Mundinho Falcão no escritório deste; o outro
é o já octogenário coronel Ramiro Bastos, que ele tenta convencer a aliar-se
politicamente ao exportador, em vez de hostilizá-lo.
(...) Não por acaso o subcapítulo (...) se intitula “Das
cadeiras de alto espaldar”. A diferença entre a austeridade das antigas mas
incômodas cadeiras de espaldar alto e o conforto das modernas poltronas
estofadas serve bem para dar concretude ao contraste de uma noção de mando como
direito conquistado pela força e mantido pela tradição com o conceito de poder
como emanação da vontade geral e atualização do espirito dos tempos. Ou seja, o
contraste de uma moral ascético-conservadora de guerreiros com uma moral
hedonístico- progressista de comerciantes, um enfrentamento do velho com o novo
corporificado respectivamente no grapiúna Ramiro Bastos e no carioca Mundinho
Falcão.
Os variados incidentes da efabulação do romance vão
ilustrar, cada qual à sua maneira, as sucessivas vitórias do novo, a despeito
da resistência do velho. Castigada pelo pai, o coronel Melk Tavares, por seu
namoro com o engenheiro encarregado da dragagem do porto, um homem casado,
Malvina foge do colégio interno em Salvador e vai para São Paulo trabalhar e
estudar por conta própria. No episódio, entrecruzam-se o coletivo e o
individual na medida em que o gesto de independência de Malvina fora
precipitado pelo mesmo engenheiro que, trazido a Ilhéus para dragar o porto,
por interferência de Mundinho Falcão junto ao governo federal, desfere com isso
um golpe mortal na hegemonia dos coronéis, prestigiados pelo governo estadual[4]
enquanto este pôde usufruir o privilégio de exportar-lhes todo o cacau pelo
porto da capital do estado. O escândalo causado pelo assassinato de sinhazinha
e seu amante, pelo marido enganado, evidencia, por outro lado, que o código
moral dos coronéis já não era tão tacitamente aceito como antes, e isso se
confirma no final do romance, quando o processo contra o matador, movido pelas
famílias das vítimas, tem por desfecho a sua condenação- um fato até então
inédito nos fastos jurídicos de Ilhéus. (...)
Tão radical transformação de costumes, ainda que houvesse
estado a gestar-se desde antes, se completa nos poucos meses a cuja crônica
histórica Gabriela se propôs. Nesse
processo, idílio entre Nacib e Gabriela desempenha o papel de foco. De certo
modo, pode-se considerar os demais sucessos narrados no livro como uma espécie
de panóplia em cujo centro se destaca ele, não como cena estática, mas como
elemento da dinâmica do processo. Mesmo porque idílio tem uma dramática própria
desencadeada pelo desastrado casamento que lhe serve de divisor de águas. Antes
de se resolver a desposa sua cozinheira, Nacib desfrutara sem problemas tudo
quanto ela lhe dava de sim sem nada pedir em troca. Na mesa, “o tempero entre o
sublime e o divino” da sua comida; na cama, “o fogo a crepitar inextinguível”
da sua carne mulata, cor de canela, com cheiro de cravo. Ela lhe veio aumentar
inclusive a prosperidade econômica, pois o sabor dos seus quitutes, tanto
quanto a graça de sua presença (...) fizeram aumentar a afluência do bar
Vesúvio. (...) paradoxalmente, são as próprias virtudes dela que acabam por
provocar inquietações e angustias no seu amante-patrão. (...) começou ele a
temer que lhe pudessem roubar a cozinheira, oferecendo-lhe alguém melhor
posição e maior paga, ou a amante, montando-lhe casa própria e a enchendo de
presentes. Não bastasse isso, entram a atormentá-lo ciúmes dos olhares
cobiçosos de que a rodeiam os frequentadores do bar Vesúvio. Após muito
excogitar, Nacib encontra afinal no casamento no casamento a solução
supostamente ideal para os seus sustos de patrão e os seus zelos de amoroso.
Afrontando a opinião pública, à qual escandalizava um comerciante de respeito a
desposar uma retirante de vida atirada, e a falta de entusiasmo da própria
Grabriela, o matrimônio se realiza, e de papel passado.
A partir daí, as coisas começam a desandar na vida até
então regalada de Nacib. O sumiço de Gabriela do bar Vesúvio, aonde não ia mais
por imposição o marido, faz cair o movimento da casa. Outrossim, as proibições
sociais ligadas à sua nova condição de Sra. Saad fazem-na perder a
espontaneidade de criança, entristecer, sentir-se prisioneira. (...) Até na
cama Nacib a sente agora diferente. Embora ela continuasse a mostrar-se
carinhosa, era como se as exigências da nova posição social “refreassem seu
ardor, contivessem seu desejo, esfriassem seu peito”. Isso até o dia em que ele
a surpreende na cama com Tonico Bastos. Depois de surrar-lhe o amante e a
expulsar de casa, descobre um jeito de anular igualmente o casamento, com o que
voltam ambos ao estado de solteiros. Mas os interesses comerciais o forçam a
recontratá-la, meses mais tarde, como cozinheira; mais adiante ainda, volta a
frequentar-lhe o leito, se bem ocasionalmente, sem mais nenhum compromisso de
exclusividade de uma ou de outra parte.
Pode-se ler este idílio em três movimentos- antes,
durante e depois do casamento-, com uma espécie de fábula admonitória contra o
instinto burguês de posse empenhado em estender até o domínio do sexo, através
do instituto do casamento monogâmico, a santificação em lei da propriedade
privada. Em apoio de semelhante, haveria a circunstância de, longe do
proletarismo de Cacau e dos romances
que a ele se seguiram até Gabriela, este
último estar a todo consagrado à representação da luta da burguesia
progressista de Ilhéus contra o atraso feudal do coronelato do cacau. Nacib é
um condigno representante desse tipo de burguesia, e para se ter uma medida da
mudança de ênfase de Cacau para Gabriela, na Ilhéus deste passa à
categoria de protagonista um daqueles vagos “árabes do comércio local que
trocavam língua” na Pirangi daquele, onde não faziam jus senão a essa
fugacíssima menção. Mas privilegiar tal leitura fabular seria atribuir a Gabriela um propósito de crítica
ideológica que lhe parece ser estranho: nele, a antítese povo X burguesia,
quando presente, assume mais o caráter de um confronto de valores éticos e
culturais do que de uma oposição politica tipo explorados X exploradores tão à
flor do texto nos romances engajados seus predecessores.
O malogro do casamento de Nacib está mais bem ligado a
uma ética pastoral cujas linhas de força se prolongam de Cacau a Gabriela para aqui assumir uma outra e mais rica
configuração. Talvez possa causar espécie falar de pastoralismo no caso de um
romance de ação ambientada na cidade e não no campo. Tanto mais a mais pastoral
de suas personagens, vinda embora da ruralidade do agreste, dela abdica de alma
leve para se urbanizar em definitivo, sem qualquer nostalgia e nenhum
sentimento de culpa. Entretanto, conforme mostrou bem William Empsom ao
estudar-lhe versões tão pouco campestres quanto A Ópera do mendigo, de John Gay, ou Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, o princípio
pastoral não depende necessariamente, para se atualizar em literatura da
situação campestre onde se originou: basta conservar-lhe, como pedra de toque,
os valores essenciais, sobretudo a oposição de base entre vida natural e vida
artificial. No caso de Gabriela,
ademais, haveria a circunstância atenuante de Ilhéus estra umbilicalmente
ligada, como já vimos, à ruralidade da zona cacaueira; por estar mais perto
daquele do que deste, ainda o emblematiza em certa medida.[5] (...)
O bom selvagem de Rousseau é um constructo filosófico
tipicamente pastoral, e em Gabriela ele
se corporifica sob a forma do que William Empson, ao estudar o pastoralismo
infuso nas duas Alices de Lewis Carroll, chamou de “criança-juiz”. Cabe
entender por isso uma visão crítica das convenções a partir da perspectiva da
ingenuidade. No fundo, é o mesmo recurso de que se valeram os enciclopedistas
no seu desmascaramento, via prosa de ficção, da irracionalidade do antigo
regime, e que encontrou sua mais bem lograda utilização em L’ingénu, de Voltaire, a fábula de iroquês cujos olhos de selvagem,
por inocentes, têm o condão de atravessar as máscaras sociais para descobrir
por trás delas as hipocrisias que os olhos civilizados, por culpados, evitam ou
fingem não ver. Na perspectiva da ingenuidade crítica, o selvagem e a criança,
mercê de sua maior proximidade das origens (sociais num caso, biológicas no
outro) se equivalem, e Gabriela tem
algo de uma e outro sempre, com a espontaneidade dos seus gostos- andar
descalça, brincar na rua, dançar no terno de reis, ir ao circo, rir quando
quiser, deitar com quem lhe agrade-, acaba pondo em xeque os tabus que a
impedem de satisfazê-los. (...)
Salta aos olhos, no caráter de Gabriela, um forte traço
de infantilidade que chega por vezes à beira do retardamento mental. Todavia, o
fato de estra acompanhado de uma sexualidade amadurecida, segura de si, faz que
a verossimilhança ceda, no caso, seus direitos a coerência simbólica. Na sua
feliz animalidade, que não conhece outro limite para o desejo que não seja a
ânsia de plenitude, própria e alheia, ela é o sexo no grau máximo, pastoral, de
naturalidade. Daí que também nesse domínio a sua lógica de bom selvagem seja
não menos subversiva do código estabelecido. Ela se entregava de noite ao
retirante Clemente “como se nada fora”, pois “no outro dia era como se ela nem
se recordasse, olhava-o como aos outros, tratava-o como aos demais”, paradoxo
que o Negro Fagundes assim elucida ao companheiro de jornada e de labuta: “Ela
não é mulher pra se viver com ela. (...) Tu pode dormir com ela, fazer as
coisas. Mas ter ela mesmo, ser dono dela como é de outras, isso ninguém nunca
vai ser”. (...) João Fulgêncio (...) também se recusa a rotular Gabriela,
sequer com o epíteto de “alma de criança” proposto por um dos seus
interlocutores: “Gabriela é boa, generosa, impulsiva, pura. Dela podem-se
enumerar qualidades e defeitos, explica-la jamais. Faz o que ama, recusa-se ao
que não lhe agrada. Não quero explicá-la. Para mim basta vê-la, saber que
existe”. (...)
A retomada do esquema pastoral em Gabriela se faz também sob a forma de um encontro idílico de
classes que lembra o de Cacau, mas
com diferente distribuição de papéis. Do homem de classe “inferior” requestado
por mulher de classe “superior”,[6]
passa-se a situação inversa. Nos dois casos, malogra a superação das diferenças
sociais pela força do amor, vitorioso no tipo mais convencional de idílio.
(...) Não implica a separação dos amantes, mas tão só uma mudança ou correção
no regime de relação entre eles, que aponta criticamente, de um lado, para o
caráter repressivo do casamento como instituição a serviço da vontade burguesa
de posse, e, de outro, para uma incompatibilidade de raiz entre a liberdade
sexual enquanto valor da natureza e as convenções artificiais que a buscam
refrear. A circunstância de Nacib voltar ao leito de Gabriela depois da
anulação do casamento, mas já agora sem exigências de exclusividade, comporta
por sua voz uma dupla leitura. Rebaixando-a de esposa a amante ocasional, de
estatuto equivalente ao das mulheres da vida cuja frequentação retoma, ele
alcança resolver, dentro do quadro da moralidade burguesa, a dissonância
subversiva ali introduzida por ela. Contudo, ao aceitar de novo os favores de
Gabriela, o ex-marido traído está implicitamente reconhecendo vitoriosa a
permanente liberdade de escolha de parceiros por ela conquistada, com o que o
episódio casamento/descasamento assume inflexão pedagógica. (...)
Gabriela também encarna miticamente a ânsia de
independência e liberdade sexual da mulher. Isso num momento histórico
propício, em que o atraso feudal dos coronéis tem de ceder às exigências
modernizadoras do progresso. (...) A mudança de padrões políticos- a ascensão
de Mundinho Falcão e o fim do absolutismo coronelício- é comparada a uma
mudança dos padrões sexuais: a derrocada da lei dos coronéis na punição do
adultério e a libertação de Gabriela das coerções do matrimônio burguês,
alçando-a a símbolo de independência e liberdade do seu sexo. Além disso, a
personificação do princípio heroico num “membro importante” da sociedade de
Ilhéus, nada menos que o seu venerando cacique político, e do princípio
pastoral num “membro desimportante”, nada mais do que uma cozinheira elevada a
condição de heroína, aponta diretamente para o duplo registro tragicômico
inseparável das atualizações modernas do pastoralismo.
(...) (convém) realçar uma dinâmica interna,
especificamente literária, da arte de ficção de Jorge Amado, em contraposição a
ênfase em fatores externos, de ordem sociopolítica ou circunstancial, comumente
invocados para explicar as singularidades de sua trajetória, sobretudo a
passagem, cujo divisor de águas é exatamente Gabriela, cravo e canela, de um engajamento declarado para o que,
se não chegar a configurar-se como desengajamento (não o pode ser qualquer das
formas de populismo), tampouco implica comprometimento com um programa
ideológico.
Conforme se viu no curso da análise, a passagem, ainda
que condicionada por fatores externos, se faz em termos de uma lei interna, o
princípio pastoral, cujas atualizações foram acoroçoadas num ou noutro sentido
por eles. Da continuidade de tal princípio irão dar testemunho os livros que se
seguem a Gabriela. Dois deles, Tereza Batista cansada de guerra (1972)
e Tieta do Agreste (1977), giram em
torno de protagonistas femininas que, correspondem ainda mais de perto ao molde
da prostituta pastoralizada desentranhando da Ópera do mendigo pela pinça analítica de Empson como uma metáfora
crítica da hipocrisia das classes dominantes. De igual modo, o Quincas Berro
Dágua da novela homônima (1960) ou o Pedro Archanjo de Tenda dos Milagres (1970), na sua condição de marginais da
sociedade burguesa, dão-nos, enquanto protagonistas, uma visão crítica dela. Um
por pertencer ao mundo da boemia popular, outro ao mundo do candomblé, dois
mundos eminentemente antiburgueses, são atualizações do “homem do povo” cuja
origem idílica ou pastoral, dentro do romance, foi bem acentuada por Mikhail
Bakhtin, que assim lhe resume os traços definidores: “o homem do povo surge
como portador da atitude sábia para com a vida e a morte, perdida pelas classes
dominantes. (...) Sua imagem relaciona-se a uma descrição particular da comida,
da bebida, do amor, da procriação. (...) Frequentemente, destaca-se em primeiro
plano uma incompreensão sábia (e reveladora) do homem do povo face à mentira e
convenções”.[7]
Não é difícil reconhecer, nesses traços, o rosto de
vários dos heróis e heroínas amadianos aqui citados de passagem ou considerados
mais de perto. Por mais do que figurações ideológicas, eles são tipos humanos
cuja força de convencimento tem muito a ver com a vitalidade da cultura popular
afro-brasileira da Bahia. Dessa cultura, que vem resistindo a ação aplastadora
dos meios de comunicação de massa, a obra de ficção de Jorge Amado, dela sempre
tão próxima, desde os primeiros tempos de engajamento enragé, é sem dúvida uma das expressões mais altas e mais fiéis.
José Paulo Paes
(1926-98) foi poeta, ensaísta e tradutor de inúmeros idiomas.
[1] Texto extraído do
livro de Cacau a Gabriela, um percurso
pastoral (Casa de Palavras, 1991) e editado por Ilana Goldstein. As de mais
notas pertencem a José Paulo Paes.
[2] Mikhail Bakhtin.
Questões de literatura e de estética: A teoria do romance (trad. A. F.
Bernardini e outros). São Paulo, Hucitc/Unesp, 1988, p. 127.
[3]
Bakhtin
(op. Cit., pp.282-316 e 317-32) estuda na obra de Rabelais a fidelidade desta
aos valores do que chama de antigo complexo folclórico, onde (...) as
convenções falsas e ideal do além eram desconhecidos. Nesse complexo, as várias
séries de “valores” (do corpo humano, da indumentária, da nutrição, da bebida e
da embriaguez, da copulação, da morte, dos excrementos) se entrecruzavam sem
distinções hierárquicas e com estatuto de equiponderância.
[4] Esta íntima
ligação entre coronelismo e poder estadual era característica da “política dos
governadores” institucionalizada no governo Campos Sales, como a própria
estrutura de poder da República velha contra a qual se voltou o movimento
tenentista. Ver, a propósito, Edgar Carone, Revoluções
do Brasil contemporâneo (1922-1938). 3 ed. rev. São Paulo, 1977, p.20.
[5] William Empson.
Some versions of pastoral. A atudy of the pastoral form in literature.
Harmmondsworth, Penguin, s. d., p.2003.
[6]
Ter certa
pertinência, no caso, lembrar que na poesia lírica provençal havia um gênero
conhecido como “pastorela” ou “pastoreta” caracterizado pelo debate entre um
cavaleiro e pastora, debate de que esta saía usualmente vencedora. Cf. Joseph
T. Shipley (ed.). Dictionary of world
literary terms: Criticism, forms, technique. Londres, Georges Allen e
Inwin, 1995, p. 301.
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