Erich Fromm |
1984, de George Orwell,
é a expressão de um sentimento, e é uma advertência. O sentimento que expressa
é de quase desespero acerca do futuro do homem, e a advertência é que, a menos
que o curso da história se altere, os homens do mundo inteiro perderão suas
qualidades mais humanas. Tornar-se-ão autômatos sem alma, e nem sequer terão
consciência disso.
O sentimento de desesperança no futuro do homem contrasta
marcadamente com uma das características mais fundamentais do pensamento ocidental:
a fé no progresso humano e na capacidade do homem de criar um mundo de justiça
e paz. Essa esperança tem suas raízes tanto no pensamento grego como no romano,
assim como no conceito messiânico dos profetas do velho testamento. A filosofia
da história presente no velho testamento parte do princípio de que o homem
cresce e se revela no curso da história, tornando-se finalmente o que é em
potencial. Ela pressupõe que o homem desenvolve seu potencial para a razão e
para o amor de forma plena, tornando-se assim equipado para compreender o
mundo, sendo uno com a natureza e seus semelhantes e preservando ao mesmo tempo
sua individualidade e sua integridade. A paz universal e a justiça são as
finalidades do homem, e os profetas tem fé em que, apesar de todos os erros e
pecados, esse “fim dos tempos” chegará, simbolizado pela figura do Messias.
Essa noção profética
era um conceito histórico, um estado de perfeição a ser alcançado pelo homem no
tempo histórico. A cristandade o transformou num conceito trans-histórico,
puramente espiritual, embora não tenha abandonado a ideia da conexão entre as
normas morais e a política. Os pensadores cristãos do fim da idade média
enfatizaram que, apesar de o “Reino de Deus” não pertencer ao tempo histórico,
a ordem social deveria compreender os princípios da cristandade e a eles
corresponder. As seitas cristãs anteriores e posteriores à reforma enfatizaram
essas demandas de maneiras mais urgentes, mais ativas e revolucionárias. Com o
colapso do mundo medieval, a percepção da força e da esperança do homem não
apenas na perfeição individual, mas também na social, ganhou novo alento e
tomou novos rumos.
Um
dos mais importantes foi a nova forma de escrever que se desenvolveu durante o
renascimento, cuja primeira manifestação foi a Utopia (literalmente: “não-lugar”) de Thomas More, denominação que
passou a ser aplicada a outros trabalhos similares em geral. A Utopia de Thomas More combinou uma
crítica penetrante da própria sociedade do autor, de sua irracionalidade e de
sua injustiça, com o retrato de uma sociedade que, apesar de não ter alcançado
talvez a perfeição, resolvera a maior parte dos problemas humanos que pareciam
sem solução para seus contemporâneos. O que caracteriza a Utopia de Thomas More e de todas as outras é que elas não discutem
princípios em termos gerais, mas descrevem de forma imaginativa os detalhes
concretos de uma sociedade que corresponde aos desejos mais profundos do homem.
Contrastando com o pensamento profético, essas sociedades perfeitas não estão
localizadas no “fim dos tempos”, mas já existem – elas são distantes
geograficamente, e não no tempo.
À
Utopia de Thomas More sucederam-se
duas outras, A cidade do sol, do frei
italiano Campanella, e Cristianópolis, do
humanista alemão Andreae, sendo esta última a mais moderna das três. Existem
diferenças de ponto de vistas e de originalidade nessa trilogia de utopias,
ainda que as diferenças sejam de pouca importância se comparadas com o que elas
têm em comum. Utopias foram escritas desde então por séculos a fio, até o
inicio do século xx. A mais recente e
mais influente delas foi Daqui a cem
anos: Revendo o futuro (Looking Backward), publicada em 1888. À parte A cabana do pai Tomás e Bem Hur, foi sem
dúvida o livro mais popular da virada do século, com tiragem de muitos milhões
de cópias nos Estados unidos e traduzido para mais de vinte línguas.[1] A
Utopia de Bellamy é parte da grande tradição americana tal como expressa pelo
pensamento Whitman, Thoreau e Emerson. É a versão americana das ideias que, na
época, tiveram sua expressão mais vigorosa no movimento socialista europeu.
A
esperança na perfeição individual e social do homem, claramente colocada em
termos filosóficos e antropológicos nos escritos de filósofos iluministas do
século XVIII
e
nas obras dos pensadores socialistas do século XIX, permaneceu
inalterada até o período pós-primeira guerra mundial. Essa guerra, na qual
milhões morreram pelas ambições territoriais das potências europeias, ainda que
sob a ilusão de estarem lutando pela paz e pela democracia, foi o início do
desenvolvimento que levou, num tempo relativamente curto, à destruição da
tradição ocidental de esperança, que contava dois mil anos de idade, e a sua
transformação num sentimento de desespero. A insensibilidade moral da primeira
guerra mundial foi apenas o começo. Outros eventos se seguiram: a traição das
esperanças socialistas pelo capitalismo estatal de Stalin; a grave crise
econômica do fim da década de 1920; a vitória da barbárie em um dos mais antigos
centros culturais do mundo – a Alemanha, a insanidade do terror stalinista
durante a década de 1930; a segunda guerra mundial, na qual todas as nações em
conflito perderam algumas das considerações morais que ainda existiam na
primeira guerra mundial; a destruição ilimitada de populações civis, iniciada
por Hitler e que teve sequência na destruição ainda mais total de cidades como
Hamburgo, Dresden e Tóquio, e, por fim, na utilização de bombas atômicas contra
o Japão. Desde então a raça humana foi defrontada com uma ameaça ainda maior: a
destruição de nossa civilização, senão de toda humanidade, por armas
termonucleares tais como existem atualmente e tal como são desenvolvidas em
proporções crescentes e assustadoras.
A
maioria das pessoas, no entanto, não está a par dessa ameaça e de sua própria
desesperança. Alguns acreditam que, só porque os armamentos modernos são tão
destrutivos, a guerra é impossível; outros declaram que, mesmo 60 ou 70 milhões
de americanos fossem assassinados no primeiro ou no segundo dia de uma guerra
nuclear, não haveria motivos para crer que a vida não seguiria como antes,
depois que o primeiro choque fosse superado. O livro de Orwell é importante
precisamente porque exprimiu o novo sentimento de desesperança que impregna nossa
era antes que este se manifestasse e dominasse a consciência das pessoas.
Orwell
não está só nesse esforço. Dois outros escritores, o russo Zamyatin em seu
livro Nós, e Aldous Huxley em seu Admirável mundo novo, exprimiram o
sentimento do presente e uma advertência para o futuro de maneiras muito
similares à de Orwell. Essa trilogia do que pode ser chamado de “utopias
negativas” de meados do século XX é o contraponto
à trilogia das utopias positivas mencionadas anteriormente, escritas no século XVI
e XVII.[2] As
utopias negativas expressam o sentimento de impotência e de desesperança do
homem moderno assim como as utopias antigas expressavam o sentimento de
autoconfiança e esperança do homem pós-medieval. Não poderia haver nada mais
paradoxal em termos históricos do que essa mudança: o homem, no início da era
industrial, quando na realidade não possuía os recursos para um mundo no qual a
mesa estaria posta para todos os que desejassem comer, quando vivia num mundo
no qual existiam razões econômicas para a escravidão, para a guerra e para a
exploração, e no qual o homem apenas intuía as possibilidades de sua nova
ciência e de sua aplicação técnica e à produção – ainda assim, o homem no início do progresso moderno era repleto
de esperança. Quatrocentos anos mais tarde, quando todas essas esperanças são
realizáveis, quando o homem pode produzir o suficiente para todos, quando a
guerra se tornou desnecessária porque o desenvolvimento técnico pode dar a
qualquer país mais riquezas do que as conquistas territoriais, quando este
planeta está em processo de se tornar tão uno quanto era um continente
quatrocentos anos atrás, no momento exato em que o homem está prestes a
concretizar sua esperança, ele começa a perdê-la. É questão essencial para as
três utopias negativas não apenas descrever o futuro rumo ao qual no movemos
como também explicar o paradoxo histórico.
As
três utopias negativas diferenciam-se entre si em detalhamentos e ênfase. Nós, escrito na década de 1920, tem mais
características em comum com 1984 que
Admirável mundo novo. Nós e 1984 descrevem a sociedade completamente
burocratizada na qual o homem é um número, desprovido de toda noção de
individualidade. Isso é ocasionado por uma mistura de terror ilimitado (no
livro de Zamyatin uma cirurgia cerebral é adicionada, de forma que o homem se
transforma até fisicamente) e manipulação ideológica. Na obra de Huxley, a
principal ferramenta para transformar o homem num autômato é a utilização de
sugestões hipnóticas em massa, o que permite prescindir do terror. Pode-se
dizer que os exemplos de Zamyatin e Orwell lembram mais as ditaduras nazistas e
stalinistas, enquanto o Admirável mundo
novo de Huxley é um retrato do progresso do mundo ocidental industrial,
posto que ele acompanha a tendência do presente sem mudar sua essência.
Apesar
dessa diferença, há uma questão básica em comum entre as utopias negativas. A
questão é filosófica, antropológica e psicológica, e talvez religiosa. É a
seguinte: pode a natureza humana ser modificada de tal maneira que o homem
esquecesse seu desejo de liberdade, dignidade, integridade, amor – ou seja,
pode o homem esquecer que é humano? Ou tem a natureza humana uma dinâmica que
reagiria à violação dessas necessidades humanas básicas com a tentativa de
transformar uma sociedade inumana numa sociedade humana? Deve-se notar que os
três autores não tomam partido do relativismo psicológico hoje comum a tantos
cientistas sociais; eles não partem da ideia de que não existe algo como
“natureza humana”; de que as qualidades essenciais ao homem não existem; e de
que o homem, ao nascer, é apenas uma página em branco na qual uma sociedade
qualquer escreve seu texto. Eles pressupõem que o homem se empenha intensamente
na luta pelo amor, pela justiça, pela verdade, pela solidariedade, e, nesse
aspecto, são muito diferentes dos relativistas. De fato, eles afirmam a luta e
a intensidade dessas lutas humanas ao descrever os próprios meios que apresentam
como necessários à sua destruição. Em Nós,
é necessário realizar uma cirurgia cerebral similar à lobotomia para eliminar
as demandas humanas da natureza humana. No
Admirável mundo novo, a seleção biológica artificial e as drogas são
necessárias, e em 1984 é a utilização
completamente sem limites de tortura e lavagem cerebral. Nenhum dos três
autores pode ser acusado de pensar que a destruição da humanidade dentro do
homem é fácil. Todavia, os três chegam à mesma conclusão: que essa destruição é
possível, com os meios e técnicas que atualmente são de conhecimento comum.
Apesar
das muitas similaridades com o livro de Zamyatin, o 1984 de Orwell dá sua própria contribuição original à questão “como
pode a natureza humana ser modificada?”. Tenciono falar agora sobre alguns
conceitos mais especificamente orwellianos.
A
contribuição de Orwell mais imediatamente relevante para o ano de 1961 e para
cinco a quinze anos seguintes é a conexão que ele faz entre a sociedade
ditatorial de 1984 e a guerra atômica. Guerras atômicas surgiram pela primeira
vez na década de 1940; uma guerra atômica em larga escala eclodiu
aproximadamente dez anos depois, e centenas de bombas foram arremessadas nos
centros industriais da Rússia europeia, da Europa ocidental e da América do
Norte. Depois dessa guerra, os governos de todos os países convenceram-se de
que a continuidade da guerra significaria o fim da sociedade organizada e,
consequentemente, de seu próprio poder. Por essas razões, mais nenhuma bomba
foi arremessada e os três grandes blocos de poder existentes “simplesmente
continuaram a produzir bombas atômicas e a armazená-las para o momento da
oportunidade decisiva que, acreditavam, viria mais cedo ou mais tarde”. Resta
ao partido dominante descobrir como “matar centenas de milhões de pessoas em
poucos segundos sem aviso prévio”. Orwell escreveu 1984 antes da descoberta das
armas termonucleares, e é apenas uma nota de rodapé da história afirmar que a
meta mencionada já havia sido alcançada nos anos 1950. A bomba atômica lançada
sobre as cidades japonesas parece pequena e ineficaz quando comparada à chacina
em massa que pode ser obtida com a utilização de armas termonucleares capazes
de varrer do mapa noventa ou cem por cento da população de um país em minutos.
A
importância do conceito de Orwell sobre a guerra reside em diversas observações
muito perspicazes.
Em
primeiro lugar, ele demonstra o significado econômico da produção contínua de
armamentos, sem a qual o sistema econômico não pode funcionar. Além disso,
fornece um retrato impressionante de como deve se desenvolver uma sociedade que
se prepara constantemente para a guerra, que o tempo todo tem medo de ser
atacada e se prepara para descobrir os meios de aniquilar completamente seus
oponentes. O retrato de Orwell é pertinente porque oferece um argumento
vigoroso contra a noção popular de que é possível salvar a liberdade e a
democracia dando continuidade à corrida armamentista e encontrando um
impedimento “estável”. Esse retrato reconfortante ignora o fato de que, com o
“progresso” técnico crescente (que cria armas inteiramente novas a cada cinco
anos aproximadamente, e que em breve permitirá o desenvolvimento de bombas de
cem ou mil megatons em lugar de dez), toda a sociedade será forçada a viver em
subterrâneos, mesmo que o poder destruidor de bombas termonucleares seja mais
profundo que as cavernas, que o militarismo se torne dominante (de fato, senão
pela lei), que o medo e o ódio de um possível agressor destruam as atitudes
básicas de uma sociedade democrática e humanista. Em outras palavras, a corrida
armamentista contínua, mesmo que não levasse à eclosão de uma guerra
termonuclear, levaria à destruição de todas as qualidades de nossa sociedade
que pudessem ser chamadas de “democráticas”, “livres” ou “pertencentes à
tradição americana”. Orwell demonstra a ilusão que é pressupor que a democracia
pode continuar existindo num mundo que se prepara para a guerra nuclear, e o
faz de maneira imaginativa e brilhante.
Outro
aspecto importante é a descrição que Orwell faz da natureza da verdade, que na
superfície é um retrato do tratamento que Stalin dispensa à verdade,
especialmente nos anos 1930. Mas todo aquele que enxergar na descrição de
Orwell apenas outra denúncia do stalinismo estará confundindo um elemento
essencial da análise de Orwell. Na verdade, ele fala sobre um progresso que
também está acontecendo nos países industriais do ocidente, apenas num ritmo
mais lento que na Rússia e na china. A questão básica levantada por Orwell é se
há algo que se possa denominar “verdade”. “A realidade” diz o partido
dominante, “não é externa. A realidade existe na mente humana e em nenhum outro
lugar (...) tudo o que o partido reconhece como verdade é a verdade”. Se isso é fato, ao controlar a mente dos homens o
partido controla a verdade. Num diálogo dramático entre o protagonista do
partido e o rebelde vencido, uma analogia digna do diálogo de Dostoiévski entre
o inquisidor e Jesus, os princípios básicos do partido são explicados. Ao
contrário do inquisidor, entretanto, os líderes do partido nem sequer fingem
que seu sistema tem o intuito de tornar o homem mais feliz, porque os homens,
sendo criaturas frágeis e covardes, querem escapar da liberdade e são incapazes
de encarar a verdade. Os líderes são conscientes do fato de que eles próprios
têm apenas uma meta, que é o poder. Para eles, “o poder não é um meio; é um
fim. E poder significa capacidade de infligir dor e sofrimento ilimitados a
outro ser humano”.[3]
Consequentemente, o poder, para eles, cria a realidade, cria a verdade. A
posição que Orwell atribui aqui à elite do poder pode ser vista como uma forma
extrema de idealismo filosófico, mas é mais relevante reconhecer que os
conceitos de verdade e realidades presentes em 1984 são uma forma extrema de pragmatismo na qual a verdade passa a
subordinar-se ao partido. Um escritor americano, Alan Harrington, que em Life in the Crystal Palace (A vida no
palácio de cristal) [4]
oferece um retrato penetrante e sutil da vida numa grande corporação americana,
cunhou uma excelente expressão para o conceito contemporâneo da verdade:
“verdade móvel”. Se trabalho para uma grande corporação que afirma que seu
produto é melhor que o dos concorrentes, questionar se essa afirmação é
justificada ou não no âmbito da realidade discernível torna-se irrelevante. O
que importa é que, enquanto sirvo a essa corporação em particular, tal
afirmação passa a ser a “minha” verdade e abro mão de questionar se ela é uma
verdade objetivamente válida. De fato, se mudo de emprego e me transfiro para a
corporação que era até agora “minha” concorrente, devo aceitar a nova verdade –
de que seu produto é melhor – e, subjetivamente falando, essa verdade será tão
verdadeira quanto a anterior. Um dos desenvolvimentos mais característicos e
destrutivos de nossa sociedade é o fato de que o homem, ao se tornar cada vez
mais um instrumento, transforma a realidade, progressivamente, em algo
relacionado a seus próprios interesses e funções. A verdade é provada pelo
consenso de milhões; ao slogan “como é possível que milhões estejam errados” é
adicionado “e como pode estar certa a minoria de um só”. Orwell demonstra muito
claramente que num sistema no qual o conceito de verdade como julgamento
objetivo acerca da realidade é abolido, todo aquele que construir uma minoria
de um só deve ser convencido de que é insano.
Descrevendo
o tipo de pensamento dominante em 1984, Orwell cunhou um termo que já se tornou
parte do vocabulário moderno: “duplipensamento”. “Duplipensamento significa a
capacidade de abrigar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias, e
acreditar em ambas (...) esse processo precisa ser consciente, ou não seria
conduzido com a necessária precisão, mas também precisa ser inconsciente, do
contrário traria consigo um sentimento de falsidade e, portanto, de culpa.” É
precisamente o aspecto inconsciente do duplipensamento que irá induzir muitos
leitores de 1984 a acreditar que o
método de duplipensamento é empregado pelos russos e pelos chineses, embora
seja algo totalmente estranho a eles. Isso, no entanto, é uma ilusão, como
alguns exemplos podem demonstrar. Nós, do ocidente, falamos em “mundo livre”, e
nele incluímos não apenas sistemas como o dos Estados Unidos e Inglaterra,
baseados em eleições livres e liberdade de expressão, como também ditaduras
sul-americanas (pelo menos as incluímos enquanto existiram) e várias formas de
ditadura, como as de Franco e Salazar, e as da África do Sul, Paquistão e
Etiópia. Quando falamos em mundo livre, referimo-nos a todos os estados que se
posicionam contra a Rússia e a China, e de forma alguma, como as palavras podem
dar a entender, a estados que tenham liberdade política. Outro exemplo
contemporâneo da sustentação e aceitação simultânea de duas crenças
contraditórias pode ser encontrado em nossa discussão sobre armamentos.
Gastamos parte considerável de nossa renda e energia na construção de armas
termonucleares, e fechamos nossa mente para o fato de que elas podem ser acionadas,
destruindo um terço ou metade de nossa população (e da população do inimigo).
Algumas podem ir ainda mais longe; de modo que Herman Kahn, um dos mais
influentes escritores da estratégia atômica hoje em dia, declara: “...em outras
palavras, a guerra é horrível, não há dúvida quanto a isso, mas também a paz é
horrível, e é próprio do tipo de cálculo que fazemos atualmente comparar o
horror da guerra ao horror da paz, e ver o quanto aquele é pior”.[5]
Kahn
presume que a guerra termonuclear possa significar a destruição de 60 milhões
de americanos, e ainda assim considera que, mesmo em tal caso, “o país se
recuperaria rápida e efetivamente” (ib., p. 74) e que “vidas normais e felizes
para a maioria dos sobreviventes e seus descendentes” (ib., p. 21) não seriam
eliminados pela tragédia da guerra termonuclear. Essa visão considera que: a)
nos preparamos para a guerra de modo a preservar a paz; b) caso a guerra ecloda
e os russos matem um terço de nossa população, e caso lhe façamos o mesmo (e
mais, claro, se pudermos), mesmo assim as pessoas viverão alegres depois; c)
não apenas a guerra, mas também a paz é horrível, e é necessário examinar o
quanto a guerra é mais horrível que a paz. Pessoas que aceitam esse tipo de
raciocínio são chamadas de “sóbrias”; aquelas que duvidam que a morte de 2 ou 6
milhões de pessoas deixaria a América essencialmente intata não são “sóbrias”,
aqueles que apontam para as consequências morais, políticas e psicológicas de
tal destruição são chamadas de “não realistas”.
Ainda
que este não seja o lugar para uma discussão extensa do problema do
desarmamento, esse exemplos deve ser oferecidos para que se chegue a um ponto
essencial para a compreensão do livro de Orwell, isto é, que o
“duplipensamento” já está conosco e não é meramente algo que acontecerá no
futuro, em ditaduras.
Outra
questão importante na discussão de Orwell está intimamente relacionada ao
“duplipensamento”, a saber, que em uma manipulação bem-sucedida da mente, a
pessoa não mais está dizendo o oposto do que pensa, mas pensa o oposto do que é
verdadeiro. Assim, por exemplo, se ela desiste completamente de sua
independência e de sua integridade, se passa a ver-se como algo pertencente ao
estado, ao partido ou à corporação, então dois e dois são cinco, ou “Escravidão
é liberdade”, e ela se sente livre porque não tem mais consciência da
discrepância entre verdade e falsidade. Isso se aplica especificamente às
ideologias. Assim como os inquisidores que torturavam seus prisioneiros
acreditavam agir em nome do amor cristão, o partido “rejeita e avilta cada um
dos princípios originalmente defendidos pelo movimento socialista, e trata de
fazê-lo em nome mesmo do socialismo”. Seu conteúdo é invertido para o oposto, e
ainda assim as pessoas acreditam que a ideologia significa o que diz. A esse
respeito, Orwell refere-se obviamente à falsificação do socialismo pelo
comunismo russo, mas deve-se acrescentar que o ocidente também é culpado de
falsificação semelhante. Apresentamos nossa sociedade como uma sociedade onde
se pratica a livre iniciativa, o individualismo e o idealismo, quando na
realidade tais palavras não passam de palavras. Somos uma sociedade
industrial-gerencial centralizada, de natureza essencialmente burocrática e
motivada por um materialismo apenas levemente mitigado por preocupações
verdadeiramente espirituais ou religiosas. Relacionado a isso está outro
exemplo de “duplipensamento”, ou seja: poucos escritores, ao discutirem a
estratégia atômica, tropeçam quando não mencionam o fato de que matar, do ponto
de vista cristão, é tão ou mais maléfico do que ser morto. O leitor encontrará
várias outras características de nossa sociedade ocidental contemporânea na
descrição de Orwell em 1984, contanto que consiga subjugar seu próprio
“duplipensamento”.
Não há dúvida de que
o retrato de Orwell é excessivamente desanimador, em especial se reconhecemos
que, como o próprio Orwell indica, não se trata apenas do retrato de um
inimigo, mas de toda a raça humana no final do século XX. É Possível reagir a
esse retrato de dois modos: tornando-se mais desesperançado e resignado, ou
sentindo que ainda há tempo e reagindo com maior clareza e mais coragem. Todas
as três utopias negativas dão a entender que é possível desumanizar o homem por
completo e ainda assim a vida continuar. Podemos duvidar da exatidão desse
pressuposto e pensar que, na eventualidade de que o cerne humano do homem fosse
destruído, também o futuro da humanidade estaria sendo destruído. Tais homens
seriam tão verdadeiramente inumanos e desprovidos de vitalidade que haveriam de
destruir-se uns aos outros, ou morreriam de puro tédio e ansiedade. Se o mundo
de 1984 vier a tornar-se a forma
dominante de vida neste planeta, isso quer dizer um mundo de loucos, e portanto
um mundo inviável (Orwell indica muito sutilmente ao apontar para o brilho
demente nos olhos do líder do partido). Estou certo de que nem Orwell, nem
Huxley, nem Zamyatin gostariam de asseverar que esse mundo de insanidade está
destinado a se realizar. Pelo contrário, é bastante óbvio que a intenção deles
é fazer soar um alarme, ao mostrar para onde estamos indo, caso não tenhamos
sucesso na promoção do renascimento do espírito de humanidade e dignidade que
está nas próprias raízes da cultura ocidental. Assim como os outros dois
autores, Orwell simplesmente sugere que a nova forma de industrialismo
gerencial, na qual o homem constrói máquinas que agem como homens e desenvolve
homens que agem como máquinas, conduz a uma era de desumanização e completa
alienação, na qual homens são transformados em coisas e se tornam apêndices do
processo de produção e consumo.[6] Os
três autores sugerem que esse perigo existe não apenas nas versões russa e
chinesa do comunismo, mas que é inerente ao modo moderno de produção e
organização e é relativamente independente das várias ideologias. Orwell, como
os autores das outras utopias negativas, não é um profeta do desastre. Ele
deseja nos alertar e nos acordar. Ainda tem esperança – mas ao contrário dos
escritores das utopias das fases iniciais da sociedade ocidental, a sua é uma
esperança desesperada. A esperança só pode concretizar-se, nos ensina 1984, se
percebemos o perigo que confronta os homens hoje, o perigo de uma sociedade de
autômatos que terão perdido todos os traços de individualidade, amor e
pensamento crítico, e que não serão capazes de percebê-lo em decorrência do
“duplipensamento”. Livros como o de Orwell são advertências poderosas, e seria
lamentável se o leitor, de modo autocomplacente, interpretasse 1984 como mais
uma descrição da barbárie stalinista, sem perceber que o livro também se refere
a nós.
[1] A edição mais
recente foi publicada pela New American Library of World Literature, Inc., Nova
York, 1960 (CD26).
[2] Deve-se acrescentar que O tacão de ferro, de Jack
London, que prediz o fascismo na América, foi a primeira das modernas utopias
negativas.
[3] Cf. esta
definição de poder em Erich Fromm, Escape
from Freedom. Nova York: Rinehart & Co., Inc., 1941. E também a definição
de Simone Weil de que o poder é a capacidade de transformar uma pessoa viva num
cadáver, ou seja, numa coisa.
[4] Alan
Harrington, Life in the Crystal Palace. Nova York: Alfred A. Knopf Inc., 1959;
Londres: Jonathan Cape, Ltd., 1960.
[6] Este problema é
analisado em detalhes em Eric Fromm, The Sane Society. Nova York: Rinehart
& Co., Inc., 1995.
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