9/15/2020

Macapá fede

         

extraído do blog de Alcinéa Cavalcante

Macapá fede, a verdade é essa, lamentavelmente. Por favor, não me entendam mal, isso não é uma declaração de ódio a minha terrinha, eu não a odeio, até gosto (do meu jeito torto), mas gosto. Fui correr hoje pela manhã, como costumeiramente faço, e a cada quarteirão que passava encontrava uma sacola de lixo estourada, ou um bueiro a céu aberto, ou merda de cachorro pelas calçadas, e agora, no inverno, também temos o odor das mangas putrefatas sob o meio fio.

As mangas e as mangueiras não têm culpa de nada, pelo contrário, elas são a graça do centro da cidade, uma das pouquíssimas coisas boas que a cidade tem. E já estão velhas, muitas delas estão prestes a cair por conta das fortes rajadas de vento. Outras já caíram. Na casa onde cresci tínhamos duas mangueiras. Uma ficava ao lado da casa e a outra nos fundos quintal. As duas davam bastante frutos durante o inverno, mas a que ficava ao lado da casa costumava arrebentar as telhas, por isso fomos obrigados a cortar os galhos que tombavam para cima do telhado.

Conheci um senhor que me falou certa vez que ele, e mais alguns outros, tinham plantado as mangueiras espalhadas ao longo do centro da cidade. Disse que era garoto, que tinha quinze anos e que era recém-chegado do interior do Pará, entrou em contato com os encarregados do então governador Janary gentil Nunes que o incumbiram de realizar esse trabalho.

Esse senhor já é falecido, tem dois anos. Não lembro o nome dele e mesmo que lembrasse não revelaria aqui, mas lembro que se tratava de um velhinho muito bem humorado que adorava contar piadas e as vezes ele era meio maluco, dirigia o carro como se fosse um adolescente embriagado, ultrapassava os sinais e as preferenciais e não estava nem aí com os outros motoristas. No geral ele era bacana, mas às vezes ele se comportava como um escroto.

Mais de uma vez eu o ouvir dizer que tinha nojo de “veados”, dizia que preferia um filho morto a um filho gay. Se estivesse vivo, provavelmente seria mais um com adesivo do Bolsonaro no carro. Trabalhávamos para o filho dele, serviço de pintura de prédios.

O filho dele era um cara bacana que por vezes se mostrava meio efeminado. Passado um tempo, quando já não trabalhava mais com ele, soube, por intermédio de um amigo da família, que o cara havia largado a esposa e assumido uma relação homoafetiva, ele era filho único. Acho que foi um golpe duro para o velho, que como já concluímos era bem homofóbico. Coisas da vida, ou melhor, peças que a vida nos prega.

Mas gostei de ter conhecido aquele velho, gosto da ideia de ter conhecido o cara que plantou as mangueiras do centro da cidade. Quando era moleque vivia pelo centro, jogando bola na Praça do Barão ou na Praça Zagury. Depois do futebol íamos apanhar manga, encher a barriga de manga, matar a fome com manga, se lambuzar de manga, entre os dentes só fio de manga, não haviam grandes preocupações, não havia boletos a pagar, não havia aluguel, não havia dissabores, havia sabor, sabor de manga, e isso nos bastava.

Não sei se saudade é um sentimento que define o que eu realmente sinto a respeito daquela época, sou inclinado a pensar que saudade tem a ver com um certo desejo de retorno, e com certeza não é isso que eu sinto. O que sinto, na verdade, é uma nostalgia, uma boa lembrança dos tempos de pivete, de quando pulava de uma embarcação a outra no cais da beira-rio, quando roubava frutas na feira ou de quando não me importava em caminhar por uma cidade mal cheirosa.


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