11/26/2016

Ben Pimlott sobre 1984, de George Orwell (1989).

    É fácil entender por que o último romance de George Orwell, publicado em junho de 1949, sete meses antes da morte do autor, foi um sucesso instantâneo. Em primeiro lugar, é uma narrativa perversamente indecorosa que leva a fantasia adolescente – de rebeldia solitária, sexo furtivo e terror implacável – a um extremo escandalosamente inaceitável. Segundo, e mais importante, essa história singular foi amplamente interpretada como comentário social a até mesmo como profecia.

            Não é surpreendente, talvez, que o romance tenha sido entendido dessa forma. Monotonia, escassez material e burocracia governamental eram um modo de vida não apenas no romance, mas na Grã-Bretanha em que foi escrito. Na mesma época, o totalitarismo era um medo que se aproximava furtivamente. A Alemanha nazista num passado recente e China e Rússia no presente de então amolduravam a consciência politica ocidental. Havia a sensação de se estar olhando sinistramente para uma bola de cristal colocada a uma imaginável curta distância.

            É importante pensar no romance da mesma maneira hoje. É uma marca da extraordinária influência do autor que, à medida que o 1984 histórico se aproximava, a data no calendário fosse discutida em todo o mundo quase com apreensão, como se fosse uma espécie de milênio. Mas isso agora é passado e alguns podem se perguntar se o prazo de validade do romance já se esgotou. Por quanto tempo pode uma história sobre um futuro que passou continuar a alarmar seus leitores?

            Há aspectos do romance que certamente incitam o crítico moderno a ser condescendente. Não apenas a suposta advertência contida no livro estava completamente equivocada no seu intervalo de tempo (não houve, até aqui, uma terceira guerra mundial ou uma revolução ocidental e os sistemas totalitaristas são hoje menos, e não mais, comuns do que quarenta anos atrás), mas as fraquezas literárias do romance podem ser vistas com mais clareza agora. Se 1984 é um romance acessível, isso se deve em parte à lucidez da escrita de Orwell. Mas isso se deve também à falta de sutileza de sua caracterização e a uma trama muito simples.

Esta última pode ser brevemente resumida. O romance se passa no ano de 1984 em Londres (“Pista de pouso número 1”), na oceânia, uma superpotência controlada pelo restritivo “Partido” e comandada por seu líder, o grande irmão. Dentro desse estado não existe lei e há apenas uma regra: a obediência absoluta em ação e pensamento. A sociedade da oceânia é repartida hierarquicamente entre o núcleo do partido, o mais privilegiado, um partido externo subserviente, e uma massa indistinta de “proletas”. O herói, Winston Smith, é um membro do partido externo que trabalha no ministério da verdade (isto é, da mentira) como falsificador de registros. 

   Apesar da pressão extraordinária para se conformar ao sistema, Winston secretamente reage contra ele. É abordado por outra oficial secundária, Julia, que reconhece nele um espírito afim. Encorajados pelo amor, eles pedem a um burocrata de alto escalão do núcleo do partido que os coloque em contato com uma força de oposição chamada de confraria, supostamente liderada pelo arqui-inimigo do grande irmão, à maneira de Trotski, Emmanuel Goldstein. O estímulo que recebem de O’Brien, porém, revela-se uma manobra traiçoeira. Eles são presos e separados. Ambos sucumbem a interrogatórios e traem um ao outro. Libertado antes de sua liquidação final, Winston descobre que aprendeu a amar o Grande Irmão.

Como entretenimento, o romance funciona bem, em certo nível. Mas tem limitações enquanto arte. Falta desenvolvimento à narrativa, o diálogo é por vezes fraco e maioria das pessoas é bidimensional, existindo apenas para explicar uma opinião política ou para atingir de raspão um tipo existente no mundo real. Entre as figuras secundárias no romance, uma mulher que canta enquanto estende roupas nos alegra e somos assombrados pela imagem lúgubre da mãe há muito desaparecida de Winston. Mas os conhecidos do herói do partido externo – o estupidamente animado Parsons, ou o fanático Syme – são meras caricaturas de ativistas políticos; enquanto a maior parte dos proletas, com seus agás não aspirados e clichês de cockneys atrapalhados, parece saída de um exemplar da revista Punch[1] anterior à guerra. O Sr. Charrington, o antiquário que aluga um quarto para ninho de amor de Winston, e que se revela um policial do pensamento disfarçado, é extraído de uma centena de romances de suspense baratos.

            Dos três personagens principais, apenas o sinistro O’Brien é uma construção intelectual: não chega a ser um ser-humano de carne e osso, mas a imagem sombria e definitiva do totalitarismo. Winston e Julia são mais substanciais. Aspectos de Winston são encontrados nos romances anteriores de Orwell. Ele é um solitário e um perdedor, um membro sem expectativas da baixa classe-média alta, cheio de uma raiva impotente contra aqueles que controlam sua vida. Ficamos deprimidos com a situação difícil de Winston e, quando ele é elevado pelo amor e pelo compromisso político, torcemos pelo seu bem-estar. No entanto, ele nunca supera a sua própria autocomiseração, e é difícil sentirmos a queda desse sujeito pouco atraente como uma tragédia.

Julia é uma criação mais agradável e simpática. Talvez ela contenha algo da primeira esposa de Orwell, Eileen, que morreu em 1945. Julia certamente tem uma solidez e um toque de humor que faltam ao resto. O maior alívio é descobrir, quando estamos a ponto de sermos sufocados pelo atoleiro de desalento da oceânia, que a política é absolutamente entediante para Júlia:

“outra coisa em que não estou interessada é na próxima geração, meu querido. Só estou interessada em nós.”
“Você só é rebelde da cintura para baixo”, disse ele.
Ela achou aquela frase brilhantemente inteligente e envolveu-o nos braços, delicada.

No entanto, Julia contém uma contradição. Do mesmo modo que é a personagem mais cativante do livro, ela também é a menos apropriada. Ao contrário do moroso Winston, ela é um espírito livre:

Para ela, a vida era uma coisa muito simples. Você fica querendo se divertir e “eles”, ou seja, o partido, faz de tudo para evitar que você se divirta. Você faz de tudo para infringir as regras.

Ficamos gratos por Julia existir. Mas somos levados a imaginar como esse ideal fantasioso de um garoto de escola particular, um ideal de feminilidade descomplicada, saudável, solar, poderia de algum modo sobreviver à propaganda enlouquecedora do partido. Ou ainda, se ela conseguia sobreviver, por que não outros? Winston (“o último homem da Europa”) até faz sentido como uma relíquia da antiga era, mas Julia parece ser a prova de que os métodos da nova era não funcionam. No entanto, um tema do livro é que esses métodos são inevitavelmente eficazes. Nos próprios termos do romance, Julia parece um anacronismo: seu caso de amor clandestino pertence a um país sob ocupação, o reino de Odete, e não a um país totalmente controlado.

Julia (com toda sua inconsistência) inspira vida ao romance; mas a sua presença mal e mal sustentaria um conto. Se não houvesse nada no romance além dos personagens e da narrativa, ele dificilmente seria lido hoje, exceto com uma curiosidade. Há, de fato, muito mais. O que faz do romance uma obra-prima da escrita política – o equivalente moderno, como corretamente apontou Bernard Crick, do Leviatã de Thomas Hobbes – é a textura extraordinária do pano de fundo. Disfarçado de ficção de horror cômica, 1984 é na verdade um ensaio de não ficção sobre o poder maligno. Ele funciona para nós, analisando e atacando o sistema político, da mesma maneira que o livro herético de Emmanuel Goldstein funciona para Winston:

Em certo sentido (o livro) não lhe dizia nada de novo, o que era parte do fascínio. Dizia o que ele teria dito, se tivesse a capacidade de organizar seus pensamentos dispersos. Era o produto de uma mente semelhante à sua, porém muitíssimo mais poderosa, mais sistemática, menos amedrontada. Os melhores livros, compreendeu, são aqueles que lhe dizem o que você já sabe.

Tal como em outras passagens de Orwell, o falso e conivente amadorismo do estilo do autor nos tranquiliza com o entendimento de que ele não apenas está certo, mas também que está dizendo o que sempre pensamos mas nunca fomos capazes de formular em palavras.

É difícil reconhecer 1984 como sátira. Alguns o enxergaram como um ataque ao stalinismo ou ao totalitarismo em geral, ou as tendências diretivas (na época do governo trabalhista) do socialismo de estado britânico. Outros o interpretaram como uma investida contra as pretensões e o iliberalismo dos intelectuais de esquerda ocidentais. Outros, ainda, explicaram-no como uma febril alucinação advinda da tuberculose, um libelo contra a escola preparatória ou (o que deve ser a mesma coisa) um delírio sadomasoquista. O romance provavelmente contém elementos disso tudo. No entanto, é mais que apenas um ataque satírico, e muito mais que o produto de uma imaginação febril. Apesar de fazer uma espécie de advertência, não é uma profecia (o que Orwell sabia, tanto quanto qualquer um, ser impossível e sem sentido). Ele não está também muito preocupado com eventos contemporâneos. É um livro sobre o presente contínuo: uma atualização da condição humana. O que mais importa é que ele nos lembra de muitas coisas nas quais normalmente evitamos pensar.

O livro choca onde é mais certeiro. Ficamos indiferentes às descrições embaraçosas dos encontros de Winston com os proletas - o que parece dizer mais sobre as próprias dificuldades de classe do autor do que sobre o apartheid social num mundo real ou ameaçado. Mas a descrição de um sistema baseado no desvio ideológico e na manipulação psicológica imediatamente nos afeta. A malversação da razão, à maneira de sonho, toca nosso nervo mais sensível. Não é nenhum acidente, na verdade, que, das muitas palavras e conceitos de 1984 que se encontram agora em uso comum por pessoas que nunca leram o livro, a maior parte se relaciona ao poder do estado de distorcer a realidade. No âmago da percepção do romancista está o duplipensar, definido como “o poder de sustentar duas crenças contraditórias na mente simultaneamente, aceitando as duas”. Como muitos aforismos de Orwell, esse parece absurdo a primeira vista e depois se torna um aspecto da vida política cotidiana.

Em O zero e infinito (Darkness at noon), de Arthur Koestler, um romance anterior que também explorou os limites teóricos do totalitarismo, o autor mostrava a aniquilação moral produzida por uma ideologia na qual ao fim era permitido justificar quaisquer meios. A inovação de Orwell foi abolir o fim. Enquanto outras ideologias se justificaram em termos de um objetivo futuro, o socing, a doutrina do partido da oceânia, não tem uma meta. Como O’Brien explica a Winston, “só nos interessa o poder em si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida longa, nem felicidade: só o poder pelo poder, poder puro”. Mas poder para quê? A resposta de O’Brien nos diz o que já sabemos sobre a opressão em toda a parte: “O objetivo da perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do poder é o poder”. A oceânia é uma sociedade estática movida por um equilíbrio do sofrimento. Diz O’Brien: “Se você quer formar uma imagem do futuro, imagine uma bota pisoteando um rosto humano – para sempre”.

1984 toma muito emprestado de A revolução dos gerentes, de James Burnham, cuja imagem de um mundo dividido em três grandes unidades, cada uma governada por uma elite autoeleita, é refletida na Teoria e prática do coletivismo oligárquico, de Goldstein, e na divisão do mundo nas três superpotências de Oceânia, Eurásia e Lestásia, perpetuamente em guerra entre si. Mas também há muito, indiretamente, de Sigmund Freud. A provação da sociedade de Oceânia, na qual tudo é feito coletivamente e na qual, no entanto, todos permanecem sós, é a negação do erótico. É isso que conflagra os sentimentos dominantes de “medo, ódio, adução e triunfo orgiástico”. A histeria sexual é deliberadamente usada para fermentar uma aversão sádica aos inimigos imaginados e para estimular um amor masoquista e despersonalizado em relação ao Grande Irmão.

Ninguém, nem o cético Winston, está imune. A emoção de massa, nos lembra repetidamente o autor, é quase irresistível. O conceito dos “Dois minutos de ódio” é uma das invenções mais famosas de 1984. O autor mostra seu herói no meio dessa obsessão organizada, incapaz de se impedir de participar. Winston consegue transformar o “Um êxtase horrendo de medo e sentimento de vingança” que “parecia circular pela platéia inteira como uma corrente elétrica” em ódio direcionado à garota sentada atrás dele (que mais tarde descobrimos ser Julia). “alucinações vívidas, belas, passavam-lhe pela mente. Haveria de golpeá-la até a morte com um cassetete de borracha (...) Haveria de violentá-la e no momento do clímax cortaria sua garganta.” Por quê? Porque “era jovem e bela e assexuada, porque queria ir para a cama com ela e nunca o faria”. Tal ódio particular, esclarece Orwell, é o propósito do puritanismo de Oceânia. A felicidade sexual é a maior ameaça ao sistema e o preceito de Julia (“O que você faz ou diz não importa: o importante são os sentimentos”) é muito mais perigoso do que as dúvidas intelectuais de Winston. “Aboliremos o orgasmo”, diz O’Brien, com sua habitual aptidão de ir diretamente ao cerne das coisas. “Nossos neurologistas já estão trabalhando nisso.”

O equilíbrio psíquico entre a angústia privada e aceitação da crueldade oficial em 1984 não antecipou o futuro tanto quanto ajudou a dar forma ao modo como outros – incluindo os sobreviventes – iriam descrever o totalitarismo. Obras de Alexander Soljenítsin (Um dia na vida de Ivan Denisovich e O primeiro círculo, por exemplo) exibem claramente a marca do conceito de Orwell de um mal estável, sem finalidade, dentro do qual vítimas e perseguidores estão trancados mutuamente. É o relato da plasticidade da razão de 1984, porém, que teve impacto mais intenso. O horror completo do livro começa quando fica evidente que todos na Oceânia, mesmo os membros do cínico porém fanático núcleo do partido, estão sendo irracionais. Orwell sem dúvida estava pensando na tentativa de Stalin de fazer as leis da genética concordarem com o marxismo-leninismo, quando apresentou o Grande Irmão como o mestre do Universo:

“Que são as estrelas?”, disse O’Brien com indiferença. “pontos de fogo a alguns quilômetros de nós. Poderíamos tocá-las, se quiséssemos, ou apagá-las. A terra é o centro do universo. O sol e as estrelas giram em torno dela. (...) Para certos fins, naturalmente, isso não é exato. Quando navegamos no oceano, ou quando prevemos um eclipse, muitas vezes achamos mais conveniente supor que a terra gira em torno do sol e que as estrelas estão a milhões de quilômetros de distância. Mas e daí? As estrelas podem estar próximas ou distantes, segundo as nossas necessidades. Você acha que nossos matemáticos não são capazes de fazer isso? Já se esqueceu do duplipensamento?”

            Isso é loucura, evidentemente. Mas a quem cabe determinar o que é loucura e o que é sanidade numa sociedade em que todos, incluindo os que controlam o pensamento, aprendem a acreditar que dois e dois podem ser cinco? Orwell nos lembra o quanto nossa aceitação do conhecimento objetivo é volúvel, e quão incerto é nosso domínio dom passado.

Primo Levi – que sobreviveu a Auschwwitz para tornar-se o melhor escritor sobre o holocausto – descreveu em os afogados e os sobreviventes (The drowned and the saved) como Hitler contaminou a moral de seus subordinados ao negar-lhes o acesso à verdade. Levi conclui que “a história completa do breve ‘Reich milenar’ pode ser relida como uma guerra contra a memória, uma falsificação da realidade...”. a guerra incessante da oceânia contra a memória – na qual todo fragmento de prova que entre em conflito com a mais recente linha oficial é sistematicamente destruído e uma pista falsa é colocada em seu lugar – é uma das invenções mais engenhosas a aterrorizantes do romance.

Outra invenção é o assassinato da linguagem. A história feita com isenção é uma artéria essencial da liberdade, talvez a mais essencial, e 1984 pode ser visto como um diploma de erudição histórica. Uma segunda artéria é a pureza linguística. A linguagem é testemunho: ela contém camadas geológicas de eventos do passado e valores fora de moda. Orwell estava fazendo uma observação relevante tanto para o comportamento de burocratas insignificantes como para ditadores quando notou a avidez com que aqueles que evitam a verdade afastam-se assustados de palavras conhecidas e a substituem com suas próprias. Na oceânia, o partido criou uma linguagem sanitizada, a Novafala, para assumir o lugar do inglês tradicional e suas associações desconfortáveis. Esse esperanto ideológico é composto por palavras curtas e apocopadas “que provocam um mínimo de eco na mente daquele que fala o idioma”, e que por fim torna impossível a construção de pensamentos heréticos. Orwell dá exemplos da Novafala no mundo real: Nazi, Gestapo, Comintern, Agitprop. Há muitos outros exemplos. Por conseguinte, Levi nota como, na Alemanha de Hitler, expressões como “solução final”, “tratamento especial”, “unidades de emprego imediato” disfarçavam uma realidade apavorante. Poderíamos acrescentar nossos próprios exemplos da era do terror nuclear: overkill,[2] o verbo “to nuke”,[3] o semijocoso guerra nas estrelas.

Duplipensamento, Novafala, criminterrupção (a faculdade de “capacidade de estacar, como por instinto, no limiar de todo pensamento perigoso (...) Em suma, criminterrupção significa burrice protetora”) são firmes e eternos em qualquer estado autoritário ou totalitarista, o que ajuda a explicar porque o romance, distribuído secretamente, tem sido apreciado com tanto entusiasmo no Leste Europeu. Ao mesmo tempo, os termos também se referem a aspectos de qualquer birô, corporação ou partido político numa democracia, para não dizer de qualquer profissão dominada pelo uso de jargões ou disciplinas acadêmicas de orientação ortodoxa. Eles são previsões apenas no sentido de que qualquer polêmica prevê uma consequência nefasta se não prestarmos atenção à sua injunção.

Todavia, 1984, com sua data muito específica, tem sim um ponto de referência histórico. Não é por acaso que Orwell chama a ideologia do partido de Socing, e a apresenta como uma perversão do socialismo inglês. Alguns enxergaram isso como uma acusação ao governo trabalhista de Clement Attle. De fato, Orwell, que continuou a se ver como um socialista democrata e como um defensor do partido trabalhista, não estava muito interessado na política veloz de meados da década de 1940, de modo que passou grande parte do período de gestação e escrita do romance (interrompido por uma grande temporada no hospital com tuberculose) longe da fofoca política de Londres, na casa de campo na ilha de jura.

No entanto, o romance pode ser visto – como seu predecessor, A revolução dos bichos – como uma contribuição ao debate que se travava dentro dos círculos socialistas. Tal como A revolução dos bichos, o livro não antecipa controvérsias futuras mas retorna às do pré-guerra. A experiência política mais importante da vida de Orwell (descrita em Homenagem à Catalunha) foi a guerra civil espanhola, na qual o autor foi ferido enquanto lutava pela milícia revolucionária POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista). Orwell retornou da Espanha amargamente hostil em relação ao comunismo comandado por Moscou, cuja influência continuava difusa na intelligentsia progressista britânica. Ele ficou menos surpreso do que muitos membros da esquerda com o pacto nazi-soviético de agosto de 1939 (que teve sequência na invasão alemã na Rússia em 1941, que levou Stalin à guerra ao lado dos aliados, e depois no esfriamento das relações entre aliados e soviéticos, que fez novamente da Rússia um inimigo em potencial do ocidente praticamente tão logo a guerra terminou). O cinismo e impermanência das grandes alianças de poder é uma parte essencial de 1984.

A Oceânia não é, em nenhum sentido, uma sociedade socialista. Pelo contrário. Um exemplo fundamental do duplipensamento é que “o partido rejeita e avilta cada um dos princípios originalmente defendidos pelo movimento socialista, e trata de fazê-lo em nome mesmo do socialismo”, Logo, a Oceânia não pode ser entendida como um argumento a favor do fracasso do socialismo. A questão não é a realização das promessas socialistas, mas sua rejeição e distorção. Alguns podem ouvir ecos de O caminho da servidão, de Friedrich Von Hayek, no relato de Goldstein de como “em cada variante do socialismo surgida a partir de cerca de 1900, o objetivo de instalar a liberdade e a igualdade foi sendo abandonado cada vez mais abertamente”. No entanto, Orwell não é menos crítico em relação aos antissocialistas. Nos anos de 1940, diz Goldstein, “todas as principais correntes de pensamento político eram autoritárias. (...) Todas as novas teorias políticas, seja lá como se autodenominassem, reeditavam as ideias de hierarquia e regimentação”. Se pista de pouso número 1 é uma versão da Londres do período de austeridade (como a interessante adaptação para o cinema de Michael Radford sugere), então dificilmente há a intenção de se isolar o socialismo trabalhista para uma crítica particular. De fato, Goldstein também deixa claro que os sistemas das outras superpotências, Eurásia e Lestásia, são praticamente idênticos.

O ataque de Orwell não é direcionado ao socialismo, mas a pessoas crédulas ou egoístas que se dizem socialistas, e a algumas de suas ilusões. Uma ilusão – que ainda é parte da retórica da plataforma – é a de que, quaisquer que sejam os obstáculos e contratempos que apareçam no caminho, a classe trabalhadora irá inevitavelmente triunfar. Orwell inverte essa ideia. Na Oceânia, a liberdade relativa das pessoas da classe trabalhadora não passa de um sintoma do desprezo a elas direcionado. “Nada a temer do lado dos proletários”, declara Goldstein. Pode-se conceder a eles liberdade intelectual, acrescenta (com um chute na virilha das pretensões liberais e socialistas), “porque carecem de intelecto”.

No entanto, os proletas ocupam um lugar importante no romance. Se há esperança, reflete Winston, ela lhes pertence. Há esperança? A mensagem na superfície do romance parece ser que não há nenhuma. A oceânia é uma sociedade além do totalitarismo. Mesmo em Auschwitz ou no Gulag, uma comunidade qualquer poderia continuar existindo e o heroísmo era possível. Mas na Oceânia, o heroísmo é vazio porque não há ninguém para salvar. A esperança pisca brevemente e então se extingue: a tentativa de Winston de preservar sua identidade é um mero clamor ao vento. A resistência física ao terrorismo do partido significa causar o próprio fracasso. Orwell sublinha o argumento de Koestler em O zero e o infinito de que lutar contra a opressão com os métodos do opressor é uma capitulação moral. Orwell usa O’Brien, enquanto este aparentemente testa a decisão de Winston de atuar como co-conspirador, para aprisionar Winston num compromisso monstruoso;

“Se, por exemplo, jogar ácido sulfúrico no rosto de uma criança for uma ação que de alguma forma atenda a nossos interesses, será capaz de executá-la?”
“Sim.”

Mais tarde, O’Brien, o interrogador, pergunta a Winston:

“E você se considera moralmente superior a nós, com nossas mentiras e nossa crueldade?”

Tudo de que ele precisa é colocar uma fita da conversa anterior para validar seu argumento.
Mesmo com tudo isso, porém, 1984 está longe de ser um livro desesperador. Como um quebra-cabeça intelectual, o romance é quase impermeável: todas as respostas ou objeções fáceis são espertamente antecipadas e bloqueadas. Mas o mundo grotesco que retrata é imaginário. Não há razão para interpretar a escuridão da visão literária de Orwell como uma negação de qualquer alternativa no mundo real. O romance, de fato, pode ser visto como uma descrição das forças que ameaçam a liberdade e da necessidade de se resistir a elas. A maior parte dessas forças pode ser resumida numa simples palavra: mentiras. O autor oferece uma escolha política – entre a proteção da verdade e um resvalo na falsidade oportunista para o benefício dos governantes e exploração dos governados, nos quais reside o sentimento genuíno e a esperança última.

O romance, portanto, é sobretudo subversivo, um protesto contra as artimanhas dos governos. É uma saraivada contra o autoritarismo sobre toda a individualidade, uma polêmica contra toda ortodoxia, uma rajada anarquista contra todo conformista incondicional. “É intolerável para nós”, diz o funesto O’Brien, “a existência, em qualquer parte do mundo, de um pensamento incorreto, por mais secreto e impotente que seja.” 1984 é um grande romance e um grande tratado por causa da clareza de seu chamado, e irá resistir porque sua mensagem é permanente: os pensamentos incorretos são a essência da liberdade.



[1] Revista Britânica de humor publicada de 1841 a 2002. (N. T.)
[2] Uso da força excessiva para se atingir um objetivo. O termo tornou-se comum durante o período da guerra fria, referindo-se à corrida armamentista nuclear entre os Estados unidos e a União Soviética. Ambos construíram arsenais capazes de destruir os dois países diversas vezes. (N.T.)
[3] Verbo que tem origem no termo “nuclear”. Significa “lançar bomba atômica”. (N.T.)

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