O romance “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector é a obra que será analisada a seguir. A análise está dividida em duas partes: a primeira abrange os elementos que compõem a narrativa, subdividindo-se em: enredo, narrador, personagens, espaço, ambiente, tema, assunto e mensagem. A segunda parte traça um paralelo entre o texto de René Wellek “A Literatura e a psicologia” com o romance em questão, que começa quando o narrador chamado Rodrigo S. M., andando pela rua consegue captar o olhar de desespero de uma jovem nordestina no meio da multidão. A partir daí, nasce Macabéa, que é na verdade a representação de toda a miséria e alienação inerente ao narrador e a todas as pessoas.
Em uma relação de amor e ódio, Rodrigo S. M. narra a vida dessa moça como tentativa de se livrar da sensação de mal-estar que ela representa e que o contagiava, ao mesmo tempo em que tem piedade e se revolta, inclusive se sentindo culpado por viver num padrão de vida mais elevado que a maioria da população marginalizada. Dessa forma íntima, o leitor também se coloca no lugar do outro para experimentar essa miséria e percebe que no fundo, todos nós temos alguma coisa de Macabéa.
II- ANÁLISE DOS ELEMENTOS QUE COMPÕEM A NARRATIVA DO ROMANCE “A HORA DA ESTRELA”, DE CLARICE LISPECTOR
2.1- ENREDO
De acordo com Heraldo Chacon, “A Hora da Estrela” apresenta dois relatos. Nota-se que eles se interligam, não sendo possível separá-los, pois o livro nem mesmo tem divisão por capítulos. O primeiro deles é o da nordestina Macabéa, moça magrela e pobre de tudo, pois, além de dinheiro, lhe faltava inteligência, esperteza e auto-estima. Perde os pais muito cedo e logo passa a ser criada por uma tia que lhe trata mal. Quando a tia morre, ela passa a morar com quatro moças que dividem um quarto.
Um dia, Macabéa conhece Olímpico, também nordestino, e começam a namorar. Ele, ao contrário de Macabéa fala bem, é metido, convencido e pensa no seu futuro, sonhando se tornar deputado. Mas Olímpico rompe o namoro com a nordestina para ficar com Glória, colega de trabalho da mesma. Glória, talvez por remorso de ter roubado o namorado de Macabéa, aconselha-a procurar uma cartomante, madama Carlota, que prevê um futuro grandioso e feliz para a pobre nordestina, que, ao contrário, é atropelada por um Mercedes, morrendo logo em seguida no local.
O segundo relato faz o leitor acompanhar o processo da escrita do romance, pois o narrador-personagem evidencia seus sentimentos ao narrar a vida de Macabéa como tentativa de se livrar da sensação de mal-estar que ela representa e que o contagia. Pela forma de narração que há na obra, dá a aparência de não ser o tipo de escritor que trabalha de forma preestabelecida, mas que vai deixando as personagens brotarem e crescerem como se parte disso fosse ação delas próprias, chegando ao ponto de influenciar o pseudo-autor, mexendo com suas emoções, com seus sentimentos.
2.2- PERSONAGENS
2.2.1 – RODRIGO S.M.
É o pseudo-autor e narrador do relato. Apresenta-se como profissional escritor. É um narrador intruso, por isso (e também por revelar seus sentimentos) torna-se uma das personagens. É o primeiro narrador masculino na obra de Clarice. Ele questiona o tempo inteiro o seu modo de narrar, o seu estilo, a sua capacidade de compreender Macabéa. Em última instância, o que ele procura é desvendar o significado da literatura e da existência.
“E ouço passos cadenciados na rua. Tenho um arrepio de medo. Ainda bem que o que vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim” (pg. 20).
2.2.2 – MACABÉA
É a protagonista da história. É pobre, magra, alagoana, mas que passa a morar no Rio de Janeiro com a tia, que morre em seguida. Trabalha como datilógrafa. Gosta de coca-cola, fã de Marilyn Monroe, sonha em ser estrela de cinema e escuta a Rádio-Relógio. É feia, cheira mal por não gostar de tomar banho e é (e morre) virgem. Não tem auto-estima, inteligência e esperteza. É uma jovem sem qualquer tipo de vida interior, sem futuro e com um passado inexpressivo, quase cretina.
“A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo, entre o céu e inferno. Nunca pensara em “eu sou eu”” (pg. 36).
2.2.3 – OLÍMPICO
Nordestino que veio do sertão da Paraíba por ter matado um homem. É bem falante, metido, convencido, vaidoso, usa dente de ouro e trabalha numa metalúrgica. Trata sempre mal sua namorada, que, por medo de perdê-lo sempre se desculpa quando deveria ser o contrário.
“E não é que ele dava para fazer discurso? Tinha o tom cantado e o palavreado seboso, próprio para que abre a boca e fala pedindo e ordenando os direitos do homem” (pg. 46).
2.2.4 – GLÓRIA
Colega de trabalho de Macabéa. É carioca, filha de um açougueiro, gorda, branca e cabelos crespos e pretos que ela oxigenava sempre. Um adágio popular que caracterizaria bem sua relação com Macabéa é: “quem tem uma amiga dessas não precisa de uma inimiga”, pois ela acaba ficando com o namorado de Macabéa e a recomenda ir a uma cartomante, e a nordestina, ao sair da casa da adivinha, acaba morrendo.
“O fato de ser carioca tornava-a pertencente ao ambicioso clã do sul do país. Vendo-a, ele logo adivinhou que, apesar de feia, Glória era bem alimentada.” (pg. 59).
2.2.5 – CARLOTA
Vidente, cartomante, ex-prostituta, ex-cafetina e gorda. Quando Macabéa foi visitá-la, tratou-a com um carinho excessivo, que não era comum à nordestina.
“... então caí na vida. E gostei porque sou uma pessoa muito carinhosa, tinha carinho por todos os homens” (pg. 74).
2.2.6 – RAIMUNDO SILVEIRA
Chefe do escritório em que Macabéa trabalha. Tenta demitir Macabéa por ter muitos erros de ortografia e sujar os papéis nos quais datilografava, mas acaba admitindo-a de volta (pg. 25).
2.3 – NARRADOR
Em relação à história da vida de Macabéa, ele está em terceira pessoa. É um narrador de onisciência relativa, que, hora sabe o que se passa pela cabeça da nordestina, hora apresenta insegurança no que diz. Mas há uma narrativa à parte, feita em primeira pessoa por Rodrigo S. M., que se mostra tanto como pessoa quanto como profissional. Assim, o narrador se manifesta, no decorrer da história, de três formas: através de um monólogo e reflexão, conta e descreve de forma simples o que acontece e valoriza o discurso direto.
2.4 – TEMPO
É psicológico, pois há uma análise psicológica mais aprofundada dos personagens, que revela, por meio da narrativa interior, o fluxo da consciência e o intimismo.
2.5 – ESPAÇO
A história acontece no Rio de Janeiro, destacando-se os seguintes espaços: quarto em que Macabéa mora com as Marias, escritório em que trabalha, apartamento da cartomante, rua do Acre, cais do Porto, zoológico. Há também referências a Maceió e Recife, onde respectivamente passaram a infância Macabéa e Rodrigo, o narrador.
2.6 – AMBIENTE
Pobre, seco, ininteligível, frio – no sentido de isenção de paixão, insensível, indiferente – desinteressante, morto. O ambiente é, na verdade, uma descrição de Macabéa. Parece que em todo o espaço que a nordestina visita há penetração de suas características, além das angústias da vida da protagonista que atingem o pseudo-autor.
2.7 – TEMA
A alienação
2.8 – ASSUNTO
A vida sem questionamentos
2.9 – MENSAGEM
Há pessoas que são infelizes por não saberem o verdadeiro sentido da felicidade.
III – ANÁLISE FEITA ATRAVÉS DE UM PARALELO TRAÇADO ENTRE O TEXTO DE RENÉ WELLEK “LITERATURA E PSICOLOGIA”, E “A HORA DA ESTRELA”, OBRA DE CLARICE LISPECTOR.
O texto de René Wellek enfatiza as várias teorias que pertencem efetivamente à psicologia do escritor, ao seu processo criativo e aos estudos dos tipos de leis psicológicas presentes em obras literárias. Assim, pode-se traçar uma relação entre o texto “A Literatura e a Psicologia” e o romance “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector.
Se Clarice Lispector fosse vista de acordo com a concepção antiga, o “dom” de escrever seria dado a ela como uma compensação de um problema físico que possuía (que era a língua “presa”).
Na visão de Freud, o escritor não é inteiramente estável, o que é evidenciado no romance, pois, quanto ao estilo, que se tornou contrário da maior parte das suas obras anteriores, é marcado por uma preocupação narrativa de caráter mais objetivo, situando a personagem em seus hábitos, seu espaço social, seu ideário romântico.
Ainda Freud dizia que o artista molda as suas fantasias em um novo tipo de realidade; o artista tem medo de alterar o mundo exterior, daí ele passa para a arte tudo aquilo que sente, como por exemplo, a protagonista do romance, Macabéa, que possui, de acordo com Clarice, uma certa imunidade às malícias da vida, sendo que todos deveriam ter um pouco desta inocência cultivada.
Para Erich Jaensch, o artista sente e até vê seus pensamentos. Rodrigo S. M., pseudo-autor e narrador do relato tem uma estrita vinculação com Clarice. Ambos se confundem. São um só e, ao mesmo tempo, são diferentes. Rodrigo S. M. representa uma outra forma de ser e de escrever de Clarice, um desdobramento do próprio eu da escritora, uma espécie de heterônimo. Assim, o pensamento da autora se projeta no pensamento de Rodrigo S. M., como se nota no seguinte recorte: “se sei quase tudo de Macabéa é que já peguei de relance o olhar de uma nordestina amarelada. Esse relance me deu ela de corpo inteiro” (pg. 57).
Na obra, o narrador-personagem tem o intuito de narrar a história sem sentimentalismo, pois o fato da autora ter criado um narrador masculino, é para que ele não relate com comoção Macabéa, e dê a ela um final feliz: “também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo, um outro escreveria. Um outro escritor sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas” (pg. 14).
Há também o uso contínuo de sinestesia (mistura de sensações) para expressar suas impressões: “sim, talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó” (pg. 20).
O psicanalista Carl Jung faz uma reformulação da tese junguiana de que, por baixo do “inconsciente” individual, encontra-se o “inconsciente coletivo”. Este “inconsciente coletivo” é posto em prática quando se é contada a história de Macabéa, por isso, Eduardo Portela ao prefaciar o livro, nota muito bem que a protagonista representa bem mais, ela é todo um grupo social: “a moça alagoana é um substantivo coletivo”. Pensa-se que a história realmente aconteceu, pois é isso que Rodrigo S. M. diz no seu relato: “... é claro que a história é verdadeira embora inventada” (pg. 12). A idéia de que este fato é verdadeiro está atrelado ao fato de que existem pessoas com dificuldades de encontrar um lugar na sociedade, além da denúncia de exploração e desumanidade do mundo urbano contra o imigrante nordestino. Tudo isso é narrado pela autora para que muitos se identifiquem com Macabéa e acreditem que ela realmente existiu.
Sem dúvida a escritora Clarice Lispector se encaixa na visão de Kretschmer, como o “possuído”, isto é, o poeta automático, obsessivo ou profético. É marcante nos textos de Clarice a postura e a linguagem poética. A poesia vem da relação afetiva que se estabelece entre o triângulo leitor/narrador/protagonista e no caráter sugestivo da linguagem que evita a objetividade referencial, optando pela tentativa de captação da magia da vida pelas palavras e expressões que apenas tangenciam o concreto para atingir o essencial que é intangível à palma da mão, como diz Drummond. Exemplos disso: “sim, talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó” (pg. 20). “Pois, na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes” (pg. 29). “E então – então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida come a vida” (pg. 89).
Para o psicólogo francês Ribot, o “difluente” (possuído) é o poeta que parte das suas próprias emoções e sentimentos, e, de acordo com Geraldo Chacon, Clarice deixava correr seu pensamento, seus sentimentos, suas reflexões, suas sensações, numa magia que parte do banal cotidiano, mas dele escapa, atingindo uma rara epifania*.
Em relação ao processo criativo, à maneira de Dilthey, embora insatisfatória, revela-se algo sobre a autora. Para ele, “o autor é um “artífice” de poemas, mas as matérias dos seus poemas é toda a sua vida percipiente; ele não acumula nenhuma experiência insipiente”. Isso se remete aos acervos de Clarice, o qual revela a autobiografia da escritora como fator marcante de suas personagens, que se evidencia na tentativa da autora de fugir da sufocante introspecção das obras anteriores, como ela mesma revela: “não agüento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter em pé...” criando um romance que tem alguma abertura para o mundo exterior. As circunstâncias históricas também podem a ter levado a produzir algo mais social, embora não seja a dimensão mais valiosa do texto.
Outra afirmação contida no texto “A Literatura e a Psicologia” é que “nos tempos modernos, sentimos a inspiração como algo que possui as marcas essenciais do repentino (como a conversão) e do impessoal: a obra parece escrita através de nós”. De acordo com Olga Borelli, melhor amiga de Clarice, em qualquer lugar que a escritora estivesse e lhe viesse um pensamento, anotava para não esquecê-lo e acabava por utilizá-los em suas obras.
Quanto aos rituais praticados por escritores para induzir o estado criativo, assim como a tradição romântica wordsworthiana, que exalta a manhã, nossa autora preferia escrever bem cedo, como revelou em sua última entrevista dada à TV Cultura. Porém, acrescentou que em qualquer horário poderia escrever. Rodrigo S. M. também teve um ritual para poder escrever sobre Macabéa: “para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias para adquirir olheiras escuras por dormir um pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pôr no nível da nordestina” (pg. 19).
É marcante nos textos de Clarice a postura e a linguagem poética. Parece uma brincadeira entre palavras, que, de acordo com René Wellek “o homem literário usa a palavra como seu veículo. Como criança, pode colecionar palavras como outras crianças colecionam bonecas, selos ou animais de estimação”. É bom ressaltar que para o poeta, como acrescenta René, “a palavra não é um signo, mas um símbolo”. Mas, ao contrário do que os pós-modernistas pensavam (palavra como símbolo), autores modernistas, como Graciliano Ramos, a viam como um signo.
Nossa autora apresenta uma associação entre os dois relatos de Rodrigo S. M.: sobre a vida de Macabéa e o seu processo de escrita, pois, de acordo com Geraldo Chacon: “funciona como fios de tapete que compõem dois desenhos que se inter-relacionam”. Na criação da personagem Macabéa, a escritora faz uso de características já existentes em outras personagens, como Fabiano, protagonista de Vidas Secas, do próprio Graciliano Ramos: ambos são personagens que não sabem gritar. Sua condição física, moral e social não lhes permitem.
A maneira de outros romancistas que se equipararam a seus próprios personagens, como é o caso de Flaubert que disse: “madame Bovary c’est moi”. Pode ser também que Clarice em seu romance tenha revelado uma das facetas de sua personalidade por meio da personagem Macabéa, “a antieroína tosca e ingênua” criada por esta autora. Segundo Sérgio Vale “Macabéa é o desejo de Clarice de não ter que conviver com a barbárie da realidade, e o desejo de Clarice é que todos tenham um pouco dessa inocência cultivada”.
Para a autora as personagens são mostradas de maneira incompleta e unidimensional, ou seja, a escassez de informações, usando apenas o essencial para poder dar compreensão vaga da personalidade de suas criações. As lacunas são recursos usados para se colocar diante das suas personagens. “A Hora da Estrela” é a única obra de Clarice com a intenção social explícita.
Portanto, há muitas linhas que entrelaçam o texto de René com a obra e a vida de Clarice Lispector. Mas, longe de conhecer por inteiro a escritora, tentou-se relacionar o básico para entendê-la e olhar por novos horizontes a escrita “possuída” da autora. *é um instante abruto de revelação intensa, de uma tomada de consciência.
IV – REFERÊNCIAS
CHACON, Eduardo. PUC, literatura para vestibular: análise e resumo de obras. Editora Flâmula. São Paulo, 2001.
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Editora Rocco. Rio de Janeiro, 1998.
OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. Discutindo Literatura: a flor do mandacaru. Editora Escala Educacional. 18ª edição. São Paulo, 2008.
WELEK, René. Teoria da Literatura e Metodologia dos Estudos Literários. Editora Martins Fontes. São Paulo, 2003.
Google.pesquisa de literatura.
Disponível em: Acesso em: 9 out 2008, às 19:07h.
Disponível em: www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/a/a_hora_da_strela> Acesso em: 9 out 2008, às 20:03h.
Disponível em:Acesso em: 9 out 2008 20:19h.
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