Anticlericalismo em O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz é um trabalho de pesquisa cujo objetivo é investigar de que forma se opera a crítica às instituições religiosas na obra deste autor português. Como metodologia para a fundamentação científica deste artigo foi necessário realizar uma ampla pesquisa bibliográfica de autores que se debruçaram sobre a temática do anticlericalismo, e de outros que se dedicaram a analisar a produção literária de Eça de Queiroz, e sem esquecer ainda, dos críticos que buscaram compreender a religião como tema corrente na literatura portuguesa. O texto do artigo está estruturado a partir dos seguintes elementos: Introdução, desenvolvimento e conclusão.
A introdução contém duas laudas e a conclusão conta com cinco parágrafos, já o desenvolvimento, que é a maior parte do trabalho, está dividido em dois capítulos que se complementam entre si. Os resultados alcançados são os mais diversos, pois revelam uma tradição anticlerical que atravessa toda a Literatura Portuguesa e que encontra sua expressão máxima na figura do maior escritor do Realismo/Naturalismo português José Maria de Eça de Queiroz, ou simplesmente Eça de Queiroz, autor de clássicos da Literatura mundial como Os Maias e o Primo Basílio. Como conclusão é necessário dizer que se faz urgente o estudo das obras literárias sob a luz do anticlericalismo e de suas várias abordagens.
Palavras-chaves: Anticlericalismo. Literatura. Tradição.
Introdução
O anticlericalismo é um tema que se tornou tradição na Literatura portuguesa e que há muito desperta a atenção tanto de ficcionistas quanto de críticos. Desde as trovas satíricas de Fernão Paes de Tamalancos, datadas do século XIII, até José Saramago, escritor contemporâneo, os portugueses têm legado ao cânone literário um acervo incontestavelmente valioso de escritos anticlericais.
Ainda hoje o anticlericalismo é tema corrente na literatura, de grande controvérsia, e que divide opiniões na sociedade civil. Muitos escritores que ousaram criticar o Modus operandi da Igreja foram duramente retaliados, sofrendo represálias de toda ordem. O tema é de trato um tanto quanto delicado, porém a discussão torna-se urgente, pois a religião, bem como a literatura, são ainda aspectos importantes nas sociedades contemporâneas e a discussão sobre literatura anticlerical pode ajudar a construir novas formas de se pensar a própria sociedade, a Literatura e a relação do homem moderno com as crenças religiosas.
Para dar conta de responder às questões propostas neste artigo foi necessário realizar uma vasta pesquisa bibliográfica, fundamentada em fontes secundárias que descrevem possíveis variáveis, nesse sentido foi importante estudar autores que se aprofundaram na obra de Eça de Queiroz e de estudiosos que produziram considerável material sobre a relação entre literatura e religiosidade. Entre as leituras aqui aproveitadas constam O crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós; Cantigas de escárnio e maldizer dos trovadores medievais e jograis galego-português, estudo organizado por Graça Videira Lopes; e outros.
A obra literária objeto de estudo deste artigo é de autoria do escritor português Eça de Queiroz, considerado por muitos como o maior romancista de Língua Portuguesa do século XIX. O Crime Do Padre Amaro foi publicado no ano de 1875 e é o marco inicial do Realismo/Naturalismo Português. Trata-se de uma obra polêmica e que gerou diversas manifestações de repúdio por parte de membros da igreja católica. O enredo conta a história do jovem padre Amaro, recém-chegado à cidade de Leiria, e o seu caso proibido com a jovem Amélia. Na narrativa a religião é sempre questionada e a denúncia das atitudes reprováveis dos demais personagens evidencia a perspectiva anticlerical de Eça de Queiroz.
Anticlericalismo pode ser considerado como a atitude de repulsa que se manifesta através da crítica aos líderes de qualquer religião. No caso dos portugueses, em particular, essa crítica é direcionada ao alto clero da Igreja católica. O problema deste artigo é analisar de que forma se opera o anticlericalismo no romance realista O crime do padre Amaro.
Para que a questão posta em análise possa ser respondida em sua totalidade foi necessário realizar no primeiro capítulo a contextualização da temática do anticlericalismo, elucidar sobre as suas variações e compreender como escritores ao longo da história lançaram mão dessas variações e como essa temática atravessa toda a literatura portuguesa, sendo matéria para a produção de muitos escritores que escreveram em tempos diversos e em estéticas diferenciadas. É importante saber, ainda, de que maneira Eça de Queiroz foi afetado por essa tradição.
No segundo capítulo foi realizada uma análise particular do objeto de estudo deste presente artigo, a saber, o romance O Crime do Padre Amaro, do escritor português Eça de Queiroz. A ideia aqui é entender como funcionava a crítica ao alto clero levada a cabo por este autor e no que ela difere do anticlericalismo de seus antecessores.
Uma provável hipótese que possa vir a responder ao problema apresentado nessa pesquisa é que a forma como anticlericalismo se manifesta em O crime do Padre Amaro seja a do tipo que ataca a religião enquanto fenômeno social considerando-a extremamente prejudicial, negando o próprio cristianismo e todos seus fundamentos. Essa é a forma mais radical de anticlericalismo.
1- Anticlericalismo: Temática que atravessa a história da Literatura Portuguesa.
Anticlericalismo pode ser definido como a atitude de repulsa aos líderes religiosos de uma determinada religião, nesse sentido, uma atitude anticlerical seria uma atitude de crítica, rejeição e até mesmo de hostilidade frente às instituições religiosas.
O anticlericalismo é um tema corrente na literatura portuguesa, isso quer dizer que muitos autores, em variadas épocas, lançaram mão desse assunto para estabelecer um enfrentamento à igreja católica. Em termos literários pode-se dizer que o anticlericalismo é uma tradição literária portuguesa.
Desde as cantigas de escárnio e maldizer até José Saramago a literatura portuguesa veicula em seu discurso esse pensamento anticlerical que se configura como um topos (grifo do autor), figurando em todos os períodos literários até nossos dias. A temática anticlerical assumiu diversas formas e tônicas durante os tempos, não somente pelas diferenças temporais, mas pela própria atitude de compreensão da religião por parte dos escritores. (NERY, 2005, P. 10)
Registros de anticlericalismo na literatura portuguesa são encontrados bem antes da consolidação do estado nacional português, mas precisamente no trovadorismo, expressão literária comum à idade média. Desse período destacam-se autores como o rei Afonso X e Fernão Paes de Tamalancos. Este último se sobressai por suas trovas satíricas, uma, em particular, se refere a sua prima, uma abadessa que o preteriu em favor de um cavaleiro que conquistou o afeto da religiosa.
Quand'eu passei per Dormãa
preguntei por mia coirmãa,
a salva e [a] paçãa.
Disserom: - Nom é aqui essa,
alhur buscade vós essa;
mais é aqui a abadessa
Preguntei: - Por caridade,
u é daqui salvidade
que sempr'amou castidade?
Disserom: - Nom é aqui essa,
alhur buscade vós essa;
mais é aqui a abadessa*. (apud LOPES apud GARMES E SIQUEIRA, 2002, p. 30)
* Em tradução livre: Quando passei por Dormã (ou Dormea) / perguntei por minha prima, / a pura e nobre (educada no paço). / Disseram-me: Não está aqui, / deveis buscá-la em outro lugar, / mas aqui está abadessa. / Perguntei: por caridade, / onde está a moça pura / que sempre amou a castidade? / Disseram-me: não está aqui, / deveis buscá-la em outro lugar, / mas aqui está a abadessa. (apud GARMES E SIQUEIRA, 2009, p. 126).
Ainda na idade média o monarca Afonso X, rei de Leão e Castela, chamado de O sábio, escreveu um poema em que acusa o papa Nicolau III de roubar seus tecidos. Na verdade o rei usa o tecido como uma espécie de metáfora para denunciar a exigência de pesados impostos por parte do Clero católico, situação que o deixava deveras aborrecido a ponto de escrever diversos poemas satíricos depreciando figuras do clero. Entre esses poemas destaca-se uma de suas muitas cantigas. (apud Lopes, p 2002. P. 53.)
Se me graça fezesse este Papa de Roma
Pois que or’os panos da mia reposte toma,
Que levass’el os cabos e dess’a mi a soma;
Mais doutra guisa me foi el vendê’la galdrapa
Quisera eu assi ora deste nosso Papa
Que me talhasse melhor aquesta capa.
Se me’l graça fezesse com os seus cadeaes,
Que me lh’eu dess’e que mos talhasse iguaaes!
Mais vedes em que vi em el(e) mãos sinaes:
Que do que me furtou, foi cobril(o) a as capa.
Quisera eu assi ora deste nosso Papa
Que me talhasse melhor aquesta capa.
Se conõ’os cardeais com que fará seus conselhos
Posesse que guardasse nós de mãos trebelhos,
Fezere gram mercê, ca nom furtar com elhos
E (os) panos dos cristãos meter só sa capa.
Quisera eu assi ora deste nosso Papa.
Que me talhasse melhor aquesta capa*. (apud LOPES apud GARMES E SIQUEIRA, 2002, p. 53).
* Em tradução livre: O Papa de Roma poderia me fazer um favor! / Já que está levando os panos da minha casa, / que levasse os tecidos e trouxesse as roupas; / no entanto leva tudo para vender às escondidas. / Queria portanto que esse nosso papa / cortasse melhor esta capa. / Ele e seus cardeais poderiam me fazer um favor, / que me trouxessem as roupas cortadas direito! / mas vejam, como eu, os seus maus sinais: / aquilo que me roubou cobriu com a sua capa. / Queria portanto que esse nosso papa / cortasse melhor esta capa / Se, com os cardeais que formam os seus concílios, / ele nos livrasse de más encrencas, / faria um grande favor se juntos não furtassem / e os panos dos cristãos pusessem sob a capa. / Queria portanto que esse nosso papa / cortasse melhor esta capa. (apud GARMES E SIQUEIRA, 2009, p. 127).
O eu-poético, nessa cantiga do rei Afonso X, manifesta a sua contrariedade às atitudes dos membros do clero católico, ele os considera como ladrões, se trata da denúncia de um achaque promovido pelo papa contra os fiéis e os reis da época. O anticlericalismo do Rei Afonso X ataca somente figuras específicas da igreja.
Não é exagero dizer que a temática do anticlericalismo é tão antiga quanto à própria nacionalidade lusitana, ou mesmo antes de Portugal se constituir como estado nacional, escritores da península ibérica já tornavam público o seu descontentamento com as questões eclesiásticas e com os destinos da Igreja católica. Um dos maiores historiadores de Portugal, Joel Serrão, afirma:
Em Portugal, pode-se dizer que o anticlericalismo data quase da fundação da nacionalidade, se nas ‘longas e violentas dissensões dos reis da primeira dinastia como os bispos e com a cúria romana’ virmos tão somente a determinação dos monarcas em não tolerarem a supremacia da igreja do reino em formação. (SERRÃO apud SIQUEIRA IN vídeo-aula)
De fato, mesmo antes da unificação do reino de Portugal, ainda na idade média, escritores como Fernão Paes de Tamalancos e o Rei espanhol Afonso X já produziam precioso material e que expunham ataques ferinos ao clero católico.
1.1.- Anticlericalismo e suas formas
O anticlericalismo pode ser classificado de três formas, desde a sua manifestação mais branda, muito utilizada nos primórdios da literatura portuguesa, até a sua forma mais radical, que se expressou, principalmente, com advento do Realismo/Naturalismo e também é muito praticada atualmente, se caracterizando por um ataque frontal a doutrina cristã.
1.1.1- Primeira forma de anticlericalismo, o mais brando.
De acordo com Hélder Garmes e José Siqueira, existem, pelo menos, três tipos de Anticlericalismo que se manifestaram em momentos diversos da Literatura Portuguesa. Eles afirmam:
O anticlericalismo pode se expressar de diversas maneiras:
§ Atacando o clero e os fiéis, mas preservando a instituição religiosa (considera que os indivíduos são corruptos, enquanto a igreja é santa), essa foi a posição dos reformadores da igreja ao longo dos séculos. (GARMES E SIQUEIRA, 2009, p.124).
Por muito tempo essa foi a posição de autores consagrados da Literatura portuguesa, entre eles, o grande dramaturgo humanista Gil Vicente que em suas peças de teatro, como por exemplo, o Auto da barca do inferno, sempre criticou a postura de líderes da Igreja. Ele acaba por torna-se um crítico severo de seu tempo, denunciando a corrupção entre os poderosos, criticando a nobreza, o clero, e até mesmo a figura do papa não escapa de sua pena maldizente.
Em O auto da barca do inferno, sua peça mais famosa, Gil Vicente denuncia a exploração por parte de religiosos que extorquiam os poucos recursos que tinham as pessoas pobres. Em suas peças de teatro Gil Vicente, mesmo sendo cristão, não poupa as autoridades católicas de sua denúncia. Uma particularidade desse tipo de anticlericalismo é que geralmente ele vem revestido de comicidade.
Na Idade Média, a contestação da exagerada intervenção dos clérigos na sociedade, bem como suas atitudes incoerentes, originavam o tema dos ataques à religião, sempre de forma cômica, direta e indiretamente, sem aprofundamentos em questões doutrinárias ou de contestação virulenta à integridade da fé cristã (...). Isso é perceptível nas Cantigas de Escárnio e Maldizer, no Trovadorismo, e no Teatro Vicentino. (NERY, 2005, p.19).
É possível perceber que a critica promovida por Gil Vicente se refere especificamente a algumas figuras da Igreja católica, quer dizer, a alguns indivíduos em particular. Em nenhum momento o dramaturgo português questiona a Igreja enquanto instituição religiosa ou a doutrina cristã enquanto uma forma de crença, isso porque ele faz parte de um grupo de escritores anticlericais que denunciam a corrupção e a hipocrisia dentro da Igreja, mas procuram preservar a instituição religiosa e a doutrina cristã.
1.1.2- Segunda forma de anticlericalismo, em que se criticam os fiéis, o clero e a igreja, porém a fé na doutrina cristã se mantém preservada.
Outra forma de expressão anticlerical é aquela em que se denunciam os malefícios causados pelo clero católico e se questiona a igreja enquanto instituição religiosa. Garmes e Siqueira esclarecem “Entendendo a instituição como agente nocivo, englobando assim ministros e crentes (ataca a igreja sem negar o cristianismo);” (GARMES E SIQUEIRA, 2009, p.124). Nesse caso a crença na doutrina cristã se mantém intacta, e principalmente, inquestionável.
Esse tipo de posicionamento foi adotado principalmente por autores da primeira metade do século XIX, mais especificamente os escritores do Romantismo português, entre eles: Alexandre Herculano, Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco, e outros. Sobre o anticlericalismo dos Românticos, Garmes e Siqueira aclaram:
Ao mesmo tempo em que atacava a dissolução do clero e a corrupção da instituição eclesiástica, o romantismo (escola a que pertenciam Herculano, Garrett e Camilo) preservou o cristianismo e procurou recuperar os ideais e a utopia da igreja primitiva, formada graças à fé e o empenho dos apóstolos. Outra coisa bem diferente vai ocorrer no Realismo. (GARMES E SIQUEIRA, 2009, p.131).
Nos romances de Camilo Castelo Branco os padres são, quase sempre, retratados como corruptos. Alexandre Herculano, por sua vez, desconstrói o mito do milagre de Ourique* afirmando tratar-se de uma falsificação histórica. No anticlericalismo dos escritores românticos existe um excessivo desprezo pelos sacerdotes católicos. Almeida Garrett (pag.61) escreve “Frades... Frades... Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para nada, moral e socialmente falando.”. (GARRETT, 2013, p. 93)
Em relação ao anticlericalismo de Gil Vicente e dos trovadores medievais, as reinvindicações dos românticos são mais ácidas e aprofundadas, pois tocam em aspectos da religiosidade que até então não haviam entrado no programa de críticas anticlericais dos autores portugueses, agora a própria história da igreja, junto aos sacerdotes e fiéis, se tornara alvo de acusações.
Apesar das denúncias mais elaboradas, muitos autores românticos ainda nutriam certa esperança de que a igreja pudesse retornar aos antigos ideais de amor, caridade e propagação do evangelho da igreja primitiva. A descrença ainda não era total, diferente do que acontecerá no Realismo/Naturalismo posteriormente.
1.1.3- Terceira forma de anticlericalismo, aquela que questiona os fundamentos doutrinários da fé cristã.
A terceira e última forma de anticlericalismo é muito mais ácida em sua crítica em relação às duas anteriores, porque além de criticar os fiéis, o clero, a igreja, ela crítica os próprios fundamentos da fé cristã. Garmes e Siqueira elucidam: “Criticando a religião ou a religiosidade enquanto fenômeno ou manifestação humana (considera prejudicial) o cristianismo ou qualquer outra forma de religião” (GARMES E SIQUEIRA, 2009, p.124). Esse tipo de anticlericalismo foi amplamente difundido por autores da segunda metade do século XIX, em particular, os autores do Realismo/Naturalismo, que promoveram o mais ferrenho ataque a igreja e aos fundamentos da cristandade.
O expoente máximo da literatura realista em Portugal foi o romancista Eça de Queiroz, ele fez parte da famosa geração de 70, que pôs fim ao movimento romântico quando da questão Coimbra* e fundou o realismo nas letras portuguesas. Como todo escritor realista, em suas obras abundam críticas a igreja. Seu trabalho inaugural, O crime do padre Amaro, de 1875, é uma verdadeira denúncia do estado de coisas e das relações promíscuas de padres católicos.
O anticlericalismo radical de Eça de Queiroz não censura apenas as atitudes reprováveis de fiéis e de padres, mas evolui para uma espécie de ataque implacável contra as instituições religiosas, mas principalmente procura ruir todos os fundamentos que sustentam a cristandade. Garmes e Siqueira afirmam:
Mas no caso de Eça, diferentemente dos autores antes analisados, não está em jogo apenas a conduta do clero e dos fiéis católicos: de forma sútil, mas metódica, por todo o romance o autor vai revelando os mecanismos de doutrinação e dominação da igreja romana. De maneira inteligente, o narrador eciano vai expondo os principais dogmas católicos – a inquisição, o auto de fé, a excomunhão, etc.- e demonstrando como tais elementos são usados pelo clero como instrumentos de poder e repressão. (GARMES E SIQUEIRA, 2009, p.133).
Fica claro que para Eça de Queiroz o grande mal da sociedade de sua época não consistia apenas na conduta pecaminosa, e por vezes criminosa, de fiéis e do clero católico, mas também, e particularmente, o mal estava arraigado nos próprios fundamentos doutrinários da Igreja de Roma, o que significava que a instituição em si era um mal que do qual fazia necessário livrar-se.
2- Análise do romance O Crime do Padre Amaro.
2.1- Sobre Eça de Queirós
José Maria de Eça de Queiroz, mais conhecido como Eça de Queiroz, foi o principal nome do movimento realista português, na verdade, ele inaugurou o Realismo em Portugal, ao publicar, no ano de 1875, o que viria a se tornar uma de suas obras mais significativas, trata-se de O crime do Padre Amaro.
Nascido no ano de 1845, em Póvoa de Varzim, Eça de Queiroz foi diplomata, romancista e contista. É considerado o mais importante romancista português do século XIX. É autor de célebres romances como O Primo Basílio, publicado em 1878, A Relíquia de 1887, Os Maias de 1888, dentre várias outras publicações.
Por imposição do pai, que era um influente magistrado, estudou direito na prestigiada universidade de Coimbra e lá entrou em contato com um grupo de jovens escritores que mais tarde viriam a se chamar de A geração de 70. Exerceu o direito, foi diplomata, jornalista, mas, principalmente, foi um grande escritor. Faleceu no ano 1900, na França, deixando um legado incontestavelmente valioso.
2.2 - Eça de Queiroz e o anticlericalismo da geração de 70.
Decisiva para a formação intelectual de Eça de Queirós, assim como para sua militância anticlerical, a famosa geração de 70 teve papel importantíssimo sobre o modo de encarar a religiosidade na segunda metade do século XIX. Sobre aquele momento histórico para a Literatura portuguesa é possível afirmar que uma nova forma de anticlericalismo estava sendo forjada, a partir de uma crítica mordaz que tinha como objetivo ruir os fundamentos doutrinários da cristandade. Para Nery:
O anticlericalismo na segunda metade do século XIX parece ser inseparável de toda a agitação de renovação que se propunha, bem como dos objetivos do socialismo e da consolidação das idéias republicanas. É nesse contexto que surge a Geração de 70, uma das mais profícuas agremiações literárias a desenvolver uma crítica à Instituição religiosa portuguesa em todos os seus âmbitos. (NERY, 2005, p.21)
Apesar de ser um de seus alvos preferenciais, a geração de 70 não dirigia sua crítica somente à Igreja, em seus discursos também mencionavam a situação politica de Portugal, a estagnação do conhecimento científico, o atraso em relação aos demais países europeus como: França, Alemanha e Inglaterra, e também criticavam a letargia politica de seu país. Mesquita afirma:
Ora a «Geração de 70» foi precisamente isso, um movimento de ideias, uma desconstrução da sociedade e dos seus liames tradicionais, rompendo com as convenções obsoletas duma burguesia pretensiosa e aristocracizada, anquilosada nos preceitos religiosos do passado e ancorada nos carcomidos pés do secular trono bragantino, que o devir dos tempos e as novas concepções revolucionárias tornaram de todo ultrapassado. (MESQUITA, p.04)
Ainda que pareçam distintos, na verdade, em Portugal, temas como sociedade, educação, politica e finanças tem uma correlação direta com o tema da religião, uma vez que o clero católico influenciava de maneira decisiva as questões que diziam a respeito à nação portuguesa. Sempre foi assim, desde que Portugal existe como nação, talvez por isso mesmo haja, desde sempre, uma tradição literária voltada à crítica da Igreja. Para Garmes e Siqueira
Desde a idade média, a igreja de Roma havia angariado grande poder politico e econômico. Sua atuação por toda cristandade sempre teve como objetivo manter seus privilégios e garantir seus interesses (como ocorreu e ocorre com qualquer religião oficial ou hegemônica), o que muitas vezes se chocava com os interesses de grupos políticos estamentos sociais, e principalmente com o grupo de pensadores e cientistas. Desses conflitos surgiu, da parte dos oponentes da igreja, uma forma de pensamento e ação que no século XIX se denominou anticlericalismo (grifo do autor). (GARMES E SIQUEIRA, 2005, p.122).
É bem verdade que as críticas não diziam respeito somente à igreja, porém esta era acusada de corromper todos os demais setores da nação portuguesa, desde a economia, politica, passando pela educação e a própria sociedade. Os intelectuais da geração de 70 alegavam que a influência perniciosa do clero católico era de fato o grande mal e o motivo do atraso do povo português. A convivência com esse círculo de intelectuais foi decisiva para a produção literária de Eça de Queiroz.
Análise do livro
O romance O crime do Padre Amaro está dividido em 25 capítulos e tem sua ação central na pacata cidade de Leiria, interior de Portugal, para onde Amaro, recém-saído do seminário, e a custo de manobras politicas, foi designado. A narrativa do romance se dá através de um narrador em terceira pessoa que tem ciência de todos os acontecimentos e de tudo que se passa nos pensamentos de cada personagem e que, portanto será de grande valia para o entendimento do leitor sobre as criticas anticlericais que abundam na obra.
No inicio do livro, e sem alarde, o narrador eciano promove a denúncia de uma conduta tão corriqueira quanto corrupta que era o fato de eclesiásticos fazerem uso de suas influências politicas para conseguirem favores. Amaro que era afilhado de uma marquesa acionou seus contatos em Lisboa para livrar-se de uma paróquia pobre para onde fora designado e se tornar padre em Leiria onde viveria melhor ou como dissera o narrador “queriam deixar a estreiteza do seminário para comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres.” (pag. 43).
Já estabelecido na cidade Leiria, Amaro foi morar na casa da S. Joaneira, que era amante de cónego Dias, que por sua vez foi professor de Amaro nos seus tempos de seminário. Ao descobrir que o Cónego Dias era amante da S. Joaneira, Amaro, ao invés de denunciá-lo aos seus superiores, prefere guardar esse segredo para depois negociar o silêncio do próprio Cónego sobre sua futura relação com Amélia.
Amaro não a sentia, caminhando depressa, cheio de uma só ideia deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o cónego era o amante da mãe! Imaginava já a boa vida escandalosa e regalada; enquanto em cima a grossa S. Joaneira beijocasse o seu cónego cheio de dificuldades asmáticas — Amélia desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias brancas, com um xale sobre os ombros nus... Com que frenesi a esperaria! E já não sentia por ela o mesmo amor sentimental, quase doloroso: agora a ideia muito magana dos dois padres e as duas concubinas, de panelinha, dava àquele homem amarrado pelos votos uma satisfação depravada! Ia aos pulinhos pela rua. (pag.135)
O fato de saber que o seu mestre, Cónego Dias, era amante da S. Joaneira, ao invés de causar-lhe horror e indignação - o que era de se esperar - pelo contrário, pareceu autorizá-lo a também ter uma vida conjugal com Amélia.
Amélia era a filha da S. Joaneira, dona da casa onde Amaro morava. Ao vê-la pela primeira vez o padre enamora-se, porém ela tem um noivo com quem pretende casar-se, apesar de não amá-lo. Sobre os sentimentos de Amélia em relação a João Eduardo, o narrador afirma: “Estimava-o, achava-o simpático, bom moço; poderia ser um bom marido; mas sentia dentro em si o coração adormecido".
João Eduardo percebe que o interesse de Amélia por Amaro e por isso tem um ataque de ciúmes, tanto ao ponto de escrever um maledicente artigo em que expõe as autoridades religiosas de Leiria. Em seu artigo ele escreve:
"... Mas o perigo são certos padres novos e ajanotados, párocos por influências de condes da capital, vivendo na intimidade das famílias de bem onde há donzelas inexperientes, e aproveitando-se da influência do seu sagrado ministério para lançar na alma da inocente a semente de chamas criminosas!"
Apesar de ser um personagem secundário, quase figurante, João Eduardo é voz anticlerical em O crime do Padre Amaro. É ele que expõe e denuncia o cotidiano hipócrita dos padres na cidade de Leiria, é ele que revela as pretensões de Amaro em relação à Amélia, e por fim, é ele que é escrachado por dizer a verdade.
Por todo o texto o narrador segue denunciando condutas contraditórias do clero católico, a gula, a maledicência, a avareza, os desejos carnais, são cometidos habitualmente por todos os padres e fiéis, todavia, mais grave do que o cometimento desses pecados habituais era o questionamento da própria doutrina cristã e dos dogmas católicos como o celibato.
Então, passeando excitado pelo quarto, levava as suas acusações mais longe, contra o Celibato e a Igreja: por que proibia ela aos seus sacerdotes, homens vivendo entre homens, a satisfação mais natural, que até têm os animais? Quem imagina que desde que um velho bispo diz — serás casto — a um homem novo e forte, o seu sangue vai subitamente esfriar-se? e que uma palavra latina — accedo — dita a tremer pelo seminarista assustado, será o bastante para conter para sempre a rebelião formidável do corpo? E quem inventou isto? Um concílio de bispos decrépitos, vindos do fundo dos seus claustros, da paz das suas escolas, mirrados como pergaminhos, inúteis como eunucos! Que sabiam eles da Natureza e das suas tentações?”(O crime do padre amaro, 205)”.
Eça de Queiroz empresta a voz de um sacerdote para questionar o celibato. Paradoxalmente o próprio Amaro, para quem os dogmas católicos deveriam ser inquestionáveis é quem, no alto de suas murmurações, levanta-se e indaga as contradições de uma fé que tenta silenciar os desejos naturais de um homem. Aqui se vê um autor que busca criticar não somente a conduta do clero e dos fiéis, mas também, e principalmente, desconstruir os fundamentos da fé cristã.
Outro aspecto importante e digno de registro é o apelo realista/naturalista existente na obra. Como se sabe a escola naturalista de caracteriza pela afirmação do conhecimento cientifico em detrimento da religiosidade que é considerada como insuficiente para responder as questões humanas.
O médico fala a Amélia: “Bem, bem, pequena, não te quero mal por isso. Estás na verdade. A natureza manda conceber, não manda casar. O casamento é uma fórmula administrativa...” (pag. ?) o que pode ser interpretado como a gestação é parte intrínseca da condição humana, já o casamento não passa de uma mera convenção social imposta por uma antiquada instituição religiosa.
A perspectiva do médico é totalmente cientifica e desapegada de qualquer fervor religioso, sem julgamentos ele vaticina que o destino natural de Amélia é ser mãe e que isso independe de sua religiosidade, ou seja, o cuidado com a natureza humana é importante, a religião, nem tanto.
Apesar de ser um personagem secundário, assim como João Eduardo, o médico que cuida de Amélia é uma voz que conduz importantes considerações sobre a conduta de padres e sobre questões sociais. Em determinado momento ele faz uma ponderação sobre a maneira como os jovens são conduzidos ao sacerdócio.
Em que consiste a educação dum sacerdote? Primo: em o preparar para o celibato e para a virgindade; isto é, para a supressão violenta dos sentimentos mais naturais. Secundo: em evitar todo o conhecimento e toda a ideia que seja capaz de abalar a fé católica; isto é, a supressão forçada do espírito de indagação e de exame, portanto de toda a ciência real e humana... (pag. 650)
O Crime do Padre Amaro foi o primeiro livro publicado de Eça de Queiroz, e também, o seu primeiro grito de ordem contra a religião. Pelo que se pôde observar a intenção de Eça não era tão somente criticar a conduta de determinados padres e fiéis da Igreja católica, na verdade para ele a igreja e todo o seu programa doutrinário seria em si um mal que precisava ser extraído da sociedade como um câncer deve ser eliminado de um corpo adoentado.
Conclusão
Uma das pretensões de Eça de Queiroz em O Crime do Padre Amaro era retirar o clero católico do pedestal de incorruptibilidade e inefabilidade ao qual foram alçados por conta do sacerdócio, e recolocá-los na condição de homens comuns, que sentem desejos, que são corruptíveis e falhos, para assim romper com a ideia de superioridade ossificada no imaginário popular.
O que aparenta ser um movimento simples, na verdade se converte em um grande ato de desconstrução da cristandade. Para além do que fizeram escritores do passado, Eça de Queiroz propõe uma nova forma de anticlericalismo, muito mais radical em seus termos, pois expõe não só a demagogia do clero e de fiéis, mas também apresenta os argumentos que fazem ruir a base sobre a qual está assentada toda a estrutura que suporta a instituição católica.
Enquanto os trovadores, humanistas e românticos criticavam as condutas pecaminosas de certos cristãos, Eça de Queiroz com seu Realismo/Naturalismo problematiza a própria índole eclesiástica. Ao contrário dos escritores de escolas anteriores em Eça de Queiroz haverá um anticlericalismo ateísta cujo único parâmetro para a verdade é a ciência.
O anticlericalismo de Eça de Queiroz, bem como o da geração de 70, se tornou uma tendência para a posteridade, encerrando um ciclo de escritos anticlericais de caráter reformista que ainda vislumbravam alguma possibilidade de melhoramento no estado de coisas do clero católico. Ainda hoje é sentida a influencia desse autor sobre o trabalho de escritores contemporâneos como José Saramago, por exemplo.
Nesse sentido é possível afirmar que o anticlericalismo na obra de Eça de Queiroz é muito mais radical que o anticlericalismo de seus antecessores, primeiro porque é um anticlericalismo ateísta, que, portanto, não tem compromisso com a fé cristã, segundo porque está ancorado no conhecimento cientifico como base de suas alegações, e terceiro porque não pretende reformar igreja, muito longe disso, o objetivo de Eça de Queiroz é jogar por terra tudo aquilo que se chama religião, pois a considera um atraso para o progresso da humanidade.