9/13/2020

Carmen (conto)

 


Está anoitecendo em Macapá, o final da tarde é quente, porém é menos quente que o resto do dia. O hálito suave que vem do rio talvez seja o único alento nessa cidade que só sabe ter sol e poeira e calor. No horizonte parece se formar algumas nuvens negras, talvez chova, talvez não. Aqui na Amazônia é assim mesmo um sol escaldante durante o dia e no final da tarde uma chuva torrencial que logo se desfaz e dá lugar ao calor novamente. O único elemento da natureza que nunca sai de cena é o calor, o calor supremo, o calor odioso, o calor...

Olho para as casas próximas ao porto e é tudo feio, tudo desordenado, tudo empobrecido, e mesmo as casas recém-edificadas já parecem velhas, um lugar onde tudo já nasce velho. Estou de mau humor e quando isso acontece fico mais contemplativo, não me pergunte por que, mas deve ser o fato de não querer conversar com ninguém. Nessas horas só uma cerveja gelada pra esfriar o corpo e a mente.

            O dia definitivamente vai embora, a noite cai e a escuridão invade o rio que está na cheia e por isso começou a ventar mais forte. Junto com a noite, o vento forte e a cheia também surgem as putas. Elas são muitas e vem de todos os lugares da cidade, mas principalmente das áreas portuárias. Não dá pra saber a história de cada uma delas, mas quase sempre é a mesma história, a da garota que veio do interior pra estudar na cidade grande e que em algum momento se perdeu, embuchou, teve filho, foi abandonada pelo macho, abandonou a escola e veio parar no porto, é triste, mas é assim que é.

            Entre essas moças que se vendem está a Carmen. Para chegar aqui ela vivenciou uma sequência de desventuras. A mãe, doente de câncer, precisou mudar-se do interior onde morava para estabelecer-se na cidade, trouxe com ela os filhos Junior, Lucielson, Joseilton e Carmen. A merda começou já na vinda para Macapá porque o Marido, Agnelo, não tinha pretensão de largar a vida no interior, não porque não gostasse da cidade, até gostava, porém o lugar onde vivia era o único onde tinha podido construir algum patrimônio e nem mesmo a situação da mulher poderia demovê-lo de abandonar sua propriedade.

            Ficou combinado que Agnelo ficaria para poder tocar os negócios da família e dar algum sustento para a esposa e filhos, o que de fato aconteceu durante um curto espaço de tempo. Depois o dinheiro foi rareando, a mesada diminuía na mesma proporção em que a saúde da velha se debilitava. Alguns dizem que o velho arranjou outra família, outros dizem que ele apenas assumiu a amante com quem tinha filhos, que eram poucos anos mais jovens que os irmãos de Carmen. Eu não sei, mas as duas versões são perfeitamente possíveis.

            Júnior e Lucielson tiveram que abandonar a escola pra poder trabalhar. O mais velho, começou na construção civil como servente. O trabalho era pesado e pouco remunerado, mas ele ainda persistiu por algum tempo. Como toda pessoa que trabalha na construção civil no final do dia só queria tomar uma cerveja e voltar pra casa, recarregar a bateria pra que no outro dia retornasse ao trabalho, mas essa rotina o acabou viciando.

Com o tempo ele já não se importava mais em voltar pra casa. Do trabalho já ia direto pro bar, e por lá ficava, às vezes dormia na cadeira, às vezes era enxotado pelo dono, às vezes era roubado pelos transeuntes, não raro acontecia de ser logrado pelos garçons. Como bebia muito e dormia mal, chegava tarde no trabalho. Numa dessas foi despedido e passou a perambular pelo bairro como um mendigo sem rumo. Já não se importava mais com a sua aparência e nem queria saber de arranjar outro trabalho. A mãe, mesmo doente buscava ajudar o filho, mas nada adiantou, o garoto se entregou de vez ao vicio da cachaça.

Lucielson, o segundo, se viu cada vez mais sozinho e sobrecarregado com as despesas da casa e os remédios para o tratamento da mãe. Segurar as pontas da família ficou cada vez mais difícil, coincidiu que por essa época arranjou uma namorada, isso um pouco antes da mãe morrer, depois se casou e constituiu família, não se importou mais com os outros irmãos, pois tinha a própria família para dar conta.

Joseilton foi expulso da escola, a diretora descobriu que ele estava traficando para os alunos do ensino fundamental. Fora da escola acabou virando aviãozinho nas bocas de fumo dentro das baixadas que se estendem ao longo do cais. Entrava e saia dos institutos de correção para menores, depois de adulto foi preso várias vezes, nem sempre por tráfico, mas também por roubo, assalto, homicídio e tentativa de homicídio, lesão corporal e tantas outras coisas que nem sei dizer. Uma vez ele roubou uma casa e no dia seguinte foi debochar do dono. O cara correu com um facão atrás dele, o alcançou e desferiu um golpe que decepou o braço esquerdo. Nem mesmo esse incidente o fez sair da criminalidade.

Foi nessa mesma época que Carmen, já com 14 anos, arranjou um namoradinho, o cara embuchou a menina e depois sumiu no trecho. Abandonada e com o um filho pra cuidar a pobre não teve alternativa senão ir pra rua se prostituir. Honestamente, espero que ela fique bem, a vida é uma parada fodida demais, nem sempre as coisas saem como planejado, na verdade arrisco a dizer que quase sempre as coisas não saem como planejado.

Tenho certeza que ela não sonhou e nem pediu por essa vida. Tomara que ela se proteja porque tem tanto nego filho da puta pronto pra fazer o mal e ela está tão vulnerável que seria presa fácil pra esse tipo de gente. Já tá ficando tarde, vou terminar minha cerveja e ganhar o rumo de casa. A nuvem negra no horizonte se desfez, não vai chover em Macapá, então teremos mais uma noite de calor fodido.

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