1/24/2012

A PERSPECTIVA ALENCARIANA DO CASAMENTO NAS OBRAS “A VIUVINHA” E “SENHORA”





Ezequias de Souza Corrêa[1
Lorenna Luanda da Rocha Braga[2]
Orientadora: Tânia Ataíde de Ataíde[3]


RESUMO
Este artigo dedica-se a apresentar a análise de duas obras do escritor José de Alencar que são, a saber: A viuvinha (1857) e Senhora (1875). Dentro destes romances será destacada uma das principais temáticas do autor: o casamento que pode ser visto como negócio (é o caso de Senhora), mas também pode ser entendido como expressão de um sentimento amoroso que supera qualquer provação, partindo de uma visão diacrônica o casamento será abordado de acordo com o contexto histórico do século XIX, época em que se deu a produção literária de José de Alencar.

Palavras-chaves: casamento; José de Alencar; A viuvinha; Senhora; Romantismo.


RÉSUME
Cet article est dedique à présenter l’analyse de deux ouvres d’écrivain José de Alencar qui sont “La petit veuve” (1857) et “La madame” (1875). Dans cettes oeuvres sera soulignée une dês principals témathiques d’auteur: Le mariage qui peut être voir comme negocie (c’est le cas de “La madame”), mais aussi Il peut être entendu comme expression d’um sentiment amoureux qui supere quelque provation, em partant d’une vision diacronique Le mariage sera commenté d’accord avec Le contexte historique Du siècle XIX, l’époque qui s’a donné la production littéraire de José de Alencar.

Mots-clés: Le mariage; José deAlencar; La petit veuve; La madame; Le Romantisme.
 

INTRODUÇÃO
José de Alencar é o principal romancista da escola Romântica no Brasil e o mais celebrado de todos os prosadores desse período. Ele é também o introdutor dos romances urbanos e, por essas razões, inscreve-se como sendo um dos maiores nomes da Literatura Brasileira. As duas obras de Alencar a serem analisadas são, a saber: A Viuvinha (1857) e Senhora (1875), ambas fazem parte do conjunto de romances urbanos. 

A escolha destas duas obras para análise foi realizada a partir do seguinte critério: em A Viuvinha temos uma trama cujo tema principal é o casamento e a honra; já em Senhora temos o amor como tema central, todavia haverá o elemento “vingança” que fará o diferencial nesta trama, colocando o casamento na condição de mecanismo ou instrumento de vingança.

Para fundamentar este artigo científico foi essencial que se recorresse aos críticos literários que estudaram a fundo o Romantismo no Brasil, como Douglas Tufano (que prefaciou a segunda edição de “A Viuvinha” publicada pela editora moderna) e também Márcia Kupstas (que assinou as notas de rodapé desta mesma edição). Para analise do romance “Senhora” foi necessário lançar mão de autores como Massaud Moisés com sua renomada obra “A historia da literatura brasileira” e Arnold Hauser em “História Social da Arte e da Literatura”

Este artigo tem por finalidade trazer à luz a perspectiva Romântica do casamento, segundo as diversas possibilidades colocadas por José de Alencar nas duas obras a serem estudadas. Para tanto, é fundamental analisá-las a partir do período em que foram criadas, revelando assim os diversos olhares do autor.

1.      ALENCAR: UM HOMEM DE SEU TEMPO
Com a ascensão da classe burguesa ao poder, deu-se em diversos países europeus a formação de um verdadeiro público leitor, coisa que até então não havia dentro das antigas estruturas sociais. Tratava-se, particularmente das donas de casa, mulheres de comerciantes e principalmente jovens sem qualquer preocupação que para fugir do tédio cotidiano recorriam aos romances Românticos que eram publicados diariamente e por vezes semanalmente nos famosos folhetins que acompanhavam as edições de jornais do século XIX. Sobre isso, Douglas Tufano declara (2004:7):

“a cidade da corte, formou-se um publico leitor composto basicamente de jovens da classe rica, cujo ócio permitia a leitura de romances e folhetins. Esse público buscava na literatura apenas distração”

A formação dessa classe de leitores foi ao mesmo tempo o resultado e a força motriz que impulsionou uma literatura que se desenvolvia e que se popularizava a medida que se enriquecia nos lugares que alcançava. Os autores, conscientes ou não do papel de construtores dessa literatura canalizaram todo o seu poder criativo em favor da emancipação de uma arte que abordasse temas que afetassem diretamente o seu público leitor expondo histórias que tivessem haver com o seu cotidiano, seus conflitos pessoais, seus anseios mais profundos, suas frustrações, e, principalmente, que se estreitasse  com suas vidas.

Se nas demais escolas literárias anteriores ao Romantismo os temas abordados diferiam dos temas Românticos é porque elas, assim como qualquer movimento literário, refletiam o contexto histórico quando de seu surgimento. No Barroco, por exemplo, tem-se como uma de suas principais características o dualismo, que no plano ideológico refletia o conflito do homem seiscentista em face do embate entre a visão teocêntrica e antropocêntrica do universo.

No Romantismo não haverá tão somente a influência dos acontecimentos sobre as criações artísticas, mas também a busca da representação da sociedade que vivencia este momento, como Hauser afirma, “o movimento romântico é o primeiro a aceitar como ponto pacífico que o burguês é a medida do homem” (p. 676). Um exemplo bem claro são os romances urbanos que se popularizaram por esse período por meio dos folhetins.

Ainda Hauser diz:
“Pois o romantismo era essencialmente um movimento burguês; na verdade, era a escola literária burguesa por excelência, a escola que abolira para sempre as convenções do classicismo, a retórica e as presunções palaciano-aristocráticas, o estilo elevado e a linguagem refinada.” (p. 675-676)


Os temas mais recorrentes nas criações dessa época são em regras gerais: o casamento, amores impossíveis e amores não-correspondidos, mas de todos eles o que mais se evidencia na obra de José de Alencar é o casamento, mais especificamente o casamento burguês, cristão e ainda atrelado aos valores morais aristocráticos.

1.1   O CASAMENTO NO ROMANCE URBANO “A VIUVINHA”

No romance A Viuvinha o casamento é tomado como mecanismo de redenção, pois Jorge que outrora vivia uma existência errante e desregrada, gastando a fortuna que seu pai lhe deixou com jantares amantes e toda sorte de vaidades, procurou redimir-se e esquecer os erros do passado encontrando no matrimonio um ato de purificação ou mesmo de reinvenção.

“Jorge esperava apenas esquecer de todo a sua vida passada, apagar completamente os vestígios desses tempos de loucura, para casar-se com aquela menina, e dar-lhe a sua alma pura e sem mancha” (P.18)

Sobre essa mudança no comportamento de Jorge que ao abandonar uma vida de devassidão, entrega-se ao amor casto e sem mancha, esta atitude de acordo com o narrador pode ser justificada com o seguinte trecho da narração:

“Felizmente, como quase sempre sucede, no meio das sensações materiais, a alma se conservara pura: envolta ainda na sua virgindade primitiva, dormira todo o tempo em que a vida parecia ter se concentrado nos sentidos, e só despertou quando, fatigado pelo excesso do prazer, gasto pelas emoções repetidas de uma existência desregrada, o moço sentiu o tédio e o aborrecimento, que é a última fase dessa embriaguez do espírito” (P.18)

É como se no interior do personagem se processasse uma espécie de contradição entre as atitudes desregradas e uma alma que se mantinha pura para o dia do enlace amoroso que seria a realização derradeira de um desejo de felicidade que se consagraria com o casamento.

Para Carolina data mais notável que o casamento, pois nele espera-se o cumprimento dos anseios de toda uma vida. Não há data mais importante para mulher do que o dia de unir-se à pessoa amada. Basta observar as palavras descritas pelo narrador:

“Nele se passa o maior acontecimento da sua vida; ou realiza-se um sonho de ventura, ou murcha para sempre um esperança querida que se guarda no fundo do coração; pode Sr o dia da felicidade ou da desgraça, mas é sempre uma data notável no livro da vida ” (p.20)

Depois de descobrir que estava falido, Jorge viu-se na impossibilidade de concretizar o casamento com Carolina, tudo porque se via na obrigação de contar a mãe da moça sobre sua situação financeira, todavia se ele abandonasse o compromisso traria desonra à moça:

“O seu casamento, pois, não podia mais efetuar-se; o seu dever, a sua lealdade, exigiam que confessasse a D. Maria e á sua filha as razões que tornavam impossível essa união” (p.27)

A gravidade do fato pode ser entendida por um viés histórico. Por isso se faz necessário atentar para as palavras de Márcia kupstas: “os padrões morais do século XIX eram bastantes rígidos. O rompimento de um noivado constituía u8ma vergonha a estigmatizar a moça solteira” (p.27)

Como final feliz dessa historia de amor e de abnegação, Jorge consegue restituir o dinheiro perdido e principalmente reconquista o matrimonio com Carolina, que passara tanto tempo a espera de seu único e verdadeiro amor. É importante atentar para o fato de que Carolina é marcada por uma característica peculiar às personagens românticas que é justamente esse caráter excepcional do amor único. Basta observar:

“-Parece-lhe ridículo esse sentimento: não é assim? Mas foi o primeiro, cuidei que fosse o ultimo. Deus não permitiu!... e por isso às vezes julgo que cometo um crime aceitando outra afeição... devo ser fiel a sua memória!... quem me diz que um remorso não envergonhara a minha existência, que a imagem dele não virá constantemente colocar-se entre mim e aquele que amar-me ainda neste mundo?... ambos desgraçados” (p.61)

Sobre este trecho, Márcia Kupstas, escreve: “observe a intensidade dramática dessa fala. O caráter excepcional do amor único marca uma personagem idealizada, típica no romantismo” (p.61)

Ao se debruçar pelas paginas do romance A Viuvinha, o leitor irá perceber o espírito enlevado dos personagens, o amor superando todas as barreiras e o casamento como final feliz desta magnífica história. Estes exemplos muito recorrentes na trama são características intrínsecas da escola Romântica e da obra de José de Alencar.

1.2 O CASAMENTO NO ROMANCE URBANO “SENHORA”

Nos países europeus, o resgate dos ideais cavalheirescos e das tradições da Idade Média (que seriam a origem da noção de honra e de amor à pátria que fortaleceriam a identidade nacional) foi o meio pelo qual os autores da escola romântica utilizaram para resgatar ou reinventar o passado histórico nacional. 

O exemplo dos países europeus, o movimento romântico no Brasil assumiu um caráter nacionalista, ligado a luta antiescravista, colocando o branco europeu como vilão, colonizador e opressor. Os intelectuais dessa época assumiram o compromisso de forjar uma identidade nacional a partir da exaltação da figura do índio idealizado como herói nacional.

Além de cantar sua terra, José de Alencar também criticou os costumes da sociedade burguesa daquele século. Ao mesmo tempo, retratava o cotidiano das senhoras num estilo capaz de chamar-lhes atenção, utilizando uma linguagem rebuscada que enriquecia seus textos. Era comum entre os românticos essa incoerência, pois, ao mesmo tempo em que rebaixa, louva. Hauser comenta:

“O romântico, era incapaz de comprometer-se e sentia-se exposto, indefeso, a uma realidade esmagadoramente poderosa; daí o seu desdém pela realidade e seu simultâneo endeusamento da mesma. Ou a violava, ou rendia-se-lhe cegamente e sem resistência, mas nunca se sentia em pé de igualdade com ela.” (p. 673)

Um dos temas que é bastante criticado por Alencar no livro “Senhora” é o casamento. Para o autor, que às vezes nitidamente tem voz na narrativa, o casamento não era mais a união de um casal por amor e/ou para o amor. Era apenas uma transação, um negócio lucrativo. Desde a escolha dos capítulos, Alencar enfatiza o casamento como um negócio: O preço, Quitação, Posse e Resgate são passos que devem ser tomados por todos aqueles que efetuam um negócio lucrativo.

A história é narrada em media res, isto quer dizer que ela inicia no meio da ação: Aurélia Camargo já é uma moça rica e a mais cobiçada da sociedade fluminense. Mora com uma parenta e tem como tutor seu tio (Lemos). Naquela época, a família era constituída por pais, filhos, tios e primas solteiras. A mulher não podia morar sozinha por conta dos preceitos ainda machistas. Alencar, sobre a parenta de Aurélia comenta:

“Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda, para condescender com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha admitido ainda certa emancipação feminina.
Guardando com a viúva as deferências devidas à idade, a moça não declinava um instante do firme propósito de governar sua casa e dirigir suas ações como entendesse.” (p.17)

Machista, diacronicamente falando, era a visão das próprias mulheres, que criticavam todos os modos desenvoltos de Aurélia (p.19). O narrador também, ao tratar em vários trechos sobre os costumes da época em que a mulher utilizava o cérebro – “onde residem as faculdades especulativas do homem” (p. 29) - ao invés do coração, seu foco natural. É importante tratar disto neste artigo porque a partir do papel da mulher aqui colocado, pode-se entender como funcionava o casamento no século XIX. Como se vê no fragmento abaixo do romance:

“Felizmente D. Camila tinha dado a suas filhas a mesma vigorosa educação que recebera, antiga educação brasileira, já bem rara em nossos dias, que, se não fazia donzelas românticas, preparava a mulher para as sublimes abnegações que protegem a família e fazem da humilde casa um santuário” (p. 42)

Nota-se um cuidado no preparo da mulher para os afazeres domésticos, quando não se proporcionava a elas serem românticas. 

As mulheres se casavam cedo, e, quando passavam da idade (mais ou menos 22 anos) já estavam condenadas ao “aleijão social, que se chama celibato” (p. 42). Aquelas que conseguiam, tratavam do assunto seriamente já no namoro. Como já se sabe Aurélia não foi criada como uma donzela romântica, mas ajudava sua mãe em casa. Numa conversa entre mãe e filha, onde a primeira enaltece a beleza da segunda, uma resposta muito incomum do que se esperava de uma mulher na idade de Aurélia é dada: “Casamento e mortalha no céu se talham” (p. 83).

Entretanto, quando a personagem estava só, pensava no assunto:

“O casamento, quando acontecia pensar nele alguma vez, apresentava-se a seu espírito como uma coisa confusa e obscura; uma espécie de enigma, do seio do qual se desdobrava de repente um céu esplêndido que a envolvia, inundando-a de felicidade” (p. 84).

    Percebe-se a magia envolta do assunto até por quem tinha características de mulher mais liberta dos conceitos vigentes.

    Aurélia havia prometido a sua mãe que o primeiro que a pedisse em namoro aceitaria para amenizar a angústia em não vê-la casada. Contudo, recusa o primeiro pretendente, Torquato Ribeiro, por conta do amor que sente por Seixas. Aqui o casamento adquire um novo conceito: o do enlace romântico e da felicidade eterna.

    Antes do matrimônio se concretizar existia uma fase anterior, a do namoro. No século XIX “o namoro existia enquanto estratégia de sedução. Numa outra perspectiva, como forma de alcançar o casamento, a respeitabilidade e a aceitação sociais”. Aurélia se encantou por Fernando desde a primeira vez que o viu. O namoro começava à distância, nas cumplicidades da janela da casa da moça; depois, o pretendente passou a freqüentar a casa da menina, sempre vigiados pela mãe de Aurélia. Ainda:

“O namoro correspondia a uma fase preliminar cuja seqüência última, já oportunamente o dissemos, finalizava no matrimônio, procurando-se, quantas vezes, através deste meio ascender social e economicamente. Daí que o casamento não significasse, na maior parte dos casos, o culminar lógico de uma relação de amor, mas a confluência de interesses familiares”.

    O trecho acima faz lembrar Seixas. Ele estava encantado por Aurélia, como todos os outros homens e era como honra ser o escolhido entre todos. Porém, quando pediu a mão de Aurélia nem pensou nas conseqüências imediatamente. Todavia, por ser um homem que freqüentava a alta sociedade, passou a raciocinar logo após o pedido sobre as conseqüências do casamento com uma moça pobre: não se vive de amor, mas de dinheiro. Assim, entre a afeição e as conveniências, o amor e o interesse, Seixas preferiu o segundo:

“Calculou os encargos materiais a que ia sujeitar-se montar casa e mantê-la com decência... O casamento visto por esse prisma aparecia-lhe como um degredo, que inspirava-lhe indefinível terror”. (p.94)

    Apesar de já ter dado sua palavra, Fernando voltou atrás para casar-se com outra que tinha dotes para lhe dar. Para ele, retirar sem motivo uma promessa formal de casamento era algo muito grave que desairava um cavalheiro. Mas:

“Quando Seixas convenceu-se que não podia casar com Aurélia, revoltou-se contra si próprio. Não se perdoava a imprudência de apaixonar-se por uma moça pobre e quase órfã, imprudência a que pusera remate o pedido de casamento. O rompimento deste enlace irrefletido era para ele uma coisa irremediável, fatal, mas o seu procedimento o indignava”. (p.94)

    Aurélia foi poupada de uma vida sem elegâncias, porém sofreu a pior das dores: a do amor. Das vezes que se lembrava de Seixas e de como ele lhe havia poupado de casar com Torquato por conveniência, agradecia. Mas para Seixas “o casamento, desde que lhe não trouxesse posição brilhante e riqueza, era para ele nada menos que um desastre” (p.100). Por isso, comprometeu-se com Adelaide Amaral, pois o pai da moça lhe havia prometido 30 contos de réis. Porém, “já sabia que a moça rica é um arranjo e não uma esposa” (p.110).

Enquanto Seixas pensava no casamento como um meio de ascensão social, Aurélia prefere vê-lo como a unidade do amor. Moisés (2007), sobre isso diz que o casamento ficava entre o dinheiro e o sentimento:

“Aurélia prefere o segundo ao primeiro, como típica romântica adolescente que é, mas vale-se daquele para obter esse, o que continua a circunscrevê-la ao mesmo âmbito moral, e assim o dinheiro acabava impondo o valor que o espírito burguês lhe atribuía.” (p.151)

Quando Aurélia ascendeu economicamente pode vingar-se de Seixas, comprando-o por 100 contos de réis sem que ele sequer soubesse quem era a mulher que oferecia o valor considerável. Já na câmara nupcial, Aurélia pode desabar: “estamos quites, e posso chamá-lo meu, meu marido, pois é este o nome de convenção” (p.111). Nada mais humilhante para um homem como Seixas.

O narrador também opina sobre o casamento. Para ele:

“O casamento é geralmente considerado como a iniciação do mancebo na realidade da vida. Ele prepara a família, a maior e mais séria de todas as responsabilidades. Atualmente esse ato solene tem se perdido muito da sua importância; indivíduo há que se casa com a mesma consciência e serenidade, com que o viajante aposenta-se em uma hospedaria” (p.132).

    Nota-se a crítica direta aos valores que estavam sendo mudados. Entretanto, anterior ao casamento, Aurélia fez – como o costume ditava – o enxoval da casa: “que horas encantadoras passara ali nos dias que precederam a cerimônia, quando ocupava-se com o preparo e adereço desses aposentos, destinados ao homem a quem ia unir-se para sempre...” (p. 135). Segundo Barreira:

“A noiva abastecia a casa de roupas e pequenos utensílios domésticos que integravam um enxoval cuidadosamente preparado ao longo dos anos. Várias superstições envolviam o casamento.”

    Seixas e Aurélia são um casal de aparências. Fora de casa são perfeitos, cheios de graça, de amor, de cumplicidade. Dentro, alfinetam-se ironicamente e ao mesmo nível. Aurélia não se submete como se cria no século XIX. Barreira cita que:

 “Júlio Dantas, já em 1922 na arte de amar, recomendava ao recém-casado que educasse a mulher, como a um primeiro filho, no respeito pelas coisas sagradas. E acrescentava: ‘Não há felicidade no casamento, quando a mulher não reconhece a superioridade do marido’.”

    Assim, o casal sobrevive por um ano, quando os dois novamente começam a deixar o orgulho de lado e voltam a se tratar como amantes. O amor supera o dinheiro, típico do Romantismo. Moisés (2007) bem finaliza:

“Em suma: combinam-se personagens ou interesses com exclusivo objetivo do casamento, como se outra meta existencial não se divisasse no horizonte. Assim, a própria ideologia burguesa, a que pertencia Alencar, condicionava o elogio do processo preservador das conveniências: a família organizada com base no casamento, e este no dinheiro, em torno de que tudo gravita inclusive a honra” (p. 392).

    Na perspectiva Alencariana a felicidade humana só é possível com a completude do casamento e este e viável com a condição financeira que subsidiará o casal. Não à toa, Fernando e Aurélia resistem a todas as provações e finalmente rendem-se ao poder curador do amor e ao conforto que o dinheiro pode dar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

    Tanto em “A Viuvinha”, quanto em “Senhora” o casamento exerce papel fundamental no desenrolar da trama. Em “A Viuvinha ” a descoberta da falência financeira de Jorge o leva a romper o casamento com Carolina. Já em “Senhora” o casamento é usado como instrumento de vingança em favor de Aurélia Camargo contra Fernando que a deixou por razões financeiras.

    Diante desse quadro é possível enxergar duas visões a respeito do casamento. José de Alencar faz uso no romance “A Viuvinha” de uma perspectiva do casamento nos moldes românticos, pois Carolina e Jorge casam-se porque estão apaixonados e não há nenhuma outra razão que justifique o matrimônio. Em “Senhora”, todavia, o casamento é para Aurélia Camargo um meio de possuir a Seixas para dele se vingar.

    Em Senhora o tema máximo da escola Romântica – o amor – está presente, todavia, atrelado a um forte desejo de vingança que culminará na realização amorosa de Seixas e de Aurélia. O desejo de casamento por parte de Seixas acontece por status, ficando em segundo plano o amor. Já Aurélia parte da vingança para a realização primeira do seu sonho de casar com quem realmente ama.

    Inicialmente, no namoro, o dinheiro – ou melhor, a falta dele – é motivo de separação do casal. Como bem se sabe, Fernando prefere uma boa vida que uma união sem grandes perspectivas financeiras, ou seja, uma existência que o arrancasse da cômoda vida de freqüentador da alta sociedade burguesa. Aurélia, entretanto, como mulher que sofre pelo amor perdido, não vê cabimento na atitude de Seixas ao preferir outra que ele nunca amou, do que a ela a quem sempre quis.

    O dinheiro, que antes separou o casal, agora os une: a felicidade de Seixas ao saber que unirá o útil ao agradável casando com a mulher que ama e tendo status o atrai imensamente. Fernando é um homem egoísta. Ele se casa primeiramente pensando no seu bem-estar e não em Aurélia. Por sua vez, a protagonista faz uso do seu dinheiro para possuir o homem amado, tendo um matrimônio forjado em um sentimento de vingança, mas também de amor.

    Por razões diferenciadas, Fernando e Aurélia unem-se em matrimônio. Ela, para possuir e vingar-se da pessoa amada. Ele, para ascender socialmente e desfrutar o casamento com seu verdadeiro amor. Os desejos de um e de outro se confrontarão até que o amor verdadeiro vencerá todas as diferenças e converterá o casamento em uma união feliz ao modo Alencariano.

    No romance “Senhora” José de Alencar abandona de certa forma as convenções platônicas muito características nos personagens românticos e parte para uma visão mais realista da condição social dos protagonistas Aurélia e Fernando, que são menos idealizados do que Jorge e Carolina, por exemplo. Faraco adverte que se José de Alencar não tivesse falecido se tornaria o fundador do Realismo no Brasil

“Alencar não teve tempo de passar do quinto capitulo da obra que lhe teria garantido o lugar de primeiro escritor do Realismo brasileiro.” (p.22)

    A obra a que Faraco (apud. Alencar, 2002) se refere é Exhomem, romance que assinaria sob o pseudônimo de Synerius onde se mostraria contrário ao celibato clerical (tema muito recorrente por aquele período), mas que infelizmente não chegou a concluir por conta de seu falecimento. Isto reforça a idéia do surgimento de inclinações Realistas dentro do romance “Senhora”.


REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de. A pata da Gazela. São Paulo: Ática, 2002.
________. A Viuvinha. 2.ed. São Paulo: Moderna, 2004.
________. Senhora. 34.ed. Rio de Janeiro: Ática, 2003.
BARREIRA, Cecília. “O casamento e a família” Pesquisado em 02 de fevereiro de 2011 às 14:11h. Disponível em .
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura.
MOISÉS, Massaud. História da Literatura Brasileira: das origens ao Romantismo. 6. Ed. São Paulo: Cultrix. P. 391-392
MOISÉS, Massaud. A Literatura Brasileira através dos textos. 26.ed. São Paulo: Cultrix, 2007. P.151



1/22/2012

ANÁLISE DO ROMANCE “A HORA DA ESTRELA”, DE CLARICE LISPECTOR, A PARTIR DE UMA VISÃO DA PSICOLOGIA


I- INTRODUÇÃO

O romance “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector é a obra que será analisada a seguir. A análise está dividida em duas partes: a primeira abrange os elementos que compõem a narrativa, subdividindo-se em: enredo, narrador, personagens, espaço, ambiente, tema, assunto e mensagem. A segunda parte traça um paralelo entre o texto de René Wellek “A Literatura e a psicologia” com o romance em questão, que começa quando o narrador chamado Rodrigo S. M., andando pela rua consegue captar o olhar de desespero de uma jovem nordestina no meio da multidão. A partir daí, nasce Macabéa, que é na verdade a representação de toda a miséria e alienação inerente ao narrador e a todas as pessoas. 

    Em uma relação de amor e ódio, Rodrigo S. M. narra a vida dessa moça como tentativa de se livrar da sensação de mal-estar que ela representa e que o contagiava, ao mesmo tempo em que tem piedade e se revolta, inclusive se sentindo culpado por viver num padrão de vida mais elevado que a maioria da população marginalizada. Dessa forma íntima, o leitor também se coloca no lugar do outro para experimentar essa miséria e percebe que no fundo, todos nós temos alguma coisa de Macabéa.

II- ANÁLISE DOS ELEMENTOS QUE COMPÕEM A NARRATIVA DO ROMANCE “A HORA DA ESTRELA”, DE CLARICE LISPECTOR

2.1- ENREDO

    De acordo com Heraldo Chacon, “A Hora da Estrela” apresenta dois relatos. Nota-se que eles se interligam, não sendo possível separá-los, pois o livro nem mesmo tem divisão por capítulos. O primeiro deles é o da nordestina Macabéa, moça magrela e pobre de tudo, pois, além de dinheiro, lhe faltava inteligência, esperteza e auto-estima. Perde os pais muito cedo e logo passa a ser criada por uma tia que lhe trata mal. Quando a tia morre, ela passa a morar com quatro moças que dividem um quarto. 

    Um dia, Macabéa conhece Olímpico, também nordestino, e começam a namorar. Ele, ao contrário de Macabéa fala bem, é metido, convencido e pensa no seu futuro, sonhando se tornar deputado. Mas Olímpico rompe o namoro com a nordestina para ficar com Glória, colega de trabalho da mesma. Glória, talvez por remorso de ter roubado o namorado de Macabéa, aconselha-a procurar uma cartomante, madama Carlota, que prevê um futuro grandioso e feliz para a pobre nordestina, que, ao contrário, é atropelada por um Mercedes, morrendo logo em seguida no local.

    O segundo relato faz o leitor acompanhar o processo da escrita do romance, pois o narrador-personagem evidencia seus sentimentos ao narrar a vida de Macabéa como tentativa de se livrar da sensação de mal-estar que ela representa e que o contagia. Pela forma de narração que há na obra, dá a aparência de não ser o tipo de escritor que trabalha de forma preestabelecida, mas que vai deixando as personagens brotarem e crescerem como se parte disso fosse ação delas próprias, chegando ao ponto de influenciar o pseudo-autor, mexendo com suas emoções, com seus sentimentos.

2.2- PERSONAGENS

2.2.1 – RODRIGO S.M.

    É o pseudo-autor e narrador do relato. Apresenta-se como profissional escritor. É um narrador intruso, por isso (e também por revelar seus sentimentos) torna-se uma das personagens. É o primeiro narrador masculino na obra de Clarice. Ele questiona o tempo inteiro o seu modo de narrar, o seu estilo, a sua capacidade de compreender Macabéa. Em última instância, o que ele procura é desvendar o significado da literatura e da existência.

“E ouço passos cadenciados na rua. Tenho um arrepio de medo. Ainda bem que o que vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim” (pg. 20).

2.2.2 – MACABÉA

    É a protagonista da história. É pobre, magra, alagoana, mas que passa a morar no Rio de Janeiro com a tia, que morre em seguida. Trabalha como datilógrafa. Gosta de coca-cola, fã de Marilyn Monroe, sonha em ser estrela de cinema e escuta a Rádio-Relógio. É feia, cheira mal por não gostar de tomar banho e é (e morre) virgem. Não tem auto-estima, inteligência e esperteza. É uma jovem sem qualquer tipo de vida interior, sem futuro e com um passado inexpressivo, quase cretina.

“A datilógrafa vivia numa espécie de atordoado nimbo, entre o céu e inferno. Nunca pensara em “eu sou eu”” (pg. 36).

2.2.3 – OLÍMPICO

    Nordestino que veio do sertão da Paraíba por ter matado um homem. É bem falante, metido, convencido, vaidoso, usa dente de ouro e trabalha numa metalúrgica. Trata sempre mal sua namorada, que, por medo de perdê-lo sempre se desculpa quando deveria ser o contrário.

   “E não é que ele dava para fazer discurso? Tinha o tom cantado e o palavreado seboso, próprio para que abre a boca e fala pedindo e ordenando os direitos do homem” (pg. 46).

2.2.4 – GLÓRIA

Colega de trabalho de Macabéa. É carioca, filha de um açougueiro, gorda, branca e cabelos crespos e pretos que ela oxigenava sempre. Um adágio popular que caracterizaria bem sua relação com Macabéa é: “quem tem uma amiga dessas não precisa de uma inimiga”, pois ela acaba ficando com o namorado de Macabéa e a recomenda ir a uma cartomante, e a nordestina, ao sair da casa da adivinha, acaba morrendo.

“O fato de ser carioca tornava-a pertencente ao ambicioso clã do sul do país. Vendo-a, ele logo adivinhou que, apesar de feia, Glória era bem alimentada.” (pg. 59).

2.2.5 – CARLOTA

Vidente, cartomante, ex-prostituta, ex-cafetina e gorda. Quando Macabéa foi visitá-la, tratou-a com um carinho excessivo, que não era comum à nordestina.

“... então caí na vida. E gostei porque sou uma pessoa muito carinhosa, tinha carinho por todos os homens” (pg. 74).

2.2.6 – RAIMUNDO SILVEIRA

Chefe do escritório em que Macabéa trabalha. Tenta demitir Macabéa por ter muitos erros de ortografia e sujar os papéis nos quais datilografava, mas acaba admitindo-a de volta (pg. 25).

2.3 – NARRADOR

Em relação à história da vida de Macabéa, ele está em terceira pessoa. É um narrador de onisciência relativa, que, hora sabe o que se passa pela cabeça da nordestina, hora apresenta insegurança no que diz. Mas há uma narrativa à parte, feita em primeira pessoa por Rodrigo S. M., que se mostra tanto como pessoa quanto como profissional. Assim, o narrador se manifesta, no decorrer da história, de três formas: através de um monólogo e reflexão, conta e descreve de forma simples o que acontece e valoriza o discurso direto.

2.4 – TEMPO

É psicológico, pois há uma análise psicológica mais aprofundada dos personagens, que revela, por meio da narrativa interior, o fluxo da consciência e o intimismo.

2.5 – ESPAÇO

A história acontece no Rio de Janeiro, destacando-se os seguintes espaços: quarto em que Macabéa mora com as Marias, escritório em que trabalha, apartamento da cartomante, rua do Acre, cais do Porto, zoológico. Há também referências a Maceió e Recife, onde respectivamente passaram a infância Macabéa e Rodrigo, o narrador.

2.6 – AMBIENTE

Pobre, seco, ininteligível, frio – no sentido de isenção de paixão, insensível, indiferente – desinteressante, morto. O ambiente é, na verdade, uma descrição de Macabéa. Parece que em todo o espaço que a nordestina visita há penetração de suas características, além das angústias da vida da protagonista que atingem o pseudo-autor.

2.7 – TEMA

    A alienação

2.8 – ASSUNTO

    A vida sem questionamentos

2.9 – MENSAGEM

    Há pessoas que são infelizes por não saberem o verdadeiro sentido da felicidade.

III – ANÁLISE FEITA ATRAVÉS DE UM PARALELO TRAÇADO ENTRE O TEXTO DE RENÉ WELLEK “LITERATURA E PSICOLOGIA”, E “A HORA DA ESTRELA”, OBRA DE CLARICE LISPECTOR.

    O texto de René Wellek enfatiza as várias teorias que pertencem efetivamente à psicologia do escritor, ao seu processo criativo e aos estudos dos tipos de leis psicológicas presentes em obras literárias. Assim, pode-se traçar uma relação entre o texto “A Literatura e a Psicologia” e o romance “A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector.

    Se Clarice Lispector fosse vista de acordo com a concepção antiga, o “dom” de escrever seria dado a ela como uma compensação de um problema físico que possuía (que era a língua “presa”).

    Na visão de Freud, o escritor não é inteiramente estável, o que é evidenciado no romance, pois, quanto ao estilo, que se tornou contrário da maior parte das suas obras anteriores, é marcado por uma preocupação narrativa de caráter mais objetivo, situando a personagem em seus hábitos, seu espaço social, seu ideário romântico.

    Ainda Freud dizia que o artista molda as suas fantasias em um novo tipo de realidade; o artista tem medo de alterar o mundo exterior, daí ele passa para a arte tudo aquilo que sente, como por exemplo, a protagonista do romance, Macabéa, que possui, de acordo com Clarice, uma certa imunidade às malícias da vida, sendo que todos deveriam ter um pouco desta inocência cultivada.

    Para Erich Jaensch, o artista sente e até vê seus pensamentos. Rodrigo S. M., pseudo-autor e narrador do relato tem uma estrita vinculação com Clarice. Ambos se confundem. São um só e, ao mesmo tempo, são diferentes. Rodrigo S. M. representa uma outra forma de ser e de escrever de Clarice, um desdobramento do próprio eu da escritora, uma espécie de heterônimo. Assim, o pensamento da autora se projeta no pensamento de Rodrigo S. M., como se nota no seguinte recorte: “se sei quase tudo de Macabéa é que já peguei de relance o olhar de uma nordestina amarelada. Esse relance me deu ela de corpo inteiro” (pg. 57).

    Na obra, o narrador-personagem tem o intuito de narrar a história sem sentimentalismo, pois o fato da autora ter criado um narrador masculino, é para que ele não relate com comoção Macabéa, e dê a ela um final feliz: “também eu não faço a menor falta, e até o que escrevo, um outro escreveria. Um outro escritor sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas” (pg. 14).

    Há também o uso contínuo de sinestesia (mistura de sensações) para expressar suas impressões: “sim, talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó” (pg. 20).

    O psicanalista Carl Jung faz uma reformulação da tese junguiana de que, por baixo do “inconsciente” individual, encontra-se o “inconsciente coletivo”. Este “inconsciente coletivo” é posto em prática quando se é contada a história de Macabéa, por isso, Eduardo Portela ao prefaciar o livro, nota muito bem que a protagonista representa bem mais, ela é todo um grupo social: “a moça alagoana é um substantivo coletivo”. Pensa-se que a história realmente aconteceu, pois é isso que Rodrigo S. M. diz no seu relato: “... é claro que a história é verdadeira embora inventada” (pg. 12). A idéia de que este fato é verdadeiro está atrelado ao fato de que existem pessoas com dificuldades de encontrar um lugar na sociedade, além da denúncia de exploração e desumanidade do mundo urbano contra o imigrante nordestino. Tudo isso é narrado pela autora para que muitos se identifiquem com Macabéa e acreditem que ela realmente existiu.

    Sem dúvida a escritora Clarice Lispector se encaixa na visão de Kretschmer, como o “possuído”, isto é, o poeta automático, obsessivo ou profético. É marcante nos textos de Clarice a postura e a linguagem poética. A poesia vem da relação afetiva que se estabelece entre o triângulo leitor/narrador/protagonista e no caráter sugestivo da linguagem que evita a objetividade referencial, optando pela tentativa de captação da magia da vida pelas palavras e expressões que apenas tangenciam o concreto para atingir o essencial que é intangível à palma da mão, como diz Drummond. Exemplos disso: “sim, talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó” (pg. 20). “Pois, na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes” (pg. 29). “E então – então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida come a vida” (pg. 89).

    Para o psicólogo francês Ribot, o “difluente” (possuído) é o poeta que parte das suas próprias emoções e sentimentos, e, de acordo com Geraldo Chacon, Clarice deixava correr seu pensamento, seus sentimentos, suas reflexões, suas sensações, numa magia que parte do banal cotidiano, mas dele escapa, atingindo uma rara epifania*.

    Em relação ao processo criativo, à maneira de Dilthey, embora insatisfatória, revela-se algo sobre a autora. Para ele, “o autor é um “artífice” de poemas, mas as matérias dos seus poemas é toda a sua vida percipiente; ele não acumula nenhuma experiência insipiente”. Isso se remete aos acervos de Clarice, o qual revela a autobiografia da escritora como fator marcante de suas personagens, que se evidencia na tentativa da autora de fugir da sufocante introspecção das obras anteriores, como ela mesma revela: “não agüento ser apenas mim, preciso dos outros para me manter em pé...” criando um romance que tem alguma abertura para o mundo exterior. As circunstâncias históricas também podem a ter levado a produzir algo mais social, embora não seja a dimensão mais valiosa do texto.

    Outra afirmação contida no texto “A Literatura e a Psicologia” é que “nos tempos modernos, sentimos a inspiração como algo que possui as marcas essenciais do repentino (como a conversão) e do impessoal: a obra parece escrita através de nós”. De acordo com Olga Borelli, melhor amiga de Clarice, em qualquer lugar que a escritora estivesse e lhe viesse um pensamento, anotava para não esquecê-lo e acabava por utilizá-los em suas obras.

    Quanto aos rituais praticados por escritores para induzir o estado criativo, assim como a tradição romântica wordsworthiana, que exalta a manhã, nossa autora preferia escrever bem cedo, como revelou em sua última entrevista dada à TV Cultura. Porém, acrescentou que em qualquer horário poderia escrever. Rodrigo S. M. também teve um ritual para poder escrever sobre Macabéa: “para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias para adquirir olheiras escuras por dormir um pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual. Além de vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pôr no nível da nordestina” (pg. 19).

    É marcante nos textos de Clarice a postura e a linguagem poética. Parece uma brincadeira entre palavras, que, de acordo com René Wellek “o homem literário usa a palavra como seu veículo. Como criança, pode colecionar palavras como outras crianças colecionam bonecas, selos ou animais de estimação”. É bom ressaltar que para o poeta, como acrescenta René, “a palavra não é um signo, mas um símbolo”. Mas, ao contrário do que os pós-modernistas pensavam (palavra como símbolo), autores modernistas, como Graciliano Ramos, a viam como um signo.

    Nossa autora apresenta uma associação entre os dois relatos de Rodrigo S. M.: sobre a vida de Macabéa e o seu processo de escrita, pois, de acordo com Geraldo Chacon: “funciona como fios de tapete que compõem dois desenhos que se inter-relacionam”. Na criação da personagem Macabéa, a escritora faz uso de características já existentes em outras personagens, como Fabiano, protagonista de Vidas Secas, do próprio Graciliano Ramos: ambos são personagens que não sabem gritar. Sua condição física, moral e social não lhes permitem.

    A maneira de outros romancistas que se equipararam a seus próprios personagens, como é o caso de Flaubert que disse: “madame Bovary c’est moi”. Pode ser também que Clarice em seu romance tenha revelado uma das facetas de sua personalidade por meio da personagem Macabéa, “a antieroína tosca e ingênua” criada por esta autora. Segundo Sérgio Vale “Macabéa é o desejo de Clarice de não ter que conviver com a barbárie da realidade, e o desejo de Clarice é que todos tenham um pouco dessa inocência cultivada”.

    Para a autora as personagens são mostradas de maneira incompleta e unidimensional, ou seja, a escassez de informações, usando apenas o essencial para poder dar compreensão vaga da personalidade de suas criações. As lacunas são recursos usados para se colocar diante das suas personagens. “A Hora da Estrela” é a única obra de Clarice com a intenção social explícita.

    Portanto, há muitas linhas que entrelaçam o texto de René com a obra e a vida de Clarice Lispector. Mas, longe de conhecer por inteiro a escritora, tentou-se relacionar o básico para entendê-la e olhar por novos horizontes a escrita “possuída” da autora. *é um instante abruto de revelação intensa, de uma tomada de consciência.


IV – REFERÊNCIAS

CHACON, Eduardo. PUC, literatura para vestibular: análise e resumo de obras. Editora Flâmula. São Paulo, 2001.
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Editora Rocco. Rio de Janeiro, 1998.
OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. Discutindo Literatura: a flor do mandacaru. Editora Escala Educacional. 18ª edição. São Paulo, 2008.
WELEK, René. Teoria da Literatura e Metodologia dos Estudos Literários. Editora Martins Fontes. São Paulo, 2003.
Google.pesquisa de literatura.
Disponível em: Acesso em: 9 out 2008, às 19:07h.
Disponível em: www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/a/a_hora_da_strela> Acesso em: 9 out 2008, às 20:03h.
Disponível em: Acesso em: 9 out 2008 20:19h.

ANÁLISE DO ROMANCE “VIDAS SECAS”, DE GRACILIANO RAMOS A PARTIR DE UMA VISÃO DA SOCIOLOGIA


I- INTRODUÇÃO

Falar de Vidas Secas representa enfrentar uma complexidade que não se pode encontrar em qualquer obra. Trata-se na verdade de um romance onde não somente a terra é considerada seca, mas também os sentimentos, os sonhos, as pessoas, as relações entre as pessoas, as vidas, enfim, tudo o quanto vem a existir neste “universo paralelo” criado por Graciliano Ramos tornar-se árido e infrutífero. É como se o eu - poético tivesse o poder de tornar em pedras de sal tudo quanto toca. Este romance é recheado de figuras de linguagem, e não é difícil identificá-las ao longo de sua leitura. Apresentaremos a seguir uma análise dos elementos que compõem a narrativa do romance e das figuras de linguagem encontradas no mesmo, ressaltando a importância do uso destas, que são tão utilizadas em nosso dia-a-dia e que tanto contribuem para o melhoramento de nossas produções textuais. Portanto, o que não tem sido devidamente esclarecido ao grande público de leitores, agora terá uma atenção especial neste trabalho elaborado para este fim.

II- ANÁLISE DOS ELEMENTOS QUE COMPÕEM A NARRATIVA DO ROMANCE “VIDAS SECAS”, DE GRACILIANO RAMOS

2.1- ENREDO

    Uma família de retirantes nordestinos inicia um périplo ao fugir das secas. Depois de vários dias de viagem, encontram uma fazenda abandonada e nela se alojam. Quando o dono retorna, Fabiano – chefe da família de retirantes e protagonista – trabalha para aquele (Seu Tomás da Bolandeira), durante um período de bonança. Sobrevinda nova seca, anunciada pela vinda dos urubus, a família retoma a sua jornada, mas com esperança de tudo mudar, embora a obra seja um eterno ciclo.

2.2- PERSONAGENS

2.2.1 – FABIANO

    É o personagem principal da estória. Um pai duro, que não demonstra sentimentos, tem apenas o objetivo de sobreviver na vida, assim como toda a família. Sua profissão é ser vaqueiro, e isso veio de gerações, nunca mudando seu status social. Possui uma linguagem pobre, escassa, assim como a seca que há no sertão. Às vezes, quando tenta “falar difícil”, como seu Tomás da Bolandeira, seu patrão e “ídolo”, acaba se atrapalhando, pois a linguagem falada é pouco utilizada pela família.

“Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme.”
(Capítulo “CADEIA” – pg. 28)

2.2.2 – SINHÁ VITÓRIA

    É a mulher de Fabiano. Seu nome é incoerente à sua vida. Cuida da casa enquanto Fabiano trabalha; faz contas certas para mostrar ao marido os freqüentes roubos de seu patrão. Sinhá vitória sonha com uma cama de lastro e couro igual à de seu Tomás da Bolandeira, sendo esta o símbolo de uma ascensão social.

“Sinhá Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual a de seu Tomás da Bolandeira. ” (Capítulo “SINHÁ VITÓRIA” – pg. 46)

2.2.3 – MENINO MAIS NOVO

    Tem como “ídolo” seu pai. O menino sonha em poder fazer tudo o que o pai faz, até porque esta é a única profissão que tem como referência, já que outras estão longe de sua visão. Não conhece a escola e não tem nome, assim como o menino mais velho.

    “Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração. Metido nos couros, de perneiras, gibão e guarda-peito, era a criatura mais importante do mundo.” (capítulo “O MENINO MAIS NOVO” – pg. 47)

2.2.4 – MENINO MAIS VELHO

    É um menino curioso. Tenta conhecer o significado da palavra “inferno” (que é comum ao falante da língua portuguesa), perguntando à sua mãe o seu significado, mas infelizmente não obtém resposta, apenas um cocorote. No decorrer da estória se nota que por não fazer uso da linguagem falada com freqüência, procura preencher-se de vocabulários esquisitos, como os sons emitidos pela natureza ou mantendo conversas com a cachorra Baleia.

“Como não sabia falar direito, o menino balbuciava expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava os berros dos animais, o barulho do vento, o som dos galhos eu rangiam na catinga, roçando-se.”
(capítulo “O MENINO MAIS VELHO” – pg. 59)

2.2.5 – BALEIA

    É considerado um membro da família. Nota-se que o narrador lhe pôs sentimentos e consciência, como se fosse humana. Quando consegue comida não pensa apenas em si, mas na família inteira, tendo a responsabilidade de ajudar os outros. Ela é mais presente no dia-a-dia dos meninos que os próprios pais.

“Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo.”
(capítulo “BALEIA” – pg. 90)

2.2.6 – SOLDADO AMARELO

    É o símbolo do poder do governo. Por mais que fosse amarelo e magro, era respeitado por ser um soldado. Isto se torna evidente quando Fabiano o encontra perdido no sertão; podendo matá-lo por este o ter prendido e maltratado um certo dia na cidade, Fabiano resolve deixá-lo seguir, pois tem medo de ser novamente encarcerado.
“Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro. _ “Governo é governo”.”
(capítulo “O SOLDADO AMARELO” – pg. 107)

OBSERVAÇÃO: seu Tomás da Bolandeira, apesar de ser muito citado, é mais uma referência de inteligência e vida farta do que um personagem propriamente dito. Além dele são citados sinhá Terta, costureira e benzedeira, e seu Inácio, dono de uma venda na cidade.

2.3 – NARRADOR

    O narrador está em primeira pessoa, ou seja, é um narrador onisciente que não abusa do poder de tudo saber, controlando-se com freqüência no emprego do discurso indireto livre; temos como exemplo o recorte abaixo:

“Ele, Fabiano, um bruto, não contava nada. Só queria voltar para junto de sinhá Vitória, deitar-se na cama de varas. Por que vinham bulir com um homem que só queria descansar? Devia bulir com os outros.” (capitulo “CADEIA” – pg. 33). A voz parece ser simultaneamente do personagem e do narrador.

    A obra é um romance “desmontável”, conforme a observação do cronista Rubem Braga, pois não se tem no romance um pseudo-autor presente a escrever o que lhe aconteceu; é substituído por um narrador, encadeando proto-estórias numa narrativa mais ampla, independentes da maioria, mantendo sua unidade e sentido completo.

2.4 – TEMPO

    Não há objetivos que permitam precisar o tempo cronológico em que decorre a narrativa, a não ser que os acontecimentos vividos pela família que se desenrolam entre duas secas. Existe também na obra o tempo psicológico, pois enfatiza mais as dimensões mental/emocional das personagens.
"Por pouco que o selvagem pense - e os meus personagens são quase selvagens – o que ele pensa merece anotação."
Graciliano Ramos

2.5 – ESPAÇO

    Vidas Secas é um romance que se desenvolve no sertão nordestino; a família vive agregada numa fazenda cujo proprietário é patrão de Fabiano.

2.6 – AMBIENTE

    Observa-se que o romance apresenta um ambiente sem sentimentalismo, pois, por viverem em um espaço onde não lhes é oferecida boas condições de vida, tornam-se pessoas rudes, que não conseguem deixar transparecer seus sentimentos.

    O ambiente é escasso de linguagem verbal, pois os personagens quase nunca dialogam. Está presente também a injustiça social e a pobreza, fazendo com que as personagens fiquem desanimadas em relação à vida. Enfim, o ambiente em que eles vivem é “seco” em todos os sentidos.

2.7 – TEMA

Injustiça social

2.8 – ASSUNTO

Denúncia social

2.9 – MENSAGEM

A seca não está apenas no sertão, mas na alma de muitos e na falta de ações de outros.

III – ANÁLISE DAS FIGURAS E VÍCIOS DE LINGUAGEM EM VIDAS SECAS, OBRA DE GRACILIANO RAMOS

    O romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos é carregado de figuras de linguagem desde as mais conhecidas, como a Metáfora, às menos populares (Analepse, por exemplo). A obra é tão bem trabalhada que as figuras começam pelo título da mesma: “VIDAS SECAS”. O primeiro vocábulo dá sentido de abundância enquanto o segundo dá idéia de vazio, ou seja, há um Paradoxo (oposição de idéias resultando em uma construção de sentido ilógico).

    Existe uma fácil percepção das figuras Prosopopéia e Zoomorfismo. Nota-se a primeira na humanização dos animais e da paisagem: “Os mandacarus e os alastrados vestiam a campina.” (capítulo “FUGA” – pg. 120). A segunda figura consiste em aproximar e descrever o comportamento humano como de um animal, ou tratá-lo como tal. Isto ocorre quando Fabiano vai sendo descrito pelo narrador, no capítulo de mesmo nome: “O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco.” (capítulo “FABIANO” – pg. 19).

    Por ser uma família banida de linguagem, o uso de Onomatopéias (palavra cuja pronúncia imita o som natural da coisa significada) está presente na maioria das falas ou expressões: “... mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo? _ An!” (capítulo “CADEIA” – pg. 33). Além disso, a Tautologia (vício de linguagem que consiste em dizer a mesma coisa, por formas diferentes, repetidas vezes) é usada para explicar o significado pelo próprio nome, como por exemplo, “_ Festa é festa.” (capítulo “FESTA” – pg. 77). Fabiano não sabe o que é festa, mas tenta fazer uso do nome para dar conceito à própria palavra. Não só neste recorte encontramos a falta de vocabulário, como na passagem que Fabiano tenta falar como seu Tomás da Bolandeira, no capítulo Cadeia. Ao tentar se expressar, acaba se contradizendo, ocorrendo a Antítese (palavras ou expressões de sentidos opostos): “isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer. Enfim, contanto, etc. É conforme.” (capítulo “CADEIA” – pg. 28).

    O narrador também faz uso de Gradação (seqüência de idéias em sentido crescente ou decrescente) e de Assíndeto (ausência de conectivos). Tem-se como exemplo esta passagem: “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se...” (capítulo “MUDANÇA” – pg. 9) *.

    O emprego de Metáforas está em todo o romance, assim como a Comparação. A Metáfora (comparação subentendida, como será visto a seguir) funde o ser humano e o animal, como se vê neste fragmento: “¬_ Você é um bicho, Fabiano.” (capítulo “FABIANO” – pg. 19). A Comparação (não subentendida, geralmente vinda com o conectivo “como”) também se torna populosa na obra: “... aparecera como um bicho, mas criara raízes, estava plantado.” (capítulo “FABIANO” – pg. 19).

    Para dar ênfase às frases, o narrador opta por figuras que eram muito usadas no simbolismo (davam efeito de musicalidade), como o uso de Aliterações-assonância, que ocorre com a repetição de uma vogal para dar rima “Veja que mole e quente é pé de gente.” (capítulo “FABIANO” – pg. 31). Também há presença da Aliteração-consonância, que consiste na repetição de consoantes para dar musicalidade: “... e aí fervilhava uma população de pedras vivas e plantas que procediam como gente.” (capítulo “O MENINO MAIS VELHO” – pg. 58).

    A Elipse, omissão de palavras sem que se comprometa a frase, é aplicada com louvor por Graciliano (também conhecido por assim fazer em suas obras): “... o rio subia a ladeira, estava perto dos juazeiros. Não havia notícia de que (o rio) os houvesse atingido.” (capítulo “INVERNO” – pg. 67). É clara a utilização da Zeugma (um tipo de Elipse) quando o narrador omite a palavra “rio”, já dita na oração anterior e sem necessidade de ser retomada.

    No recorte seguinte, ver-se-á um exemplo de Apóstrofe: “_ Anda, excomungado.” (capítulo “MUDANÇA” – pg. 10). A palavra “Anda” dá idéia de chamamento, que é o conceito da figura apontada acima. Quanto à repetição de uma palavra para dar ênfase à idéia (Anáfora), temos três orações consecutivas que apresentam o mesmo verbo: “Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorra.” (capítulo “CADEIA” – pg. 37).

    Há duas figuras que tem conceitos opostos de se expressar ou dar uma notícia: o Eufemismo e o Disfemismo. O Eufemismo suaviza e o Disfemismo deprecia. Para melhor compreensão veja os trechos a seguir: “Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás.” (capítulo “BALEIA” – pg. 91); “... e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o escritório do branco, certo de que fora enganado.” (capítulo “FESTA” – pg. 76). O primeiro chega a abrandar a notícia que “Baleia está morrendo”. O segundo, ao invés de pôr “Fabiano, com muita raiva”, escolhe “Fabiano, com os miolos ardendo”, desdenhando assim a expressão.

    A Ironia é uma figura muito usada no cotidiano e em programas humorísticos, e se faz presente até no nome das personagens, como Sinhá Vitória e Baleia. Quando o narrador revela o nome da cachorra, Baleia, a princípio, nos leva a imaginar uma cadela gorda, mas, pelo contrário, como é perceptível quando o narrador a descreve nota-se que ela é totalmente o oposto de seu nome: “... a cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada, as costelas a mostra, corria ofegante, a língua fora da boca...” (capítulo “MUDANÇA” – pg. 11).

    A repetição de palavras no fim de duas orações consecutivas (Epístrofe), no começo e no fim de uma frase (Epizeuxe), no fim e no começo da mesma oração (Anadiplose) ou da mesma palavra que se repete havendo apenas uma de permeio (Diácope), não são encontradas com a mesma freqüência que as metáforas, mas que podem ser notadas a partir dos recortes expostos a seguir: “Fora roubado, com certeza fora roubado” (capítulo “FESTA” – pg. 77); “_Bem, Bem. Não há nada não.” (capítulo “CADEIA” – pg. 33); “Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra, a pedra estava fria.” (capítulo “BALEIA” – pg. 91); “Se pudesse... Ah! se pudesse, atacaria os soldados amarelos que espancam as criaturas inofensivas.” (capítulo “CADEIA” – pg. 36).

    Às vezes o narrador volta ao passado interrompendo a seqüência cronológica da narrativa, como se fosse um flashback. Isto se chama Analepse, mais utilizada quando Sinhá Vitória se lembra do papagaio que fora comido ou quando Fabiano pensa em Baleia, depois de ela ter sido morta: “Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça...” (capítulo “MUDANÇA” – pg. 11). Assim como há a Analepse também existe a Prolepse, que é um recurso narrativo através do qual se pode descrever o futuro. Quando Fabiano antecipa o destino dos filhos, pensando num futuro que se parece com o presente vivido pela família, esta figura aparece: “Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados, por um soldado amarelo.” (capítulo “FUGA” – pg. 37).

    Enfim, não se pode esquecer a Hipérbole, figura usada para intensificar uma idéia: “Baleia voou de novo entre as macambiras inutilmente.” (capítulo “FABIANO” – pg. 21).

OBSERVAÇÃO:

“O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado.” (capítulo “O MUNDO COBERTO DE PENAS” – pg. 109).

    Na sentença acima, o termo grifado pode representar três diferentes figuras de linguagem: Hipérbole, Metáfora e Prosopopéia. A primeira está contida porque intensifica o modo como a água ia desaparecendo do poço; a segunda é empregada porque a palavra em negrito está fora do seu sentido próprio; a terceira se dá pela idéia na oração, já que o sol é um ser inanimado e na oração ele é humanizado.


*Sabe-se que Graciliano Ramos por várias e várias vezes leu o livro para tirar tudo que não tivesse necessidade de ser posto. Logo, a linguagem enxuta do autor o fez usar mais vírgulas do que conectivos.

IV – REFERÊNCIAS

Google.pesquisa de literatura.
Disponível em: Acesso em: 15 set 2008, às 20:23h.
Disponível em: Acesso em: 18 set 2008, às 15:16h.
Disponível em: Acesso em: 5 Nov 2007 9:36h.
BUENO, Antônio Sérgio. OLIVEIRA, Silvana Maria Pessôa de. SCARPELLI, Marli Fantini. Puc, livros do vestibular: análise, comentários e testes. Editora Speed. Belo Horizonte, 1999.
Ramos, Graciliano. Vidas Secas. Editora Record. 106ª edição. Rio de Janeiro/São Paulo, 2008. 
SACCONI, Luiz Antonio. Nossa Gramática – teoria e prática. Editora Atual. 25ª edição. São Paulo, 1999. pgs. 492-501.
SANT’ANNA. Affonso Romano de. Análise estrutural de romances brasileiros. Editora Petrópolis. 7ª edição. São Paulo, 1989.
SARMENTI, Leila Lauar. Gramática em textos. Editora Moderna. 1ª edição. São Paulo, 1999. Pgs. 541-550.