8/05/2013

TRAJETÓRIA ESCOLARES E DESTINOS IMPRÓVAVEIS:PROCESSOS DE RESISTÊNCIA



 




INTRODUÇÃO


Este trabalho tem como tema: Trajetórias Escolares e Destinos Improváveis: Processos de Resistência. Compreende-se que a educação é um dos meios de acesso a posições ocupacionais e de renda, hierarquicamente elevadas na sociedade capitalista, todavia, na ausência de um nível educacional mais elevado é praticamente improvável que o individuo consiga mobilidade social e econômica.
Neste sentido, percebe-se que a carência ou supressão de políticas públicas, seguidas pelas desigualdades de oportunidades educacionais e a indisponibilidade de recursos familiares socioeconômicos, que são fatores importantes para o sucesso escolar dos estudantes, contribuem para a exclusão e marginalização das classes desfavorecidas no que se refere à educação superior no país. Contudo, apesar dessa marginalização viciosa, muitos estudantes conseguem acessar o ensino superior. Este contexto tem gerado discussões acerca das práticas utilizadas por jovens em desvantagem econômica, que conseguem contornar as adversidades em todas as suas formas e acessar a universidade pública.

No que tange as políticas públicas de incentivo a educação superior, elas ainda não conseguem abranger uma imensa parcela da população. Esse fato pode ser constatado nos índices educacionais relativos ao ingresso da população de baixa renda nas instituições públicas de ensino superior do país. A educação brasileira desde os tempos mais remotos foi pensada para a classe dominante e nesse processo os desfavorecidos economicamente ficaram à margem do sistema educacional. Este fato contribuiu para que apenas recentemente uma pequena parcela de estudantes provindos de meios populares conseguisse acessar o ensino superior nas instituições públicas do país.

No entanto, desde 1988 a Constituição Federal no artigo 205 afirma que “a educação, direitos de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Este direcionamento constitucional ampara a sociedade brasileira no que tange os investimentos que influenciariam no alcance e na qualidade da educação. Nesse sentido, de acordo com a LDB 9.394/1996 no seu artigo 43 que direciona quanto à finalidade do ensino superior, e no inciso III desse mesmo artigo, determina que a educação superior deva “incentivar o trabalho de pesquisa e investigação científica, visando o desenvolvimento da ciência e da tecnologia e da criação e difusão da cultura, e desse modo, desenvolver o entendimento do homem e do meio em que vive”. Essa ideologia, no que concerne o ensino superior, busca dar clareza ao propósito da educação nacional quando propõe a conscientização da pessoa enquanto cidadão atuante na sociedade em que vive.

Nessa perspectiva, buscou-se analisar as trajetórias escolares de acadêmicos oriundos de meios populares que conseguiram ingressar em quatro instituições públicas brasileiras de ensino superior, sendo que duas (02) estão localizadas na região norte: Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e Universidade federal do Amapá (UNIFAP) e duas (02) na região sudeste: Universidade Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Assim como cinco (05) relatos empíricos de estudantes de baixa renda que ingressaram em uma Instituição Federal de Ensino Superior (IFES) localizada no extremo Norte do País.

O estudo desta temática tornou-se objeto de análise deste trabalho, motivado a partir de observações em sala de aula com colegas que compartilharam suas trajetórias escolares, suas dificuldades de acesso e permanência na instituição e também por vivenciar histórias semelhantes a dos sujeitos analisados, bem como, pela participação nas pesquisas no Grupo de Pesquisa Capital Social, Educação e Meio Ambiente (GPCEM) que tem como objeto de estudo temas correlatos.

Nessa perspectiva, o Ministério da Educação (MEC) com o objetivo de ampliar o acesso de pessoas oriundas de classes populares ao ensino superior, criou em 2004 o Programa Conexões de Saberes, que busca dar possibilidades aos estudantes de baixa renda, das universidades públicas para que tenham condições de permanência nas instituições contempladas pelo programa.

Além de dar suporte financeiro, as principais propostas deste programa, é estreitar as relações entre os estudantes universitários das instituições públicas e as comunidades populares visando estabelecer um processo contínuo de qualificação, como pesquisadores através de propostas pedagógicas, adquiridas nas universidades. Busca também, desenvolver ações sociais nas comunidades por meio de diagnósticos previamente coletados com o intuito de aproximar as comunidades populares e as universidades e estabelecer uma reciprocidade entre conhecimento popular e conhecimento acadêmico.

Neste sentido, o MEC, por intermédio dos acadêmicos, elaborou quatro livros com memórias autobiográficas,contempladas pelo programa, no qual contém relatos de vida e trajetórias escolares. Esses memoriais subsidiarão os estudos a que se propõe o presente trabalho de conclusão de curso. Diante disso, pretende-se, com a análise dos memoriais, contribuir na compreensão desses casos de "sucessos improváveis" e entender de que forma são elaboradas as trajetórias escolares de alunos provindos de meios populares que acessam o ensino superior.

Para uma melhor análise, este trabalho propõe levantar os seguintes questionamentos: Qual o perfil social dos alunos de camadas populares que acessam o ensino superior? Quais mecanismos e instrumentos foram utilizados por esses alunos para acessar a universidade? Quais formas de colaboração em redes de relacionamento foram importantes para o êxito desses sujeitos?

No transcorrer do trabalho, buscou-se confrontar questões específicas dos memoriais com os estudos de importantes teóricos nacionais e estrangeiros da sociologia da educação, tais como: Pierre Bourdieu, Maria José Braga Viana, Bernad Lahire, Écio Portes, Nadir Zago, entre outros, para explicar como os fenômenos do capital social, e apoio familiar influenciaram no êxito escolar desses alunos para seu ingresso nas universidades.

A critério de contribuição nessa discussão foram analisados também cinco (05) relatos empíricos de trajetórias escolares de estudantes do Curso de Licenciatura de uma determinada IFES, localizada no extremo Norte do País.

Sendo assim, este trabalho justifica-se pela necessidade de lançar luz sobre essa problemática, em que se aponta como hipótese inicial que alunos de camadas econômicas muito baixas que acessam a universidade contam com um importante apoio da rede primária: família, parentes e amigos que se constituem como formas de colaboração e solidariedade, pois a presença de alunos de origem popular que ingressam no ensino superior tem suscitado questionamentos a respeito das práticas utilizadas por esses jovens, levando em consideração que os fenômenos de mobilização escolar não são características relevantes nessas famílias.

Dessa forma, este trabalho tem por objetivo analisar quais práticas socializadoras utilizadas por esses estudantes que possibilitaram dar-lhes condições de longevidade escolar, êxito nos estudos e acesso ás IFES.

Este trabalho esta dividido em cinco capítulos, incluindo esta introdução e as considerações finais. No segundo capítulo discute-se a teoria do capital social defendida por Pierre Bourdieu, uma abordagem sociológica das trajetórias escolares na visão de Bernard Lahire, de Viana, de Portes e de Zago, cujos trabalhos são voltados para essa temática.

No terceiro capítulo apresentam-se reflexões acerca do contexto histórico da educação no Brasil; o perfil das IFES que estes alunos frequentam; as desigualdades sociais no ensino superior brasileiro; o contexto das ações afirmativas; as políticas governamentais no que tange os programas voltados para o acesso ao ensino superior por segmentos populares, dentre eles o programa conexões de saberes.

O método de procedimento tem como objetivo a análise de conteúdo. No que tange os estudos e discussões realizados, bem como dados levantados, foi utilizado o materialismo histórico dialético, por se constituir em uma pesquisa que apresenta elementos da trajetória de vida dos sujeitos, contidas nos memoriais escritos, bem como suas condições materiais.

O quarto capítulo é destinado a análises dos memoriais, as trajetórias sociais e escolares de estudantes populares. Nas considerações finais procura-se responder as perguntas norteadoras.

Nesse sentido, se faz necessário explicar as formas que levaram esses estudantes a acessar o ensino superior, suas características sociais e culturais e as trajetórias escolares desses indivíduos.



CAPÍTULO I

1.1-CAPITAL SOCIAL


As principais categorias teóricas que subsidiarão a discussão e argumentação para responder as questões norteadoras deste trabalho são: capital social, capital econômico, capital cultural e trajetórias escolares, que serão discutidas por importantes teóricos da Sociologia da Educação.
Na perspectiva de explicar a relevância do capital social para a educação, dialogamos com Pierre Bourdieu e James Coleman, autores imprescindíveis nesse debate, pois eles foram pioneiros no que diz respeito ao conceito de capital na análise social para fazer referência não apenas à sua forma econômica, mas também à sua forma cultural e social. Esta categoria ganhou elaboração mais refinada a partir desses dois teóricos da Sociologia da Educação. Estes sociólogos transformaram o capital social em um tópico específico de estudo para tentar entender como indivíduos inseridos em uma rede de relações sociais estáveis podem se beneficiar de sua posição ou gerar externalidades positivas para os seus membros.
Para BOURDIEU (apud PISELLI, 1980) o conceito de capital social surgiu em decorrência de estudos relativos ao estrato social, para indicar o significado de família, de amizade, ou seja, o pertencimento a grupos específicos que se relacionam mutuamente. Esses grupos permitem e ratificam as diferenças entre as classes. Nesse sentido, as redes de relações sociais são particularmente notadas em situações em que todos os componentes adquirem um resultado desigual de um capital, seja ele social econômico ou cultural.
Bourdieu (1979), entendendo que a origem social dos alunos influencia no que tange as desigualdades escolares e, que essas desigualdades legitimam as regras sociais impostas pela classe hegemônica, buscou também explicitar os fatores que poderiam contornar essa realidade. Nesse sentido, o capital social seria um dos fatores importantes para se obter êxito escolar, mas para isso precisaria estar associado ao capital econômico e cultural, ou seja, o capital econômico não seria o fator determinante para o sucesso escolar.
Bourdieu (1979) enfatiza que o capital social está relacionado aos benefícios mediados pela rede extra-familiar e às lutas internas travadas entre indivíduos ou grupos de diferentes camadas sociais. Portanto, as oportunidades que os agentes têm de acumular ou de reproduzir capital social dependem de sua posição dentro do sistema de estratificação.
Ele utiliza ainda o conceito de campo para referir-se ao ambiente no qual se manifestam as relações de poder. Isso significa afirmar que, os campos se estruturam a partir de uma distribuição desigual de um quantum social que determina a posição ocupada por um agente específico. Esse quantum é denominado de “capital social”.
Os agentes que possuem um quantum de capital social reconhecido pelo grupo recebem os benefícios relativos às posições dominantes, enquanto aqueles que ingressaram recentemente em determinado campo, ou seja, que possuem um volume pequeno de capital social ocupam as posições inferiores no campo.
Segundo BOURDIEU (apud RIBEIRO, 2004) o capital social é um ativo impessoal que oferece vantagens aos indivíduos, famílias ou grupos que estão mais bem relacionados. Para Ribeiro, Bourdieu em seus estudos de capital social afirma existir uma desproporção em relação à distribuição e reprodução do poder e das desigualdades sociais.

Assim sendo, os recursos disponíveis na sociedade, inclusive o capital social, são distribuídos de maneira desigual, pois, fica assegurada a reprodução das posições de domínio dentro do campo de relações econômicas e, para os novos “jogadores” e aos mais débeis, é imposto um conjunto de barreiras a fim de dificultar ou excluir essas classes do acesso aos bens sociais (RIBEIRO, 2008, p.76).

Nessa perspectiva, Bourdieu (1979) vê o campo como um espaço de correlações de forças, lutas e conflitos, no interior do qual os agentes se enfrentam com meios e fins diferenciados conforme sua posição relativa na estrutura, o que por sua vez está relacionado ao seu interesse em conservá-la ou transformá-la. Nesse sentido, os recursos disponíveis que circulam no grupo permitem que os seus membros tenham acesso a benefícios materiais e simbólicos, que possibilitam a eles condições estruturais de manutenção e reprodução de capital social.
Nesse sentido, Bourdieu (1979) emprega o Habitus, outra categoria, para entender os fenômenos do capital social.  Segundo ele, um agente social ao estar dotado de Habitus, é ao mesmo tempo indivíduo e sociedade. Este conceito permite, seguramente, dar conta das circunstâncias cotidianas. Para BOURDIEU (apud RIBEIRO, 2008) do mesmo modo, o campo é compreendido a partir das relações de forças que o caracterizam, que dependem, por sua vez, da relação entre os diferentes recursos do próprio campo.
O conceito de capital social em Bourdieu é solidário com suas formulações sobre disposições duráveis (Habitus). O Habitus enfatiza a dimensão de um aprendizado passado que tende a confrontar e a orientar a ação. É o sistema de esquemas para a elaboração de práticas concretas, ou esquemas estruturados, incorporados pelos agentes sob a forma de um senso prático que facilita sua orientação nos domínios relativos à existência social.
Segundo Bourdieu (apud CANESIN, 1996, p. 08) “o Habitus adquirido na família está no princípio da estruturação das experiências escolares”, o Habitus transformado pela ação escolar, ela mesma diversificada, estando por sua vez no princípio da estruturação de todas as experiências ulteriores, por exemplo, da recepção e da apropriação das mensagens produzidas e disseminadas pela indústria cultural ou das experiências profissionais e, assim, por diante, de estruturação e reestruturação.
Bourdieu (2004) focaliza, em sua concepção sobre o conceito de capital social, o papel das redes de relações sociais externas à família, na mobilização e reprodução desse tipo de capital. Enquanto que, para Coleman (1988), o mais importante no capital social é a qualidade de relações que nela se estabelecem transformando a família em uma das redes chaves para a construção de capital social sob dois ângulos. O primeiro enfoca o papel das famílias na construção de capital social extra-familiar, ou seja, em redes sociais fora do lar. O segundo ângulo examina a constituição do capital social na essência das redes familiares e a importância disto para o desenvolvimento individual, especificamente para o desempenho escolar e cognitivo dos filhos.

O conceito de capital social é inerente à estrutura das relações sociais entre duas ou mais pessoas. Comooutras formas de capital, o capital social é produtivo: é um recurso para a açãoque torna possível ao ator (individual ou coletivo) a consecução de fins não alcançáveis de outro modo. O capital social é o resultado de estratégias de investimento, intencional ou não intencional, voltadas para a constituição e reprodução de relações sociais duráveis, capazes de possibilitar, com o passar do tempo, proveitos materiais e simbólicos. (COLEMAN APUD PISELLI 2005, P. 433).

Para COLEMAN (apud RIBEIRO, 2008), capital social é uma variedade de entidades de dois elementos em comum: todas elas consistem num certo aspecto das estruturas sociais e facilitam determinadas ações dos atores-pessoas ou atores coletivos no interior da estrutura.
Para Coleman (1988), na estrutura social o capital social cumpre a função de servir como recursos para que os atores individuais atinjam suas metas e satisfaçam seus interesses. Pelo menos três grupos de elementos fazem parte dessa funcionalidade: 1) obrigações, expectativas e lealdade, 2) canais de informação e 3) normas e sanções estabelecidas. Os primeiros podem contar com diversos graus de reciprocidade, dependendo do tempo e do motivo. Os canais de informação reduziriam custos através de pessoas que têm informações pertinentes e as compartilham com a rede social. O terceiro tem por função específica inibir comportamentos negativos que debilitam o capital social. Ele reconhece diferenças entre estruturas sociais.
Consideram as necessidades concretas que levam a interação social, a existência de fontes alternativas de recursos, o grau de afluência dos recursos, a capacidade de gestão que as pessoas têm para obter ajuda a coesão de redes sociais e a logística que dinamiza mais ou menos os contatos sociais. Mas ele não é explícito em reconhecer estruturas sociais excludentes que impedem o acesso de indivíduos ou grupos a recursos de que precisam.

1.2-CAPITAL ECONÔMICO


Para BOURDIEU, (apud NOGUEIRA, 2001) o ambiente social é um campo de lutas no qual os indivíduos ou grupos organizam táticas que permitem a melhora ou a manutenção de sua posição social.  Essas táticas estão relacionadas com os diferentes tipos de capital.
O capital econômico, sob a forma dos diversos fatores de produção (terras, fábricas, trabalho) e do conjunto de bens econômicos (dinheiro, patrimônio, bens materiais), que acumulado, reproduzido e ampliado por meio de estratégias específicas de investimento econômico e de outras, relacionadas a investimentos culturais e à obtenção ou manutenção de relações sociais podem possibilitar o estabelecimento de vínculos economicamente úteis, a curto e longo prazo.
Para esse sociólogo, a educação escolar, uma das formas do capital cultural, assim como o capital econômico são recursos úteis na determinação e reprodução das posições sociais. A desigualdade na distribuição das diferentes formas de capital justifica as diferentes estratégias adotadas por cada individuo e se acomodam a elas, ou como eles são excluídos do sistema educacional, por exemplo, as situações escolares. 

As condições de estabilidade econômica são um fator tranquilizador importante no universo das configurações familiares. Ou seja, certa tranquilidade, uma relativa distância da sobrevivência material. Casa própria, salários baixos, mas sempre disponíveis, ajuda de familiares, ou duplas jornadas de trabalho para ambos os pais são circunstâncias que colocam alunos em situação privilegiada em relação às demais famílias dos segmentos populares. (LAHIRE APUD RIBEIRO, 2011, P. 64).

Nesse sentido, as famílias de meios populares que possuem recursos financeiros, mesmo que pequeno, auxiliam seus filhos com materiais didáticos e outros meios que lhes possibilitam absorver o real significado do contexto escolar e dessa forma retribuir com resultados positivos no que tange a aprendizagem. Esses recursos são: jornais, revistas, livros, obras de arte, cinema, passeios a museus, acesso a internet etc. Todos esses recursos proporcionam condições propicias aos estudos.
No entanto, para as famílias das camadas populares em sua maioria essa suposta “estabilidade econômica”, mesmo escassa é quase inexistente, isso faz com que eles busquem outros meios de apoio familiar muitas vezes contando com o auxilio de pessoas próximas, estabelecendo assim uma relação de reciprocidade e confiança.
Sob essa ótica, Bourdieu (1979) afirma que o capital econômico não seria o fator determinante para o sucesso escolar, mas seria um dos meios para alcançá-lo. Por sua vez, Coleman (1988) define o capital econômico como renda, riqueza material e em termos dos bens e serviços a que ele dá acesso. Para esse autor, o capital econômico é importante, pois vincula a família a diferentes estratos sociais que possibilitam mobilidade social para os agentes envolvidos nessas redes de relacionamentos.


1.3-CAPITAL CULTURAL


Para Bourdieu (1979), a noção de capital cultural surge da necessidade de se compreender as desigualdades de desempenho escolar dos indivíduos oriundos de diferentes grupos sociais. Sua sociologia da educação se caracteriza, notadamente, pela diminuição do peso do fator econômico, em comparação ao peso do fator cultural, na explicação das desigualdades escolares.
Segundo este sociólogo, o capital cultural existe sob três formas: no estado incorporado, no estado objetivado e no estado institucionalizado. O estado incorporado acontece sob a forma de arranjos duráveis do organismo, oferecendo como principais dados característicos os gostos, a propriedade maior ou menor da língua culta e os conhecimentos adquiridos no contexto escolar.
No estado objetivado, o capital cultural é representado pelos bens culturais que o indivíduo pode ter acesso, tais como esculturas, pinturas, livros, etc. Porém, para esses bens se solidificarem economicamente é necessário possuir capital econômico.
O significado de Bourdieu (1980) para capital cultural institucionalizado possui semelhanças com o conceito de capital humano de Coleman (1988). Este último afirma que o capital humano é igual ao grau de instrução das pessoas. Em se tratando de famílias, este tipo de capital é importante para proporcionar um espaço cognitivo favorável à aprendizagem escolar dos filhos. Nesse sentido, o capital cultural institucionalizado se dá basicamente sob a forma de títulos escolares.

O grau de investimento na carreira escolar está vinculado ao retorno provável que se pode obter com o título escolar, notadamente no mercado de trabalho. Esse retorno, ou seja, o valor do título escolar pode ser alto ou baixo; quanto mais fácil o acesso a um título escolar, maior a tendência à sua desvalorização. É o que o sociólogo francês chama de ‘inflação de títulos’, (BOURDIEU, 1980, P. 49.)

Diante disso, torna-se imprescindível referendar LAHIRE (apud SETTON, 2011) no que tange o capital cultural, pois segundo ele, as formas de acesso à cultura através da leitura e escrita das famílias são demasiadamente importantes. Todavia, a ênfase não seria apenas sobre tais habilidades, mas, sobretudo sobre os resultados que esta infringe na socialização dos estudantes em um tempo relativamente curto.
Segundo LAHIRE (apud SETTON, 2011) considera que a existência de um capital cultural familiar, a posse de diplomas, o gosto pela leitura ou a frequência a cinemas ou teatros vão determinar, e não garantir mecanicamente a posse de cultura dos herdeiros. Sendo assim, é necessário analisar os meios de transmissão e interiorização desses recursos disponíveis na família que são alguns dos fatores responsáveis pelo sucesso escolar.


CAPÍTULO II
2.1- A ABORDAGEM SOCIOLOGICA DAS TRAJETÓRIAS ESCOLARES
                                                                                                
Estudos que investigam processos que permitiram o ingresso de jovens de meios populares no ensino superior surgiram no Brasil a partir da década de 1990. Esses estudos, sobretudo, visam compreender as práticas de colaboração em redes familiares que permitiram uma escolarização prolongada para esses indivíduos, ou seja, entender o fenômeno que permitiu a esses jovens romper com a tradição frequente no seu meio de origem de uma escolaridade de curta duração.
Nesse sentido, pretende-se no decorrer das análises das literaturas aqui expostas demonstrar como as trajetórias escolares de sucesso são influenciadas pelos capitais econômico, social e cultural de que fala Bourdieu e também a presença familiar abordada por Lahire. Acredita-se que apesar do trabalho de Lahire ter sido realizado com crianças, não desmerece a importância dessa pesquisa em relacioná-la ao sucesso escolar em meios populares.
Dentre os estudiosos dessa temática no Brasil, podemos citar: Portes, Viana e Zago, entre outros, que são referências no Brasil no que diz respeito aos estudos relacionados às trajetórias escolares de estudantes de baixa renda. Esses estudos apoiam-se em contribuições teóricas produzidas no exterior, onde pesquisas relacionadas a esse tema são menos recentes trazendo importantes contribuições ao chamar a atenção para aspectos pouco explorados. Sendo assim, para reforçarmos a discussão a que se propõe este trabalho, ou seja, trajetória escolar de estudantes de baixa renda considera-se oportuno trabalhar com os teóricos estrangeiros Pierre Bourdieu e Bernard Lahire, por terem produzido trabalhos relevantes nessa linha de pesquisa.

Estudos no campo da sociologia da educação produzidos no Brasil e no exterior vêm fornecendo indicadores teóricos importantes para problematizar o que tem sido chamado “longevidade escolar’, casos ‘atípicos’ ou ‘trajetórias improváveis” de estudantes dos meios populares, (ZAGO, 2006, P. 35).

Diante disso, acontecem no cenário brasileiro discussões por diversos segmentos da sociedade (movimentos sociais, intelectuais, pesquisadores, políticos etc.) acerca do acesso ao ensino superior de estudantes de baixa renda. Em consonância com essas discussões, atualmente ocorrem debates no que tange a políticas de ações afirmativas como cotas raciais e cotas sociais, que visam favorecer classes marginalizadas historicamente. Nesse contexto, muitas pesquisas têm sido realizadas com o intuito de melhor e atender a esse público que luta por acesso à universidade, sobretudo às públicas.
A partir da pesquisa realizada por Lahire (1997) com crianças francesas, em seu trabalho intitulado: Sucesso escolar em meios populares: As razões do improvável, ele investigou as relações entre o desempenho escolar de 26 crianças (que frequentavam o equivalente ao 2º ano no Brasil) provindas de meios populares e suas configurações familiares. Segundo o autor, dentre os estudantes pesquisados há casos de “fracassos” previsíveis, ou seja, lares com uma realidade difícil vivida por alunos cujos pais possuem nenhuma ou pouquíssima escolarização, profissões não qualificadas, o que pode ser considerado como baixo capital cultural, alguns, inclusive imigrantes com pouco domínio da língua francesa etc.
Existem ainda casos de “fracassos” improváveis, isto é, lares onde os pais possuem maior nível de escolarização, por exemplo, com condições mais favoráveis a educação de seus filhos, com desempenho escolar bastante ruim por estar abaixo da média exigida nas escolas, até casos de “sucesso” de alunos que, apesar de viverem em condições bastante difíceis no que tange o desempenho escolar, obtiveram um resultado considerado excelente. Segundo Lahire (1997) no que tange as semelhanças de origem social e condições de vida, as trajetórias escolares percorridos por esses alunos são complexas e diversas. Nesse sentido, ele se deteve, entre outras causas, nas razões do improvável.
Nessa perspectiva, Viana (2006) investigou em seu trabalho denominado “Longevidade escolar em famílias de camadas populares: Algumas condições de possibilidade”, uma problemática de fundo comum: as condições que possibilitam o fenômeno, estatisticamente improvável, da longevidade escolar em meios populares. Diante disso, a autora analisou sete casos de estudantes de meios populares, que possuem como características familiares, pais com baixo nível de escolarização e profissões informais, que lhes ocasiona baixa remuneração, entre outros indícios que as identificam como sendo oriundos de classes populares. Eles conseguiram ingressar na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), esses sujeitos foram selecionados no interior de um corpus de 120 autobiografias escolares produzidas de forma escrita.
Nessa análise bibliográfica Viana (2006) traz reflexões importantes para se pensar as relações de longevidade escolar nas camadas populares. A autora também constatou a presença de práticas socializadoras nessas famílias. No entanto, ela não encontrou “superinvestimento familiar” entre os entrevistados, ao contrário das camadas médias, onde as estratégias escolares são previamente definidas.
A contribuição de Écio Portes (1998) relativa à trajetória escolar de estudantes desfavorecidos economicamente decorre de uma pesquisa que buscou analisar o cotidiano universitário de um grupo de alunos que ingressaram através do vestibular na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em cursos considerados de alto nível, a constar: Ciência da Computação, Comunicação Social, Direito, Engenharia Elétrica, Fisioterapia e Medicina. Segundo o autor, são trajetórias “estatisticamente improváveis”, pois elas contrariam as previsões acerca das possibilidades reais desses estudantes obterem êxito nesses cursos como afirma Portes (1998, p. 11) “a entrada nessas carreiras parece ser restrita àqueles que possuem um volume mais significativo de capital escolar e cultural”.
Para sustentar sua pesquisa Portes dialoga com Terrail, Laurens, Lahire, Viana, entre outros, com o intuito de compreender as formas de acesso ao ensino superior por esses estudantes. Esses trabalhos no Brasil tomam como ponto de partida o sujeito já no interior do curso superior, ou seja, observam uma trajetória de “sucesso”. Portes, assim como Viana e Lahire, encontrou alguns traços marcantes relacionados às redes familiares que auxiliaram no ingresso desses jovens, a constar: à presença frequente dos pais através de uma ordem moral doméstica, a atenção em relação às atividades escolares dos filhos, ou até mesmo ao apoio de professores direcionando os mesmos para a garantia de uma trajetória segura de escolaridade.
Vale ressaltar, que Bernard Lahire utilizou apenas as notas do exame nacional de Língua Francesa e Matemática, para essa pesquisa, isso, no entanto, não diminui em nenhum momento a importância de seu trabalho. Nessa perspectiva, a opção por seu trabalho diz respeito às reflexões expostas relacionadas à complexidade das configurações familiares, que em consonância com os investimentos pedagógicos proporcionaram aos seus filhos o sucesso ou fracasso dos mesmos. De acordo com isso acredita-se que não é objetivo deste trabalho encontrar uma definição para o que seria sucesso ou fracasso escolar.
No entanto, devido á relevância desses conceitos para este trabalho é importante enfatizar que todos os autores brasileiros, de maneira geral, definem as trajetórias bem sucedidas desses indivíduos como, “sucesso escolar” ou “longevidade escolar”, e atribuem como indicador o ingresso no ensino superior. Em consonância com isso Lahire (1997, p.53), afirma que: “não é papel do sociólogo, dizer o que é ‘fracasso’ e o que é ‘sucesso’ escolar. Estas palavras são categorias, primeiro e antes de tudo, produzidas pela instituição escolar”
Nesse sentido, para Lahire (1997), não se pode compreender o desempenho escolar dos alunos apenas como resultado das condições sociais, econômicas e culturais de suas famílias,ou seja, somente esses aspectos não refletem a complexidade e diversidade dos perfis apresentados, pois é preciso investigar o contexto do lugar e a subjetividade de cada indivíduo, além de muitos outros fatores que podem influenciar no desempenho escolar de alunos de origem popular.
Essa subjetividade é o habitus que decorre das necessidades de mudanças das condições sociais a que o sujeito está inserido. Segundo Bourdieu (1990, p. 28) “o habitus é um conceito que nos permite pensar sobre a mediação existente entre condicionamentos sociais e subjetividade dos indivíduos”. Para Setton (2002) a superação da contradição entre indivíduo e sociedade na obra de Bourdieu é compreendida por meio dessa teoria que esta inserida em uma imensa variedade de situações sem que nem mesmo o sujeito tenha consciência desse fato.

O todo social não se opõe ao indivíduo. Ele está presente em cada um de nós, sob a forma do habitus, que se implanta e se impõe a cada um de nós através da educação, da linguagem etc. Tudo o que somos é produto da incorporação da totalidade. Habitus é o que permite aos indivíduos fazer escolhas, tomar decisões, agir. (BOURDIEU, 2002, P.33).

Sendo assim, o habitus é um conjunto de percepções, valores que auxiliam o indivíduo a circular, tanto física quanto simbolicamente no espaço social. É formado por esquemas de percepção e de ação que fazem de cada agente um indivíduo singular e, ao mesmo tempo, membro de um grupo ou classe social. É um conjunto de disposições que se acumulam ao longo da vida e que se devem à origem e à trajetória sociais. Ele é produto da incorporação da necessidade, uma espécie de natureza, porém uma natureza socialmente construída.
Dentre outros fatores mencionados ainda por Lahire que influenciariam no sucesso escolar, podemos citar aquele referente ao aspecto psicológico, isto é, apesar de nem sempre ele mencionar como psíquica algumas questões abordadas por ele, podemos inferir, por exemplo, que os medos e os sofrimentos decorrentes de traumas que acontecem no interior das relações familiares influenciam em atitudes negativas nas escolas.
Dessa forma, ele afirma que o aspecto psicológico seria até mais importante que o capital cultural e a escolarização dos pais. Segundo Lahire, (1997, pag. 345) “É sem dúvida preferível ter pais sem capital escolar a ter pais que tenham sofrido na escola e que dela conservem angústias, vergonhas, complexos, remorsos, traumas ou bloqueios”.
Com o objetivo de exemplificar o que seria sucesso improvável, considera-se oportuno relatar um dos casos pesquisados por Lahire. Por exemplo, é o caso de uma garota, filha de imigrantes argelinos, sua mãe é faxineira e analfabeta, o pai por sua vez lê apenas em árabe e é operário do setor de serviços. A família possui outros dois filhos que estão na escola e são eles que auxiliam a irmã com as atividades escolares, muitas vezes são até mesmo agressivos com ela.
Partindo dessa premissa, observa-se então, que essa criança é a típica estudante de meios populares que estaria fadada ao fracasso. No entanto, ela obteve 7,2 - considerada uma nota excelente - no exame nacional. Mas,além disso, ela é descrita por seu professor como ótima aluna, pois compreende as regras escolares. Segundo Lahire, as famílias transmitem através de atitudes, hábitos e atos um conjunto de procedimentos que se refletem na vida escolar de seus filhos:

A criança constitui seus esquemas comportamentais, cognitivos e de avaliação através das formas que assumem as relações de interdependência com as pessoas que a cercam com mais frequência e por mais tempo, ou seja, os membros de sua família. Ela não “reproduz”, necessariamente e de maneira direta, as formas de agir de sua família, mas encontra sua própria modalidade de comportamento em função da configuração das relações de interdependência no seio da qual está inserida. Suas ações são reações que ‘se apoiam’ relacionalmente nas ações dos adultos, que sem sabê-lo, desenham, traçam espaços de comportamentos e de representações possíveis para ela (LAHIRE 1997, P.17).

Diante disso, observa-se que o sucesso escolar é a combinação singular da configuração familiar a que os alunos estão expostos que possibilita a explicação desse êxito escolar improvável, isto é, apesar de muitos pais não terem condições de auxiliar seus filhos nas atividades escolares, eles contribuem comprando livros, acompanhando a biblioteca, ou simplesmente estimulando a dedicar-se aos estudos. Em suma, na ausência de um capital cultural relativo à família, o que a pesquisa demonstra, é que no interior dessas famílias existem práticas que viabilizam o sucesso escolar, mesmo com todas as adversidades impostas pela situação, sejam elas de ordem econômica, cultural ou social de sua família.
Bourdieu (1996) chama isso de osmose, isto é, não existe uma ação intencional, metódica, isto acontece de forma aleatória através de compra de livros, revistas, jornais, dicionários etc. mesmo que muitos pais não tenham o hábito de ler, eles consideram importante que seus filhos leiam. O mesmo acontece com as regras familiares relativas ao horário de estudo, diversão, realização das atividades escolares ou simplesmente ouvindo os relatos dos filhos sobre sua rotina escolar. As crianças percebem que os pais, mesmo com todas as dificuldades que possuem, se importam com o que acontece com elas e elas, por sua vez, buscam se empenhar nos estudos.
Busca-se agora relacionar o trabalho de Lahire com pesquisas realizadas no Brasil que abordam a problemática do acesso de alunos provindos de meios populares que acessaram o ensino superior.
Diferente de uma visão conhecida pelos sociólogos que se estabelece exclusivamente na relação entre a estrutura de classe e os desempenhos escolares, esses estudos apoiam-se em um conjunto de situações possíveis de explicar as trajetórias de êxito escolar. Além das características sociais das classes desfavorecidas economicamente (tais como a renda, ocupação e escolaridade dos pais), o interesse volta-se para outros elementos que fazem parte das trajetórias escolares bem sucedidas, como as práticas familiares no processo de escolarização.
Nessa perspectiva, segundo CHARLOT (apud VIANA, 2006 P. 56) deve-se considerar que o termo trajetória escolar, é o caminho constituído por fases que no decorrer do tempo demonstram o valor escolar de um sujeito formando-se e adquirindo consistência e, possibilitando dessa forma, em dados momentos, prenúncio quanto ao futuro do percurso dentro do sistema de ensino.

Para alguns dos jovens existe um “curso normal do tempo”, uma rotina da vida, uma sucessão cronológica do tempo: “ Se é criança, tenta-se aproveitar a juventude e, ao mesmo tempo, vencer nos estudos; obtêm-se diplomas, encontra-se um trabalho; casa-se, têm-se filhos. Esses jovens inscrevem seus projetos no tempo longo de uma “vida normal”, que inclui a geração dos próprios filhos. No entanto, essa “vida normal” não está assegurada para jovens oriundos dos meios populares. Para eles, o curso da construção da vida, no tempo, pode ser perturbado e, muitas vezes, interrompido, para melhor ou para pior; a vida pode “balançar” em função de um episódio, ligado, seja à família, ao trabalho, à escola, à religião, à droga, a partir do qual há um “antes” e um “depois”. O tempo da vida pode ser atravessado por rupturas que desorganizam o curso normal da vida. Alguns desses jovens vivenciam esse fenômeno com algum nível de fatalismo. Outros, ao contrário, pensam que é preciso “provocar” as coisas, porque nada, jamais, vem sem esforço. (VIANA 2006, P. 202).

Diante disso, a autora buscou identificar formas específicas de presença das famílias populares na escolarização prolongada dos filhos focando, sobretudo, nas práticas socializadoras como um espaço de constituição de disposições facilitadoras de longevidade escolar nesses meios. Sendo assim, ela defende que esta seria uma das formas por meio das quais as famílias populares estariam presentes na escolarização prolongada de seus filhos.

Viana (2006) compreende o conceito de mobilização escolar das famílias como atos sistemáticos e intencionais visando sempre o bom rendimento escolar de seus filhos. A mesma mobilização é percebida por Lahire (1997) em sua pesquisa com crianças francesas. No entanto, Viana afirma que a longevidade escolar é possível sem essas mobilizações familiares, justamente por ela não ter encontrado formas específicas nos casos de estudantes de baixa renda em que ela estudou, diferentemente do que acontece com estudantes de classe média.

Viana e alguns estudiosos como Laurens e Zéroulou enfatizam que os casos de longevidade escolar em meios populares podem ser explicados por uma forte mobilização escolar das famílias. Todavia, se os trabalhos desses pesquisadores mostram que essa mobilização familiar é atributo necessário para o sucesso escolar dos sujeitos analisados, em contrapartida, outras pesquisas, que também abordam essa problemática relacionada ao sucesso escolar em famílias populares, reconhecem predominantemente, a inexistência de práticas familiares que possam ser consideradas como mobilização escolar.

Diante dessa constatação, buscam-se outros fatores explicativos, além do apoio familiar, que influenciam no sucesso escolar desses indivíduos. Haja vista, que as composições familiares divergem nos aspectos sociais, econômicos, culturais. Dessa forma, a autora constatou que existe uma autodeterminação nesses estudantes que os impulsionam a não desistir diante dos obstáculos encontrados, ou seja, ela atribui essa resignação construída na trajetória de escolarização subjetiva dos indivíduos: para Viana (2005, p.52). “essas trajetórias supõe um querer e uma autodeterminação imbatíveis, sobretudo dos filhos, condição sinequa nonde (expressão estrangeira que requer uma nota explicativa) produção de sobrevida escolar em meios populares”.

Outro aspecto abordado por Viana, estar relacionado à importância que essas famílias dispensam com a mobilização escolar. Mobilização esta compreendida como atitudes e práticas voltadas e intencionalmente ordenadas para a garantia do bom desempenho escolar dos filhos. Essas atitudes relativas à mobilização escolar dos filhos foram encontradas também por Lahire em seu trabalho com crianças francesas e o mesmo aconteceu com Portes em sua pesquisa com estudantes universitários.

Com o intuito de enfatizar as práticas familiares encontradas pelos autores mencionados neste trabalho, no que concerne ao valor da instituição familiar e ao desempenho escolar desses estudantes para sustentar as questões que se apresentam neste trabalho, considera-se também indispensável explicar o conceito de família, diante das configurações familiares atuais.  Sendo assim, de acordo com o Dicionário Aurélio (1999, p.877), família significa: ”[...] o pai, a mãe e os filhos; pessoas unidas por laços de parentescos, pelo sangue ou por aliança; [...] comunidade formada por um homem e uma mulher, unidos por laço matrimonial, e pelos filhos nascidos dessa união”.

No entanto, na atualidade a noção de família tem o significado bem mais amplo, portanto, de acordo com o mesmo dicionário: “Grupo formado por indivíduos que são ou se consideram consanguíneos uns dos outros, ou por um descendente de um tronco ancestral comum e estranho admitidos por adoção”, ou até mesmo amigos que habitam o mesmo espaço por um determinado tempo pode ser considerado família.

Nesse sentido, Pereira afirma que a família tem papel fundamental como unidade de reprodução social. Para BOURDIEU (apud PEREIRA, 2008, p. 29) “Esse papel é determinante na manutenção da ordem social, na reprodução, não apenas biológica, mas social, isto é, na reprodução da estrutura do espaço social das relações sociais”. Dessa forma, na teoria desenvolvida por ele, o sucesso escolar está vinculado a redes de apoio familiares (família, parentes, amigos), que se ajudam de diversas formas, seja com apoio financeiro, moradia, alimentação, ou simplesmente com palavras de incentivo.

Vale ressaltar outro aspecto mencionado por Pereira que é em relação ao número de filhos das famílias das classes populares, pois quanto menor o número de filhos, mais condições de investimento financeiro torna-se possível para cada um dos filhos, seja em educação, saúde ou lazer.

Limitando a própria família a um número reduzido de filhos, quando não ao filho único, no qual se concentram todas as esperanças e esforços, o pequeno burguês não faz mais do que obedecer ao sistema de exigências que está implicado em sua ambição: na impossibilidade de aumentar a renda, precisa reduzir a despesa, isto é, o número de consumidores. (BOURDIEU, APUD PEREIRA, 2011, P. 29).
                                                                  
Dessa forma compreendemos que a composição reduzida da família, aliada às estratégias escolares que visam o desempenho escolar de mobilização, possibilita longevidade escolar comprovada, desde que haja controle de todas as outras variáveis. Nesse sentido, LAHIRE, (apud SETTON, 2011) chama atenção para as formas familiares de investimento pedagógico. Elas se referem ao empenho da família em um projeto de ascensão social via sistema de ensino que se realiza desde a procura por uma melhor escola pública da região à oferta de condições propícias aos estudantes por meio da compra de livros e material didático.

Nesta perspectiva, para LAURENS E ZÉROULOU (apud VIANA; 2009) alguns estudos enfatizam que os casos de longevidade escolar em meios populares podem ser explicados por uma forte mobilização escolar das famílias. Sendo assim, a mobilização familiar seria condição indispensável para se obter sucesso escolar. No entanto, o indivíduo de origem popular que não possui estruturas familiares que supostamente lhes facilitariam absorver as regras educacionais impostas pela classe dominante, faria “manobras” próprias que de uma forma ou de outra lhes dariam condições de acesso ao ensino superior.

Nesse sentido, o fenômeno do sucesso escolar em meios populares seria uma forma de mobilização tanto da família como do próprio sujeito que de alguma forma venha a acessar o ensino superior dentro da probabilidade das exceções minimamente comprovadas em casos singulares de êxito escolar.


                                                               CAPÍTULO III

3.1- CONTEXTO HISTÓRICO

Para se descrever as quatro universidades públicas que os estudantes frequentavam na época em que foram lançados os livros pelo MEC é necessário que se faça um pequeno contexto histórico da implantação do ensino superior no Brasil. Segundo ALMEIDA (apud SANTOS; 2006) o processo de fundação da educação superior é bastante complexo existindo quatro (04) momentos peculiares quanto à esse nível de ensino.
O primeiro momento se estendeu do século XVI ao início do XIX, quando apenas uma parcela pequena da população, que fazia parte da aristocracia brasileira encaminhava seus filhos à metrópole portuguesa, onde principalmente na Universidade de Coimbra, concluíam seus estudos. Um segundo momento está relacionado à vinda da família real portuguesa para o Brasil em 1808 e persistiu até meados do século XX.

A atenção dada ao ensino superior reforçava o caráter elitista e aristocrático da educação brasileira, que privilegiava o acesso aos nobres, aos proprietários de terra e a uma camada intermediária, surgida da ampliação dos quadros administrativos e burocráticos da época. (ARANHA, 2006, P.226)

O terceiro momento do ensino superior, está relacionado ao processo de urbanização das grandes cidades. Porém, ainda nesta fase não havia uma “democratização” do ensino superior, pois os estudantes de baixa renda estavam excluídos desse processo. No entanto, segundo Almeida (2006) nesta fase, houve um aumento significante quanto ao número de alunos com idade mais elevada, de trabalhadores em tempo parcial ou integral. Esse fato refletiu em um novo perfil do alunado universitário. Porém, aqui ainda temos de forma predominante indivíduos de camadas médias, ou seja, as chamadas camadas populares raramente tinham acesso a esse nível de ensino.

Somente a partir da segunda metade da década de sessenta se observa um acréscimo acentuado das vagas nas instituições de ensino superior. Nesse novo cenário passa a existir uma “diversidade acadêmica”, mesmo que parcial contrapondo-se à homogeneidade e exclusividade de outrora. (FLORESTAN apud ALMEIDA, 2006, p.03)

E finalmente, na década de 1990 com os acontecimentos que surgiram em decorrência da ampliação da educação fundamental e do ensino médio, surge uma clientela que passa a reivindicar vagas no ensino superior. Essa exigência ocorre por parte da classe média baixa e de baixa renda.

A ampliação dos níveis anteriores acabou por trazer à cena nova exigência por vagas, agora no ensino superior, e especialmente nas instituições públicas. A demanda parte de um novo estrato social, que cursou majoritariamente a escola pública e que em geral não teria as mesmas facilidades da classe média em financiar seus estudos superiores. É sintomático desse novo perfil de estudantes o tipo de movimentos sociais que surgiram reivindicando melhorias no acesso ao ensino superior, como o fenômeno dos cursos pré-vestibulares alternativos, de baixo custo e voltados para alunos carentes e/ou negros; as ações pela gratuidade nas taxas de inscrição dos vestibulares; o movimento dos Sem-Universidade; o retorno da discussão sobre a universidade popular; as propostas pelo fim do vestibular; e as políticas de ação afirmativa através de cotas sociais e raciais. Numa conjuntura de expansão, muitas dessas medidas alcançaram legitimidade política e ganharam força no debate sobre democratização do final dos anos 90. (ALMEIDA 2006, apud MOEHLECKE, 2004 P.42)

Esse fato, no entanto não significou a democratização do ensino, pois para os alunos de baixa renda que almejam acessar o ensino superior, ainda é preciso desviar de toda a sorte de obstáculos, e um deles é o processo seletivo (também conhecido como vestibular) adotado nas instituições brasileiras, que buscam principalmente selecionar os “estudantes mais bem preparados”.

O processo de seleção adotado, o vestibular, assentado no princípio da meritocracia e da equidade ignora as desigualdades, servindo como máscara e justificativa para a indiferença às desigualdades diante do ensino, da cultura e da renda. Nos termos de Bourdieu (2002, p. 53), “a equidade protege melhor os privilégios do que a transmissão aberta aos privilegiados”. “Assim, mesmo em um contexto de forte expansão da educação superior, permanecem reduzidas as chances daqueles com menor quantidade de bens econômicos e culturais chegarem ao ensino superior”. (PEREIRA; PASSOS, P. 22)

                   Dessa forma, o debate a respeito das desigualdades sociais intensifica-se no decorrer dos anos de 1990, e com isso, aos poucos, grupos historicamente marginalizados ganharam vez na discussão, como os estudantes de baixa renda, os deficientes, os negros e os indígenas.
                   Deste então, vêm sendo discutida a melhoria e democratização do ensino superior pela sociedade civil e organismos internacionais vêem exigindo do governo políticas públicas que ampliem, não apenas o acesso, mas que garantam condições de permanência dos estudantes de baixa renda nesse nível de ensino.

3.2 - PERFIL DAS IFES ANALISADAS - UNIDADES ESPACIAIS DE REFERÊNCIA

É indispensável para este estudo descrever o perfil das quatro (04) universidades que os estudantes beneficiados pelo programa conexões de saberes frequentam. Sendo assim, duas estão localizadas na região sudeste, são elas: UFRRJ (Universidade Federal Rural do rio de Janeiro) e a UNIRIO (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), elas situam-se no mesmo Estado. Sendo que as duas da região norte, são: A Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) e a Universidade Federal de Rondônia (UNIR).
Como foi explicado anteriormente, o ensino superior no Brasil iniciou tardiamente, se comparado com outros países, inclusive da própria América Latina. Nesse sentido, as instituições quando surgiram, não tinham estruturas de universidades, eram apenas escolas destinadas à formação de profissionais para atender os membros do Estado Nacional. Dessa forma, somente em 1909 surgiu a primeira instituição com status de universidade, que foi a Universidade de Manaus, hoje conhecida como Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Dessa forma, as universidades brasileiras são classificadas da seguinte forma: públicas e privadas. A primeira é mantida pelo governo com recursos públicos, e os alunos não necessitam pagar nada pelo ensino recebido. De acordo com a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDB) no Artigo 207 que direciona quanto à finalidade do ensino superior brasileiro, afirma que: As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
 Em relação às instituições privadas os mantenedores são empresários ou institutos e a educação fornecida possui um custo mensal pago pelos estudantes que a frequentam, de acordo com a constituição federal e a LDB, em seu artigo 209 (citado da mesma forma nas duas), consta que: o ensino é livre à iniciativa privada, desde que atendidas as seguintes condições: Inciso I- Cumprimento das normas gerais da educação nacional; II-Autorização e avaliação de qualidade pelo poder público.
A UFRRJ foi fundada com o decreto 8.319 em outubro de 1910, assinado por Nilo Peçanha, Presidente da República, e por Rodolfo Nogueira da Rocha Miranda, Ministro da Agricultura. Este decreto estabeleceu as bases fundamentais do ensino agropecuário no Brasil, criando a Escola Superior de Agronomia e Medicina Veterinária, inaugurada oficialmente em 1913. É considerada de grande porte, com um dos maiores campus universitário do país e da América Latina, é também uma das mais antigas do país com um imenso contingente de alunos de várias partes do país e até mesmo do exterior. Historicamente a UFRRJ, é conhecida como Universidade Rural do Brasil, por ter estabelecido as bases do ensino agropecuário no país.
Quanto a UNIRIO, é uma instituição brasileira de ensino superior de nível federal, fundada em 1979 pela Lei n° 6.655, esta localizada na cidade do Rio de Janeiro e é a antiga Federação das Escolas Federais Isoladas do Estado do Rio de Janeiro. Através da lei nº 10.750, de 24 de outubro de 2003, passou a se chamar Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, com sede na capital fluminense.  É considerada uma das maiores do Brasil em contingente docente e discente.
Nesse sentido, dentre os diversos cursos ministrados na UNIRIO alguns são bastante tradicionais e prestigiados. Vários deles, inclusive, precursores em suas respectivas áreas, datando do início do século XX, como os de Medicina de 1912 e o de Enfermagem de 1890. Outro curso bastante tradicional é o de Museologia, fundado em 1932, é o mais antigo da América do Sul.
As outras duas instituições estão na região Norte, são: UNIR e UNIFAP localizam-se em Estados diferentes, e são consideradas as mais recentes e de menor porte do país. O número de alunos que frequentam essas IFES, é relativamente pequeno se comparado com as outras duas da Região Sudeste.
A UNIR é a maior universidade do Estado de Rondônia, sendo a única pública, foi fundada em 1982. Em 2008, a UNIR foi considerada pelo MEC, como a melhor universidade da Região Norte, graças ao seu desempenho no Índice Geral de Cursos (IGC) origem do sistema educacional.
Em relação à UNIFAP, foi fundada em dez (10) de abril de 1987 e surgiu com a criação do Estado do Amapá que até então era um território federal. Foi criada de acordo com a Lei nº 7.596, de 10 de abril de 1987. É a única instituição pública federal do Estado, possui 24 cursos e 6 campus localizados nos Municípios de Macapá, Santana, Tartarugalzinho, Oiapoque, Laranjal do Jari, e Amapá.


CAPÍTULO IV

4.1-DESIGUALDADES SOCIAIS NO ENSINO SUPERIOR

As desigualdades de acesso ao ensino superior são caracterizadas por muitas formas de exclusão, dentre elas a mais visível seria a social, mais especificamente o fator econômico se torna um entrave para as classes de baixa renda que almejam acessar o ensino superior.
As desigualdades escolares resultam de desigualdades sociais, ou seja, o sistema de ensino opera sobre os estudantes uma ‘seleção natural’, segundo a qual os dotados dos instrumentos de apropriação dos conteúdos escolares, no geral, em condição econômica favorecida, estão mais aptos a obter sucesso nos processos de seleção escolar e a ter uma escolarização prolongada com ingresso em carreira universitária. (PEREIRA E PASSOS 2007; P. 20)

 Nessa perspectiva, os indivíduos das classes favorecidas - econômica, social ou culturalmente - tendem a obter êxito no sistema escolar. Em contrapartida, os sujeitos das classes desvalidas que conseguem ingressar no ensino superior apresentam vantagens sociais que os diferenciam dos demais de sua classe social. Porém, isso não é suficiente, pois devido ao seu escasso acúmulo de capitais, estes estudantes obtêm as posições menos privilegiadas no ambiente acadêmico, esse fato influencia diretamente no cumprimento das atividades acadêmicas, além das dificuldades no custeio dos estudos e na inclusão social e simbólica, tudo em virtude de sua posição social.
Dessa forma, ao se fazer um paralelo teórico entre igualdade e a desigualdade, historicamente segundo os ideais da igualdade, nos deparamos com a concepção de justiça que explica e estabelece a organização das sociedades modernas.

A igualdade é um projeto, um princípio de organização que estrutura o devir de uma sociedade. […] O princípio de igualdade […] é um movimento através do qual a sociedade procura libertar, ainda que parcialmente, os indivíduos da sua história para lhes permitir enfrentar melhor o seu futuro, abrindo-lhes um leque de escolhas que certas circunstâncias do seu passado restringiram em demasia. A idéia de igualdade instaura um combate contra o determinismo, a explicação linear do futuro pelo passado. (FITOUSSI; ROSANVALLON apud SEABRA 2009, P. 74, 75)

Sendo assim, Seabra (2009), afirma que as igualdades de oportunidades dentro do sistema educacional são diferenciadas para aqueles que possuem recursos financeiros. Aos que são desfavorecidos economicamente ficam relegados para as posições mais indesejáveis, para as fileiras menos privilegiadas, e consequentemente, para os diplomas de menor valor representativo no conceito da classe dominante.
Segundo Ferraz (2009) as IFES por serem mantidas, essencialmente, por recursos públicos, administrados pelo Estado, deveriam ser acessadas largamente pelas classes desfavorecidas economicamente, não apenas por fazerem parte da grande maioria da população, mas por ser desse estrato social que se origina grande parte dos impostos que mantém essas instituições.
Dessa forma, mesmo com todas as tentativas de possibilitar maior igualdade de oportunidades, tanto ao nível das condições de acesso como das condições de permanência no sistema educacional, os sistemas acabam causando uma segregação escolar, adquirindo, diante disso, diversas formas de exclusão no interior do próprio sistema de ensino.
Segundo BOURDIEU; CHAMPAGNE (apud SEABRA, 2009, p.79) “a escola atual, ao guardar no seu seio aqueles que excluem, gera os “excluídos do interior”. De acordo com estes autores, a escola exclui sempre, de uma maneira permanente e sutil, através de uma seleção cada vez mais precoce, são “práticas de exclusões doces, ou melhor, insensíveis”.
Dessa forma, supõe-se que uma das definições do que seria uma universidade democrática e socialmente justa, seria levar em consideração, de que toda essa diversidade étnica e social que forma o Brasil, tanto no que refere ao conhecimento produzido e socializado,como nos três aspectos que fundamentam o ensino superior (ensino, pesquisa e extensão), devem ser valorizadas na sua totalidade para que o estudante carente consiga ingressar e se manter nesse nível de ensino.

A precariedade da Educação Básica brasileira não é recente, e historicamente ela está aquém dos patamares desejáveis de qualidade de ensino. O aluno que usufrui do ensino público muitas vezes faz parte da classe social menos privilegiada da sociedade e acaba sofrendo as consequências desse ensino deficitário. Geralmente este aluno, que dispõe de menos recursos financeiros, não pode ter acesso a uma educação privada, sente-se excluído, e, muitas vezes um aluno com um sentimento de exclusão devido a sua classe social, acaba optando por uma desistência antecipada, antes que o próprio sistema (educacional, social, econômico, político, etc.) o elimine. (SOUZA E BRANDALISE, 2011, P.01).

Sendo assim, percebe-se um crescimento sutil relativo ao ingresso de estudantes de baixa renda e negros no ensino superior. Esse crescimento vem ocorrendo desde 1990, e deve-se, em parte, à institucionalização por parte do Estado de ações afirmativas na área educacional. Dessa forma, muitos estudantes que não tinham chance de disputar a uma vaga no ensino superior público, por diversas razões, tais como: Etnia e classe social, estão acessando esse nível de ensino, em muitos casos, graças às políticas de ações afirmativas.

4.2 - CONTEXTO DAS AÇOES AFIRMATIVAS

As diversas discussões que ocorrem no cenário político e educacional têm ocupado espaços relevantes no que concerne às políticas públicas que visam à igualdade de oportunidades no ensino superior atual. Nessa perspectiva, é indispensável destacar a importância do reconhecimento do direito à igualdade que todos os cidadãos têm,  no que tange a garantir o direito à diferença.
Sendo assim, surge a política de cotas nas instituições de ensino superior, com o objetivo de garantir oportunidades diferenciadas àqueles que têm necessidades diversificadas. Dessa forma, a política de cotas é uma política afirmativa elaborada pelo Estado Brasileiro, com o intuito de elevar o número de alunos oriundos de classes minoritárias marginalizadas historicamente do ensino superior e de outros setores da sociedade.
Nesse sentido, as políticas de ações afirmativas têm seus alicerces históricos nos Estados Unidos, mais precisamente em 06 de março de 1961, com a assinatura da Ordem Executiva, nº 10.9251, pelo presidente John Fitzgerald Kennedy. A Ordem instituía que as empresas interessadas em firmar contratos com a administração pública, deveriam promover a diversidade e a igualdade racial na composição de seu corpo de empregados.

As empresas contratadas por entidades públicas ficavam obrigadas a adotar ‘uma ação afirmativa’ com o objetivo de fazer crescer a contratação dos grupos que eram considerados minorias, desigualados socialmente, e por extensão, juridicamente. (CRISPIM apud ATCHABAHIAN, 2011, p. 167)


No entanto, somente em 1963 o termo Ação Afirmativa, que foi criado pelo presidente John Fitzgerald Kennedy, e nasceu da necessidade de enfrentamento da segregação racial e promoção de igualdade entre negros e brancos nos Estados Unidos dos anos 1950 e 1960.

A princípio, as Ações Afirmativas se definiam como um mero “encorajamento” por parte do Estado a que as pessoas com poder decisório nas áreas públicas e privadas levassem em consideração, nas suas decisões relativas a temas sensíveis como o acesso à educação e ao mercado de trabalho, fatores até então tidos como formalmente irrelevantes pela grande maioria dos responsáveis políticos e empresariais, quais sejam, a raça, a cor, o sexo e a origem nacional das pessoas. Tal encorajamento tinha por meta, tanto quanto possível, ver concretizado o ideal de que tanto as escolas quanto as empresas refletissem em sua composição a representação de cada grupo na sociedade ou no respectivo mercado de trabalho. (GOMES, 2001, P. 05).

Dessa forma, no decorrer dos anos 70, o significado de ação afirmativa, passou a estar ligado à efetivação da igualdade de oportunidade por meio da obrigatoriedade na execução de cotas rigorosas de acesso de representantes das minorias a determinados estabelecimentos educacionais e esferas do mercado de trabalho. Nesse sentido, as políticas de ações afirmativas vêm se moldando de acordo com as necessidades atribuídas ao contexto de cada momento. Na atual conjuntura o mais notório é o sistema de cotas, que estabelece um determinado número de vagas em espaços específicos da sociedade.

Sendo assim, as ações afirmativas ou políticas reparatórias buscam inserir indivíduos que são marginalizados e que tiveram seus direitos mais básicos negados, historicamente. Políticas como essas visam compensar a balança social, que privilegia e beneficia determinados grupos hegemônicos, no que tange o acesso aos bens sociais e materiais, ou seja, o individuo não é excluído somente pelo contexto histórico, mas também pelo fator econômico que contribui para que ele permaneça nesta situação de vulnerabilidade social.

Em relação ao Brasil as discussões acerca das ações afirmativas ganharam força na década de 90, quando se amplia o debate sobre a questão racial. A Constituição Brasileira prevê em seu artigo 37 inciso III, a reserva de vagas para deficientes físicos na administração pública. Esse fato tornou-se um dos momentos marcantes, em relação às minorias, pois essa legislação visa proteger os direitos das pessoas portadoras de deficiência física.

Em meados dos anos 90 o governo da época, após diversos debates com a sociedade civil organizada, programou através do Ministério da Justiça e por um grupo de intelectuais brasileiros e norte-americanos, assim como lideranças e ativistas negros, uma reunião em que abordaram questões relacionadas às ações afirmativas e multiculturalismo no país. Em pouco mais de cinco anos, essas discussões deram origem a uma diretriz do Ministério da Educação e surgiu a primeira reserva de vagas para negros em uma universidade pública.

Nessa perspectiva, em 2001 as ações afirmativas tornaram-se uma ferramenta que visa reparar as desigualdades sociais e raciais que surgiram através de discriminações e conceitos negativos historicamente construídos, relativos às minorias no Brasil. Esse fato teve maior repercussão em decorrência de uma forte mobilização para a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, na África do Sul.

Nesse sentido, em decorrência da realização da Conferência de Durban, as autoridades responsáveis sugeriram que diante das propostas apresentadas, especificamente nos parágrafos 107 e 108, são responsabilidades do Estado viabilizar políticas de ações afirmativas, para suavizar um passado discriminatório.

107. Destacamos a necessidade de se desenhar, promover e implantar em níveis nacional, regional e internacional, estratégias, programas, políticas e legislação adequadas, os quais possam incluir medidas positivas e especiais para um maior desenvolvimento social igualitário e para a realização de direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais de todas as vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, inclusive através do acesso mais efetivo às instituições políticas, jurídicas e administrativas, bem como a necessidade de se promover o acesso efetivo à justiça para garantir que os benefícios do desenvolvimento, da ciência e da tecnologia contribuam efetivamente para a melhoria da qualidade de vida para todos, sem discriminação;

108. Reconhecemos a necessidade de se adotarem medidas especiais ou medidas positivas em favor das vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata com o intuito de promover sua plena integração na sociedade. As medidas para uma ação efetiva, inclusive as medidas sociais, devem visar corrigir as condições que impedem o gozo dos direitos e a introdução de medidas especiais para incentivar a participação igualitária de todos os grupos raciais, culturais, lingüísticos e religiosos em todos os setores da sociedade, colocando a todos em igualdade de condições. Dentre estas medidas devem figurar outras medidas para o alcance de representação adequada nas instituições educacionais, de moradia, nos partidos políticos, nos parlamentos, no emprego, especialmente nos serviços judiciários, na polícia, exército e outros serviços civis, os quais em alguns casos devem exigir reformas eleitorais, reforma agrária e campanhas para igualdade de participação (DECLARAÇÃO DE DURBAN, 2001, p. 21).

De acordo com esse documento, é função do Estado estimular a implantação e a ampliação de planos em âmbito nacional que promovam a diversidade, igualdade, justiça social, oportunidades e participação de seus cidadãos de todos os segmentos da sociedade brasileira. Sendo assim, o governo brasileiro tem a obrigação de estabelecer e executar políticas de combate ao racismo e toda forma de discriminações.

Em face desse compromisso foi criado o Programa Nacional de Ações Afirmativas através do Decreto Federal 4.228/02, que lança as medidas de estímulo à inclusão de mulheres, afrodescendentes e portadores de deficiência. Em 2003, de acordo com a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR), foi instituído o Decreto 4.886/03 que enfatiza que “para se romper com os limites da retórica e das declarações solenes é necessária à implementação de ações afirmativas, de igualdade de oportunidades, traduzidas por medidas tangíveis, concretas e articuladas”.

Diante disso, em 2003 a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) foi à primeira IFES a conceder reserva de vagas de cotas raciais. Isso só foi possível em decorrência de uma lei aprovada na Assembléia Legislativa Estadual. Neste mesmo ano outras instituições, como: Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) também ofertaram vagas. E posteriormente em 2004, o sistema de cotas é implantado pela Universidade de Brasília (UnB).

Diante dessa premissa surge uma pequena mudança no quadro de vagas relativas ao acesso das minorias nas instituições federais de ensino superior, que ficou mais evidente com a Lei nº 3.627, de 2004, que se instituiu o Sistema de Reserva de Vagas para estudantes oriundos de escolas públicas, especialmente negros e indígenas. Em 2008 foi apoiado no Projeto de Lei N.º 180/08, uma proposta de política de cotas, que beneficiasse o ingresso de negros e pardos tanto nas universidades federais quanto nas estaduais, bem como nas instituições federais de ensino técnico de nível médio.

Nessa perspectiva, este projeto ficou conhecido como “Lei de Cotas”, após a aprovação da Câmara Federal. Ele busca beneficiar (negros, pardos, índios e estudantes de baixa renda) na conquista por uma vaga nas universidades federais do país, concorrendo dentro dos 50% das vagas que são reservadas para alunos egressos de escolas públicas. Sendo assim, o sistema de cotas raciais foi aceito por diversas instituições, cada uma com seu critério próprio de classificação, sendo que os beneficiados devem constar nas três categorias exigidas: alunos de escolas públicas, indígenas, negros ou pardos. Neste caso, observa-se que as ações afirmativas não se destinam apenas as questões raciais, mas, sobretudo de origem, de gênero e ainda a inclusão de deficientes.

No entanto, em agosto de 2012 foi, sancionada a nova lei das cotas que estabelece que 50% das vagas das universidades federais sejam destinadas a estudantes de escolas públicas. A mesma reserva deve ser feita pelos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFES). Vale ressaltar que as instituições têm quatro anos para se adequar à nova regra, que passou a vigorar para o vestibular de 2013 quando foi reservado um número mínimo de 12,5% das vagas para cotistas.

 Nesse sentido, os alunos da rede pública que almejam pleitear uma vaga deverão obedecer ainda a outros dois critérios: o de renda e o étnico. De tal modo, que metade das vagas reservadas aos cotistas deverá ser preenchida por jovens com renda familiar de até 1,5 salários mínimos por pessoa. Isso significa que, quando as cotas estiverem plenamente adotadas 25% das vagas de determinado curso serão preenchidas por candidatos de baixa renda (desde que sejam provenientes da rede pública de ensino).
Sendo assim, o outro critério, além dos candidatos autodeclarados negros, pardos e indígenas estarão garantidas, dentre todas as vagas destinadas a cotistas, será um número de assentos proporcional à participação dessas populações em cada estado brasileiro. Para determinar esse percentual, serão observados dados demográficos do IBGE. Dessa forma, observa-se no esquema abaixo uma divisão hipotética da distribuição pelo sistema de cotas em uma universidade através do novo sistema de cotas de acordo com o IBGE. Diante disso, é necessário reconhecer que a política de ações afirmativas é um esforço do governo na tentativa de amenizar as desigualdades sociais e raciais no Brasil relativas, principalmente no quadro educacional, entretanto, deve-se salientar que isso não é suficiente 
 
Essa proposta surge como aprimoramento jurídico de uma sociedade, cujas normas pautam-se pelo princípio da igualdade de oportunidades na competição entre indivíduos livres, justificando-se a desigualdade de tratamento no acesso aos bens e aos meios apenas como forma de restituir tal igualdade, devendo, por isso, ter caráter temporário, dentro de um âmbito restrito. (FERRAZ, apud MOEHLECKE, 2009, P. 04)
.
Em suma, os argumentos a favor ou contra o sistema de cotas para o ingresso de estudantes na educação superior pública e privada são constantes. Em relação aos que se opõe, justificam que essa medida influencia a questão da meritocracia e gera conflito entre os alunos que são favorecidos e aqueles que ingressam na educação superior pelo vestibular.
Dessa forma, a luta pelo acesso ao ensino superior por estratos sociais menos favorecidos tem levantado diversos questionamentos, principalmente, aquelas que estão voltadas para as relações sociais e raciais no Brasil que durante muito tempo estavam quase silenciadas e que demonstram o quanto os estudantes de classes populares estiveram excluídos do meio educacional.

Sendo assim, a questão do sistema de cotas deve ser amplamente observada, para não cair em uma discussão sem fundamentos e de senso comum, caso contrário, irá se tornar uma política de caráter emergencial. Fato este que acaba por desmerecer esta política que tem como objetivo construir um caráter democrático, voltada para a promoção de acesso e manutenção de estudantes pertencentes a grupos sociais e historicamente discriminados, nas universidades.


CAPÍTULO V

5.1- POLÍTICAS DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR

Com o intuito de ampliar o acesso à educação superior, o Governo Brasileiro criou programas que visam efetivar o acesso e permanência das camadas baixas no ensino superior, considerando a urgência de políticas especificas de reparação social e histórica para determinadas classes sociais. Diante de todos os programas criados dois são relevantes para este trabalho, pois são, atualmente, os que possuem maior demanda por estudantes de classes populares. São eles: O Programa Universidades para Todos (PROUNI) e o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES).
O PROUNI foi estabelecido pela Lei n° 11.096, de 13 de janeiro de 2005. Este programa concede bolsas de estudo parciais e integrais para cursos de graduação e sequenciais em instituições de ensino superior (IES) privadas. As IES que aderirem ao programa terão isenção de alguns impostos e taxas federais, que devem ser pagas ao governo.
 As condições para que o aluno concorra ao PROUNI são as que ele tenha renda familiar de no máximo três salários mínimos e tenha cursado todo o ensino médio em escolas públicas. Diante disso, a escolha do candidato será feita pelas notas obtidas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Mesmo que o estudante não consiga bolsas integrais, ainda existe a possibilidade de financiamento do estudo através do FIES.
Nesse sentido, o ENEM foi concebido em 1998, com o objetivo de avaliar anualmente o aprendizado dos alunos do ensino médio em todo território nacional e, assim, fornecer informações para o Ministério da Educação (MEC). De acordo com as informações colhidas, o MEC organizaria políticas precisas e estruturais com vistas a melhorar o ensino brasileiro de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) do Ensino Médio e Fundamental gerando, dessa forma, em conformação com os indicativos relativos ao cruzamento de dados e pesquisas dos resultados do ENEM, alterações nos mesmos.
Nessa perspectiva, O ENEM tem o objetivo ainda de avaliar o desempenho individual do aluno ao final da educação básica. Vale ressaltar, que o mesmo não tem caráter obrigatório, sendo sua adesão de caráter facultativo. No entanto, a partir de 2009, o ENEM tornou-se também um instrumento classificatório e seletivo para o acesso ao ensino superior.
Todavia, as IFES têm autonomia para escolher entre quatro possibilidades de utilização do novo exame no que tange o processo seletivo, a constar: a) com uma fase única, com o sistema de seleção unificada, informatizado e on-line; b) como primeira fase; c) Combinado com o vestibular da instituição; d) Como fase única para as vagas remanescentes do vestibular.
 O ENEM recebe críticas por parte de alguns segmentos da sociedade que afirmam que este processo não leva em consideração as diferenças regionais brasileiras e que por isso acabam beneficiando Estados mais desenvolvidos.  Segundo Shiroma (2002, p. 119), “os resultados dos exames nacionais de avaliação como o ENEM, são utilizados para estabelecer um ranking institucional, indicando dessa forma os centros de excelência”. Diante disso, as instituições são obrigadas a estar inseridas nesse ranking, visto que o governo federal repassa a maior parte dos recursos financeiros para as instituições que apresentam os melhores resultados.
A pressão da avaliação externa desencadeia na educação básica um processo que é muito comum no ensino superior: a disputa de candidatos por vagas nas melhores escolas. O processo de seleção dos melhores é sutil, a marginalização é dissimulada, um verdadeiro “apartheid” educacional. Apartheid que, operando uma seleção “nada natural”, define quem pode ou não cruzar o portal do shopping educacional (SHIROMA ET.ALL. 2002 P.119).

Dessa forma, no decorrer de onze edições, de acordo com a tabela abaixo, a busca pelo ENEM aumentou consideravelmente, passando de 150 mil para mais de quatro milhões de inscritos. Este aumento expressivo, supostamente esta relacionado, com a utilização dos resultados do exame por instituições de ensino superior, como critério complementar ou substitutivo dos vestibulares. Esse foi o primeiro programa do governo que buscou avaliar todo o sistema de ensino médio inserido no Brasil.


Demonstrativo do  aumento da procura pelo ENEM:
Ano
Nº de inscritos
2010
4.611.441
2009
4.572.126
2008
4.018.070
2007
3.568.592
2006
3.742.827
2005
3.004.491
2004
1.552.316
2003
1.882.393
2002
1.829.170
2001
1.624.131
2000
390.180
1999
346.953
1998
157.221


















Fonte: http://inep.gov.br





Todavia, deve-se considerar, também, que o ENEM serve tanto para acesso às instituições de ensino superior pública, como, às particulares, uma vez que é utilizado como ferramenta de avaliação para aquisição de bolsa para o Programa Universidade Para Todos (PROUNI).
Em se tratando do PROUNI, o ENEM facilita o acesso de milhares de estudantes concluintes do ensino médio a uma universidade particular. A bolsa é um benefício concedido ao estudante pelo Governo Federal e não está condicionada a nenhuma forma de restituição monetária ao governo, ou seja, concluído o curso, o bolsista não fica devendo nada aos cofres públicos.
O PROUNI confere Bolsas de Permanência aos estudantes comprovadamente carentes, sem recursos para se manterem nas faculdades e tem como finalidade financiar, sobretudo, o transporte e a alimentação de alunos com bolsa integral, matriculados em cursos presenciais com no mínimo 6 (seis) semestres de duração e carga horária média superior ou igual a 6 (seis) horas diárias de aula. A escolha dos bolsistas é feita semestralmente, em janeiro e julho, de acordo com a disponibilidade orçamentária e financeira do Ministério da Educação.
Nesse sentido, deve-se mencionar que muitos estudantes de baixa renda que são favorecidos com o PROUNI, não teriam meios para conquistar o seu acesso ao ensino superior e consequentemente não iriam permanecer, devido a sua condição financeira. Nesse sentido, de acordo com o MEC, desde sua criação até o segundo semestre de 2011, o PROUNI já beneficiou cerca de 919 mil estudantes, sendo que desse percentual  67% foram contemplados com bolsas integrais como mostra o quadro abaixo.

Nº de bolsas de estudo parciais e integrais distribuídas pelo PROUNI:


Bolsas parciais
Bolsas integrais
Total distribuído
2005
40.370
71.905
112.275
2006
39.970
98.698
138.668
2007
97.631
66.223
163.854
2008
99.495
125.510
225.005
2009
153.126
94.517
247.643
2010
125.922
115.351
241.273










Fonte: Sesu/MEC



Vale ressaltar, que a bolsa de estudo integral é concedida somente para estudantes que não possuem diploma de curso superior, e cuja renda familiar mensal, não ultrapasse o valor de até um salário e meio, por pessoa. Já em relação às bolsas de estudos parciais com cinquenta por cento (50%) ou vinte e cinco por cento (25%) são cedidas a alunos que não tenham diploma de curso superior cuja renda familiar mensal não exceda o valor de até três salários-mínimos per capita.
Todavia, as bolsas não são destinadas somente para alunos da rede pública, mas também para alunos que cursaram o ensino médio em instituições privadas na condição de bolsista integral, bem como aos estudantes portadores de deficiência, professores da rede pública de ensino, que desejam possuir um curso de licenciatura, Normal, Superior e Pedagogia, independentemente de sua renda. Segundo Marrone (2011) esse programa torna-se muito polêmico, por existirem determinados segmentos sociais, políticos e educacionais que defendem que o dinheiro das isenções de impostos, que são aplicados em instituições que aderem ao PROUNI, deveria ser aplicado, somente, nas IFES públicas. 
Nesse sentido, com o objetivo de fomentar o ensino superior foi criado em 1999 o FIES. Esse programa é regulado pela Lei Nº 10.260, de 12 de julho 2001, é operacionalizado por meio de empréstimo recambiável e agenciado com a instituição financeira que o oferece. O programa tem ganhado crescente participação das IES e, principalmente, dos estudantes em todo país, por oferecer aos universitários escolhidos, recursos suficientes para prover os custos de seus estudos e, dessa forma, concluir seu curso. A participação das IES deve-se ao fato de que o governo possa garantir o recebimento da parcela financiada pelo programa.
A adesão dos estudantes ao FIES, esta relacionado aos juros, relativamente baixos, a expansão do Programa para a pós-graduação, educação profissional, técnica de nível médio, e ainda beneficia estudantes matriculados em programas de mestrado e doutorado, que sejam reconhecidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), com avaliação positiva, e desde que haja disponibilidade de recursos, observada a prioridade no atendimento aos alunos dos cursos de graduação. Esse fato acabou favorecendo determinadas carreiras como as licenciaturas e a medicina no tocante a possibilidade de diminuição das dívidas dos empréstimos. Diante disso, designou-se um fundo que substitui os fiadores, ampliando prazos e melhorando condições de pagamento.
Nesse sentido, o FIES, desde 2005, passou a financiar as bolsas parciais dos alunos assessorados pelo PROUNI que não participam dos processos seletivos regulares do FIES, sendo selecionadas fases específicas para concessão de seus financiamentos. Dessa forma, a Caixa Econômica Federal, que até recentemente era o único agente financeiro do FIES, perdeu essa prioridade, ou seja, desde 2010 o Banco do Brasil também financia o programa e oferece plano próprio de financiamento para estudantes. Em relação aos profissionais da educação básica, que buscam qualificação em cursos de licenciaturas, poderão quitar o financiamento, desde que trabalhem na rede pública por 20 horas semanais, o que lhes garante redução de 1% da dívida por mês trabalhado, isto acontece desde 2011.
Segundo LUCHMANN (apud PACHECO, 2007) é imprescindível garantir que a população mais carente tenha a chance de fazer o curso de graduação e, mais do que isso, que haja meios que favoreçam a estabilidade desses estudantes nesse nível de ensino. No entanto, supõe-se que a variedade de formas de acesso ao ensino superior, não garanta a conquista de um espaço nas universidades, pois seria preciso considerar as intensas desigualdades socioeconômicas do país e a baixa qualidade do ensino básico, que a maioria da população tem acesso.
 Nesse sentido, esses programas, de acordo com Corbucci (2004, p. 698), “constituem-se iniciativa, ainda que tímida, de redistribuição indireta da renda, ao transferir recursos de isenção fiscal a estratos populacionais mais pobres já que tais recursos, caso fossem arrecadados, não beneficiariam necessariamente esses grupos sociais”.

Longe de resolver ou de corrigir a distribuição desigual dos bens educacionais, a privatização promovida pelo programa tende a aprofundar as condições históricas de discriminação e de negação do direito à educação superior a que são submetidos os setores populares. A alocação dos estudantes pobres nas instituições particulares cristalizará mais ainda a dinâmica de segmentação e diferenciação no sistema escolar, destinando escolas academicamente superiores para os que passarem nos vestibulares das instituições públicas e escolas academicamente mais fracas, salvo exceções, para os pobres.  (MANCEBO, 2004, P. 86).

Nessa perspectiva, isso pode ser observado de acordo com o perfil dos estudantes que ingressam no ensino superior através desses programas, esse fato mostra que a democratização do ensino é bastante complexa no Brasil. Segundo Carvalho (2006) quando se comparam os dados, da renda familiar per capita em salários mínimos da população que frequentam esses programas nas faixas acima de três salários mínimos (3s.m.), a proporção de estudantes é superior a 35%, ao passo que, com a renda de até um salário (1s.m.), apenas 1,5% frequenta a graduação.  Diante desses dados, é importante salientar que de acordo com os dados do IBGE (2008), 86% da população de 18 a 24 anos enquadram-se nos níveis de renda de menos de três salários mínimos exigidos do público-alvo do PROUNI que não estão sendo contemplados pelo programa.
Desse modo, para FERRAZ (apud CHAUÍ 2009, p.04), “é necessário se pensar a universidade sob outra perspectiva, cujo ponto central seria o reconhecimento da função social da educação, comprometida com o desenvolvimento social”. Nesse sentido, no que concerne às obrigações sociais das IFES, essas não deveriam voltar-se para a exclusão dos cidadãos, para o fortalecimento das relações do mercado, da competitividade e economias de recursos.

O Estado deveria tomar a educação não pelo prisma do gasto público e sim como investimento social e político; a educação deveria ser considerada como um direito, e não um serviço; a utilização do fundo público deveria assegurar os direitos sociais; a universidade deveria ter compromisso com a democratização do saber, dispondo de autonomia institucional, intelectual e financeira. (FERRAZ apud CHAUÌ, 2009, P. 04).

Sendo assim, diante de um quadro social e educacional tão desigual, cabe questionar a efetividade desses programas, uma vez que as camadas de baixa renda não precisam apenas de gratuidade integral ou parcial para estudar, mas de condições que apenas as instituições públicas, ainda, podem ofertar, como: transporte, moradia estudantil, alimentação subsidiada, assistência médica nos hospitais universitários e bolsas de trabalho e pesquisa.


5.2 - O PROGRAMA CONEXÕES DE SABERES

No que tange as políticas públicas de incentivo a educação superior no Brasil, elas ainda não conseguem abranger uma imensa parcela da população, principalmente a de baixa renda. Esse fato pode ser constatado nos índices educacionais relativos ao ingresso da população de baixa renda nas instituições públicas de ensino superior do país. Segundo Zago (2006, p. 228) “A expansão quantitativa do ensino superior brasileiro não beneficiou a população de baixa renda, que depende essencialmente do ensino público”.
        É nesse sentido, que o governo brasileiro, através do Ministério da Educação (MEC) com o objetivo de ampliar a permanência de pessoas oriundas de classes populares ao ensino superior, criou o Programa Conexões de Saberes que busca dar possibilidades aos estudantes de origem popular das universidades públicas para que tenham condições de permanência nas instituições contempladas pelo programa.

Vale ressaltar, que uma das características mais relevantes do programa, é o abarcamento do sistema de educação básica nessa política de inclusão, e em geral, da escola pública em particular, como ambientes propícios para o desenvolvimento de estratégias de articulação entre universidades e comunidades populares. Nesse sentido, o programa Conexões de Saberes, desde o segundo semestre de 2006 faz parceria com o Programa Escola Aberta, suscitando de forma mais calorosa a urgência de enfrentamento com as questões que envolvam não somente a educação superior, mais também a escolarização na educação básica.

À questão da educação básica e/ou da escola pública emerge de forma mais ou menos indireta no âmbito do próprio debate sobre a construção de políticas públicas voltadas para o acesso e permanência de jovens de origem popular na Universidade pública – eixo central em torno do qual se estrutura o programa Conexões de Saberes (MEC, 2007, p. 2).

As principais propostas do Programa além de dar suporte financeiro é estreitar as relações entre os estudantes universitários das instituições públicas e as comunidades populares visando estabelecer um processo contínuo de qualificação como pesquisador através de propostas pedagógicas adquiridas nas universidades, busca também, desenvolver ações sociais nas comunidades por meio de diagnósticos previamente coletados com o intuito de aproximar as comunidades populares e as universidades e estabelecer uma reciprocidade entre conhecimento popular e conhecimento acadêmico.

O Programa se propõe a consolidar e ampliar suas frentes de atuação, visando o fortalecimento de esforços na construção e implementação de políticas públicas baseadas no diálogo e na troca de saberes permanente entre comunidades de baixa renda, escolas e universidades, voltadas, principalmente, para a democratização do acesso e da permanência, com sucesso, nos diferentes níveis do sistema de ensino público. (FERRAZ 2009, p. 09)

Nesse sentido, o Programa foi criado pela Resolução/CD/FNDE/Nº 052, de 25 de outubro de 2004, em parceria com o Observatório de Favelas Populares do Rio de Janeiro, foi difundido nacionalmente nesse mesmo mês, sob a coordenação da Secretaria de Educação Continuada Alfabetização e Diversidade do Ministério da Educação – SECAD/MEC, em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Conta ainda com o apoio do Ministério do Esporte, Ministério da Cultura e do Ministério do Trabalho e Emprego, além de diversas Secretarias Estaduais e Municipais de Educação.

O Programa pretende ampliar o escopo das atividades da escola contribuindo para a melhoria da qualidade da educação no país, promovendo maior diálogo, cooperação e participação entre os alunos, pais e equipes de profissionais que atuam nas escolas, tendo sempre em vista a necessidade de redução da violência e da vulnerabilidade socioeconômica nas comunidades escolares (FERRAZ, 2009, p.15).

Sendo assim, no que tange os critérios para a seleção dos candidatos as bolsas do Programa, é necessário que os estudantes se declarem sem condições financeiras para custear a manutenção dos materiais dos estudos, assim como a alimentação, transporte e etc[1]. De acordo com a tabela abaixo houve uma considerável evolução quanto ao número de beneficiados e de instituições que aderiram ao programa.

Evolução-Conexões de Saberes
Piloto
Universidades
Bolsistas
2004
5
75
2005
14
210
2006
26
520
2007
31
775
2008
33
2.200



 Fonte: MEC/2013

Diante disso, vale ressaltar que apesar da constatação de que aumentou a participação das IFES que aderiram ao programa, assim como, o número de beneficiados, a permanência de estudantes no ensino superior, não é função exclusiva de ações de assistência socioeconômica, mas também de ações de natureza sócio-pedagógica e acadêmica que reconhecem e valorizam a trajetória destes estudantes, criando na instituição um ambiente intelectual receptivo aos saberes que trazem em função de suas experiências escolares, culturais e existenciais.


5.3 - METODOLOGIA


Na universidade, o papel do aluno torna-se mais ativo na aprendizagem e na metodologia científica, a disciplina encarregada de fornecer ao aluno os elementos necessários para este auto-aprendizado. Segundo Demo (1996) a proposta atual da metodologia científica é a de introduzir na academia o gosto pela pesquisa. Para tanto, faz-se necessário à determinação de algumas normas, que têm por finalidade validar um estudo científico, ou seja, os métodos de pesquisa.
Nessa perspectiva, no que tange os estudos e discussões realizados, bem como os dados levantados, concluiu-se que em termos metodológicos o mais adequado é a abordagem do materialismo histórico-dialético, por se constituir em uma pesquisa que apresenta elementos da trajetória de vida dos sujeitos, contidas nos memoriais escritos por esses estudantes, bem como sobre suas condições materiais.  Segundo Malagodi (1988, p. 15) “O caráter genérico do materialismo histórico dialético provém do empenho de compreender o conjunto do movimento e o contexto de vida das sociedades, ou seja, o passado, o presente e suas disposições futuras”.
Neste sentido, o materialismo histórico dialético é uma concepção filosófica que defende que o ambiente, o organismo e os fenômenos físicos tanto modelam os animais e os seres humanos, sua sociedade e sua cultura quanto são modelados por eles. Dessa forma, ao analisar a teoria da sociedade, descobre-se o choque existente entre as classes sociais e seus efeitos sobre o futuro da mesma sociedade. Sendo assim, os recursos materiais estão em uma relação dialética com o psicológico e social. Todavia, essa concepção se opõe ao idealismo, que acredita que o ambiente e a sociedade com base no mundo das ideias, são criações divinas que seguindo as vontades das divindades são influenciadas por uma força sobrenatural.
De acordo com essa teoria as relações sociais são inteiramente interligadas às forças produtivas, ou seja, o capitalismo, que ao adquirir novas formas de trabalho, modifica os homens e o seu modo de produção, a maneira de ganhar a vida e modifica também todas as relações sociais.  Dessa forma, o modo pelo qual a produção material de uma sociedade é realizada constitui o fator determinante da organização política e das representações intelectuais de uma época.
Sendo assim, a base material ou econômica de uma sociedade constitui a infraestrutura social, que exerce influência direta na estrutura macro, ou seja, nas instituições jurídicas, políticas (as leis, o Estado) e ideológicas (as artes, a religião, a moral).  Na teoria Marxista, a base material é formada por forças produtivas (que são as ferramentas, as máquinas, as técnicas, tudo aquilo que permite a produção) e por relações de produção (relações entre os que são proprietários dos meios de produção, as terras, as matérias primas, as máquinas e aqueles que possuem apenas a força de trabalho).
 A inclusão do materialismo histórico dialético, como abordagem metodológica justifica-se para a análise dos memoriais que serão apresentados nesse trabalho, pois o estudo da sociedade, da economia e da história, é necessário para explicar que o capital social influencia nas trajetórias escolares.
O método de procedimento que será utilizado para explicitar as mensagens expostas nos livros será a análise de conteúdo, que segundo Severino (2007) é uma metodologia de análise de informações constantes em um documento, sob a forma de discursos pronunciados em diferentes linguagens: escritos, orais, imagens, gestos, isto é, um conjunto de técnicas de análise das comunicações.
Em consonância a isso Moraes (1999) afirma que: a análise de conteúdo constitui uma metodologia de pesquisa usada para descrever e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos e textos. Essa análise, conduzindo a descrições sistemáticas, qualitativas ou quantitativas, ajuda a reinterpretar as mensagens e a atingir uma compreensão de seus significados num nível que vai além de uma leitura comum.
Ainda segundo OLABUENAGA e ISPIZÚA (apud MORAES, 1999), a análise de conteúdo é uma técnica para ler e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos, que analisados adequadamente nos abrem as portas ao conhecimento de aspectos e fenômenos da vida social, de outro modo, inacessíveis.
Dessa forma, a matéria-prima da análise de conteúdo pode constituir-se de qualquer material oriundo de comunicação verbal ou não-verbal, tais como: cartas, cartazes, jornais, revistas, informes, livros, relatos autobiográficos, discos, gravações, entrevistas, diários pessoais, filmes, fotografias, vídeos, etc. Contudo os dados advindos dessas diversificadas fontes chegam ao investigador em estado bruto, necessitando, então ser processados para, dessa maneira, facilitar o trabalho de compreensão, interpretação e inferência a que aspira a análise de conteúdo.
Sendo assim, essa metodologia de pesquisa faz parte de uma busca teórica e prática, com um significado especial no campo das investigações sociais. Constitui-se em bem mais do que uma simples técnica de análise de dados, representando uma abordagem metodológica com características e possibilidades próprias.

Na sua evolução, a análise de conteúdo tem oscilado entre o rigor da suposta objetividade dos números e a fecundidade sempre questionada da subjetividade. Entretanto, ao longo do tempo, têm sido cada vez mais valorizadas as abordagens qualitativas, utilizando especialmente a indução e a intuição como estratégias para atingir níveis de compreensão mais aprofundados dos fenômenos que se propõe a investigar (MORAES 1999, P. 35).

Nesse sentido, como método de investigação, a análise de conteúdo compreende procedimentos especiais para o processamento de dados científicos. É uma ferramenta, um guia prático para a ação, sempre renovada em função dos problemas cada vez mais diversificados que se propõe a investigar. Pode-se considerá-la como um único instrumento, mas marcado por uma grande variedade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto, qual seja a comunicação.
Em face da necessidade de pesquisa empírica para a realização deste trabalho de conclusão de curso, foram analisados cinco (05) memoriais escritos por acadêmicos que se declararam comprovadamente carentes, de um curso de Licenciatura de umas das IFES mais jovens do país, localizada no extremo Norte.
Assim pode-se entender que a pesquisa empírica é o recolhimento de dados a partir de fontes diretas (pessoas) que conhecem, vivenciaram ou tem conhecimento sobre o tema, fato ou situação e que, podem causar diferenciação na abordagem e entendimento dos mesmos, conduzindo a uma mudança, acréscimo ou alteração profunda, relevante que não distorça, agrida ou altere o conteúdo principal, mas sim que o enriqueça e transforme em conhecimento de fácil compreensão e também sentindo-se atraído por tal. (PORTELA 2011, P.01)

Neste sentido, a análise de memórias é uma produção de relatos de vida, que diante de uma situação criada nas dificuldades socioeconômicas, permite ao sujeito dar um novo significado a sua experiência de vida. Esse tipo de pesquisa é necessário por:

Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequencia de acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar. (BOURDIEU APUD PORTES, 1996, P.185)

Neste sentido, segundo Demo (2000, p. 21): "face empírica é baseado em fatos da realidade produz e analisam dados procedendo sempre pela via do controle empírico e factual”. Para Demo (1994, p. 37): “a valorização desse tipo de pesquisa é pela possibilidade de oferecer maior concretude às argumentações, por mais tênue que possa ser a base factual”. O significado dos dados empíricos depende do referencial teórico, mas estes dados agregam impacto pertinente, sobretudo no sentido de facilitarem a aproximação prática.
Sendo assim, o motivo de se escolher o estudante pobre, justifica-se, pela utilização da expressão, (LAURENS apud PORTES, 1998, p. 241): “retirar o véu que recobre os itinerários sociais atípicos e o sucesso escolar no meio popular”. Dessa forma, as análises empíricas desses memoriais são necessárias para reforçar a pesquisa dos memoriais apresentados nos quatro livros publicados pelo MEC que serviram de suporte para este trabalho. Dessa forma, nos quatro livros selecionados para esse estudo, constam 138 memoriais do universo de 100%, sendo que desse total 55,79% representa o percentual de alunos de classe popular e 44,20% são de classe média baixa.
Nesse sentido, observou-se também que os alunos considerados de classe média baixa, possuem uma vida financeira estável, mesmo que não seja abastada. Isso pode ser identificado quando eles mencionam que seus pais possuem ensino médio, parcial ou completo, existem outros membros da família com curso superior (tios, irmãos), seus pais têm emprego fixo etc. diferentemente dos estudantes de classe popular, ou seja, seus pais são analfabetos (total ou possuem o ensino fundamental incompleto), têm profissões populares.
Sendo assim, do total de alunos de baixa renda, será analisada uma amostra de onze (11) memoriais que corresponde a 14% dos memoriais que subsidiarão a pesquisa.  Também serão analisados cinco (05) relatos empíricos de trajetórias escolares de estudantes desfavorecidos economicamente, que acessaram uma IFES no extremo Norte do País.
138 memoriais do universo de 100%
Classe popular
55%
Classe média baixa
44%

Nesse sentido, este trabalho se ocupa com a reconstrução e análise da trajetória escolar de universitários com o objetivo de compreender as práticas socializadoras familiares utilizadas por esses estudantes que deram condições de longevidade escolar, de tal forma que possibilitou que eles acessacem o ensino superior, apesar de todas as adversidades impostas ao estudante de baixa renda.

CAPÍTULO VI

6.1- ANÁLISE DOS MEMORIAIS

Diante da compreensão que as análises dos memoriais são pertinentes para a conclusão deste trabalho, propõem-se após a leitura e releitura dessas autobiografias, definir e organizar algumas categorias de análise. Entre as categorias podemos citar: o perfil social das famílias; as práticas de leitura e escrita entre os alunos e suas famílias; a ordem moral doméstica; as redes de relacionamento extra-familiar e parentesco; a participação dos pais com a vida escolar dos filhos, as estratégias familiares para acessar o ensino superior e a importância desse nível de ensino para esses estudantes.

Os alunos de camadas populares precisam encontrar um conjunto de estratégias para garantir a longevidade escolar. Muitas vezes o percurso é interrompido pelas condições estruturais pelas quais passam esses alunos. Eles precisam fazer um intenso investimento de si mesmo para conquistar certos objetivos, como por exemplo, o de ingressar na universidade (RIBEIRO 2011, P.07).

Diante disso, pretende-se colaborar na apreensão desses casos de "sucessos improváveis" e perceber de que forma são organizadas as trajetórias escolares de alunos oriundos de meios populares que acessam o ensino superior. Sendo assim, no que tange a alguns investimentos pessoais dos alunos, durante seu percurso escolar, consideram-se relevantes as experiências desde o início do processo de escolarização, até as singularidades dos processos de mobilização pessoal e o envolvimento com pessoas que se tornaram referência para esses acadêmicos. Além disso, destacam-se outros aspectos fundamentais para o ingresso nas IFES, como a frequência a cursinhos preparatórios; a rotina de estudo; os planos para o futuro; as estratégias empregadas visando à permanência na universidade.
Neste sentido, após esse conjunto de definições, serão descritas as análises dos memoriais de acordo com os teóricos da Sociologia da Educação mencionados anteriormente, com intuito de fazer um paralelo com a teoria do capital social escolar, defendida por Bourdieu.

A minha origem é muito simples, venho de uma terra onde as pessoas são bastante humildes. Meus pais, filhos de agricultores, começaram a trabalhar cedo para ajudar a sustentar a família. Minha mãe trabalhava como empregada doméstica e o meu pai como servente na construção civil. Eles não conseguiram avançar muito na escola, pois meu pai parou de estudar na sexta série do ensino fundamental, e minha mãe na quarta série primária. (Tatiane, UFRRJ, 2009, p.. 15).
“Minha família teve sua origem no interior do sertão de Pernambucano, região forte, lugar onde desde cedo as pessoas são obrigadas a trabalhar para sobreviver o que, junto com o baixo acesso a educação, contribuiu para o baixo nível de instrução de meus pais que não completaram nem o ensino fundamental, e também, lugar onde se aprende a viver em coletivo como forma de superar as dificuldades” (ALISSON, UFRRJ, 2009, p. 15).
Meu pai é filho de mãe solteira, foi criado com parentes, nunca frequentou a escola como aluno (...), minha mãe veio de uma família muito pobre e numerosa, tinha 22 irmãos... lê com muita dificuldade (...) da união com meu pai teve 8 filhos”(Lucinéia, UNIR, 2009,p. 48)
“Minha família é composta por seis pessoas. Meus pais são de origem nordestina. Meu pai sempre esteve à procura de melhores oportunidades de trabalho (...), mas sem uma profissão definida e sem muito estudo teve muitas dificuldades de encontrar trabalho fixo e satisfatório.” (ELIZEU, UNIFAP, 2009, P. 35) (grifos nossos)

As narrativas acima demonstram que quanto à origem social dos estudantes universitários, de uma forma geral, seus pais têm funções populares, baixo nível de escolarização, são imigrantes de regiões com poucas perspectivas econômicas, com uma família numerosa. O fato de esses estudantes serem oriundos de meios populares pode ser comparado ao trabalho de Lahire (1997) com crianças francesas no que tange a origem social e condições de vida. Em sua pesquisa ele percebeu que os pais eram em, sua maioria, imigrantes, analfabetos (ou apenas com ensino fundamental), e exerciam funções populares etc.
Diante disso, nota-se que a origem social dos agentes analisados faz relação com a teoria de capital cultural defendida por Bourdieu (1979) relativas ao acúmulo e aquisição desse tipo de capital que associados entre si favorecem o acesso à educação. A acumulação inicial do capital cultural, segundo Bourdieu (1979, p.76): “começa desde a origem, sem atraso, sem perda de tempo, pelos membros das famílias dotadas de um forte capital cultural”.
 Nesse sentido, no caso dos alunos em que o capital cultural familiar é pequeno ou inexistente, procuram-se outros fatores que possibilitam a longevidade escolar, pois o tempo de acumulação do capital cultural envolve praticamente todo o processo de vivência, inclusive dos pais, que influencia diretamente na trajetória escolar prolongada dos filhos.
Nessa perspectiva, é imprescindível mencionar novamente a pesquisa relativa à trajetória escolar de estudantes de baixa renda, produzida por Viana (2006) em que ela pesquisou as condições que possibilitam o fenômeno, estatisticamente improvável, da longevidade escolar em meios populares, pois são famílias que apresentam características semelhantes a dos atores aqui analisados, tais como: baixo nível de escolarização, profissões informais, que lhes ocasiona baixa remuneração, entre outros indícios que as identificam oriundos de classes populares.
Nesse sentido, Viana (2003) buscou compreender as origens e efeitos desse fenômeno de sucesso escolar em camadas populares. Assim, a autora afirma que a dissociação entre escolarização e renda familiar influencia na valorização contemporânea relativa à individualização do sujeito (condição de expressão de si) e no fenômeno do prolongamento da escola. Tais fatores provocam o adiamento da entrada no mercado de trabalho e, portanto, no acesso à independência econômica das famílias. Paradoxalmente, esse prolongamento dos estudos traria efeitos perversos para aqueles que não conseguem empreender uma escolarização completa, estando excluídos do mercado de trabalho mais qualificado.
Dessa forma, os indivíduos desfavorecidos economicamente e que não possuem um nível de escolarização exigido para o mercado de trabalho, ficam relegados para as profissões menos valorizadas, e consequentemente, acabam sendo obrigados a migrarem para profissões informais, inclusive em muitos casos seus filhos tornam-se “herdeiros” dessas profissões, pois precisam entrar no mercado de trabalho precocemente para auxiliar seus genitores no sustento da família. Isso, em muitos casos, dificulta a continuação dos estudos, como se verifica nos fragmentos abaixo:
“Sou atrasada nos estudos, devido minha data de nascimento, lembro como era fanática para começar a estudar, mas infelizmente não comecei quando quis, e sim quando pude. Por isso fui muito cobrada por meus pais para sempre estar entre os melhores da classe sem poder contar com a ajuda deles, devido à falta de instrução, pois o meu pai nunca terminou o ensino fundamental e minha mãe depois de muito tempo sem estudar concluiu o ensino médio, depois de mim. Sempre estudei nas escolas próximas a minha casa economizar dinheiro que não tinha no orçamento da minha família”. (ROBERTA, UNIFAP, 2009, P. 69)
“Comecei a estudar aos seis anos, no entanto faltei muitas vezes às aulas, a necessidade fazia com que meus pais nos levassem para na época da colheita de algodão. Era muito sofrido, pois a gente saia de casa ás 4 horas da manhã e só voltávamos ás 8 horas da noite em cima de um caminhão” (LUCINÉIA, UNIR, 2009, P. 48).
“Minha avó me matriculou em um colégio público, quando eu tinha 12 anos. Eu fui amparado pela Lei e não precisei cursar a 1ª e a 2ª séries, começando a cursar a 3ª com algumas dificuldades que me levaram a repetência. Fiz supletivo na 5ª série para me adiantar, pois já estava com quinze anos, mas não tive sucesso e retornei a minha escola de origem” (LUIZ, UNIRIO, 2009, P. 104).
“Aos sete anos de idade, comecei a estudar em uma escola no município de Monte Alegre no interior do Estado do Pará, onde cursei até a quarta série. Nesse período estudava pela manhã e à tarde tinha que ajudar meu pai na roça, coisa que eu não gostava muito. Na localidade em que estava o ensino era só até a quarta série. Por isso fui fazer a quinta série na cidade próxima e morar com meus avos maternos. Nessa época eu trabalhava como vendedor de lanche nas escolas, para poder comprar o material escolar”. (ELIZEU, UNIFAP, 2009, P. 35) (grifos nossos)

Nessa perspectiva, constata-se com esses fragmentos que os estudantes iniciaram seus estudos ainda na infância. No entanto dois deles, Luiz e Roberta, relatam que devido às dificuldades, principiaram os estudos tardiamente em virtude da necessidade de auxiliar no sustento da família. Esse fato ocasionou alguns constrangimentos para eles, como no caso de Luiz que repetiu o ano. Isso, no entanto, não permitiu que essas pessoas desistissem de seus objetivos de estudar, pois suas famílias acreditavam que o estudo era necessário para talvez mudar a realidade em que estavam.
Percebe-se no relato de Luiz que a pessoa que lhe incentivou a estudar foi sua avó. O mesmo aconteceu com Elizeu, que por não poder continuar seus estudos em seu local de origem precisou residir com seus avôs em outro Município, e mesmo assim tinha que trabalhar como ambulante para arcar com seu material escolar. Essas singularidades são defendidas por Lahire (1997), quando ele afirma que não se pode compreender o desempenho escolar dos alunos apenas como resultado das condições sociais, econômicas e culturais de suas famílias, isto é, somente esses aspectos não refletem a complexidade e a diversidade dos sujeitos analisados.
Nesse sentido, os estudos de Bourdieu (2001) sobre capital social, são necessários para relacionar com este trabalho, pois o capital social é constituído pelo conjunto dos recursos relacionais que o indivíduo em parte herda e em grande parte constrói por si só, dentro da família e em outros círculos sociais. Dessa forma, o capital social que se constitui como um recurso imprescindível para o crescimento intelectual da criança não existe somente dentro da família. Pode ser encontrado também fora, na comunidade, ou seja, nas relações extra-familiares. Esse fato pode ser percebido no relato de Elizeu que teve a ajuda dos avós para prosseguir nos estudos. No entanto, a sua autodeterminação foi extremamente importante para a sua trajetória.
Nesse sentido, Ribeiro (2011) afirma que essa força que impulsiona esses sujeitos para lutar contra o destino natural que, em tese, teriam, é denominada de processo de resistência, ou seja, trata-se de um conjunto de atitudes, comportamentos e estratégias, que são influenciados principalmente pelo capital econômico e cultural, variando de pessoa para pessoa, que os fazem vencer as barreiras do improvável estatisticamente. Segundo Ribeiro (2011, p.09): “Processos de resistência, portanto, deve ser entendido muito mais do que forma de resistência. Esta pode ser efêmera, passageira, já aqueles são, geralmente, duradouros e permanentes, ainda que possam ser interrompidos por um período”.
Sendo assim, a força que os move, na concepção de Bourdieu (1990) é classificada com a subjetividade que esta relacionada ao habitus, que por sua vez decorre das necessidades de mudanças das condições sociais a que o sujeito se encontra. Nessa perspectiva, Viana (2009) relata que existe uma autodeterminação nesses estudantes que os impulsiona a não desistir diante dos obstáculos encontrados, ou seja, há uma resignação construída na trajetória de escolarização pessoal dos indivíduos.
Em contrapartida em alguns casos a própria família, por diversas razões, impediu que esses estudantes tivessem sequência em sua trajetória escolar. Isso pode ser observado nos memoriais abaixo:

“Faltei muitas vezes às aulas, a necessidade fazia com que meus pais nos levassem para trabalhar na época da colheita de algodão e demais colheitas. Era muito sofrido, pois a gente saía de casa, às 4 horas da manhã e só voltávamos às 8 horas da noite naquele frio terrível e em cima de um caminhão que nem que nem sequer tinha cobertura de proteção. Na hora do almoço, a comida estava gelada, pois, havia sido preparada, às 3 horas da manhã, no entanto éramos conhecidos como ‘bóias frias’. Concluí à 4ª série, sem nunca ter reprovado, mas minha mãe não me deixou continuar os estudos. Aos 10 anos comecei a trabalhar como babá e aos 14, como doméstica na casa da diretora da escola em que eu estudei. Ela me ofereceu uma vaga para eu estudar, mas minha mãe não deixou, porque as aulas eram à noite, chorei muito. Uma amiga ofereceu os livros para que eu não precisasse comprar, mesmo assim minha assim não teve jeito perdi essa oportunidade, não por mim, mas por ter que obedecer minha mãe”. (LUCINÉIA, UNIR, 2009, P. 48)
“Meus irmãos e eu sempre estudamos em escolas públicas.Nossos brinquedos eram doados, éramos humildes, mas muito felizes. Recordo-me das vezes em que minha irmã e eu ajudávamos nossa mãe a lavar roupas e a servir de babá, para comprarmos os materiais pedidos na escola. Tanto foram os dias em que vi mamãe chorar por não ter condições de nos ajudar, isto me deixava muito triste, mas adquiri força para me dedicar aos estudos para, quem sabe um dia, modificar aquele cenário”(VERA LÚCIA, UNIFAP, 2009, P. 86).
Meu pai, um homem, semianalfabeto, trabalhador, oriundo de comunidades nordestinas, que as duras custas conseguiu aprender uma profissão nas muitas obras em que trabalhou no ramo de construções civil, defendia, dentro de sua própria realidade, a minha inserção no mesmo processo, a fim de garantir o meu sustento através de uma profissão. Essas eram as suas falas: “Esse menino tem é que aprender uma profissão, você tem que parar de fazer ele sonhar tanto”. Enquanto minha mãe, com um grau de instrução um pouco maior fazia das tripas coração, incentivando a mim e aos meus irmãos a continuarem os estudos. Foi dela própria a iniciativa de voltar a estudar e com muitas dificuldades, além de estar grávida, cursar e terminar o antigo ginásio. No entanto, com poucos recursos sucumbi aos anseios do meu pai. Sem saber ao certo a importância de continuar os estudos,mergulhei em muitas obras, ajudando meu pai.Por morarmos em uma invasão sofríamos constantemente com a falta de saneamento básico, tráfico de droga. Perdi as contas de quantas mortes presencie de amigos, vizinhos, jovens dizimados pelo tráfico, essa sempre foi minha realidade. Aos 13 anos, comecei a vender picolé no trem e, por ser ilegal, vivia correndo dos policiais. (JÚLIO, UNIRIO, 2009, P. 80)
“Minha vida escolar começou aos três anos, numa escola na Maré, na qual estudei até a primeira série do Ensino Fundamental, mas essa escola não era reconhecida pelo MEC. Quando fui para a segunda série, mamãe resolveu me matricular em uma escola qualidade e reconhecida e foi o período escolar mais difícil da minha vida, pois não tinha base educacional, por ter vindo de uma escola de baixa qualidade. Sofri muito preconceito nas escolas por ser a “favelada”, a “pobrezinha”, e isso me segregou nas salas de aula, pois ninguém quer ser amiga de uma moradora de favela. Tem muita gente que acredita que em comunidade popular só mora gente ruim e de má índole. Por um tempo isso me afetou demais tinha vergonha da minha realidade e comecei a agir com violência física quando me atingiam verbalmente. Mas, conversando com uma professora, entendi que isso não resolveria nada, que deveria ser o contrario, eu deveria mostrar com meu desempenho escolar que era superior a todas as adversidades “(CAROLINE, UNIRIO, 2009, P. 39). (grifos nossos)
Observam-se nessas narrativas que as trajetórias de vida dessas pessoas são marginais, atípicas, conflituosas, extremamente sofridas, com pouca expectativa de ascensão social. Em alguns casos até os próprios pais não os incentivaram a dar continuidade nos estudos. Este fato nota-se nos depoimentos de Lucinéia e Júlio. No entanto, essas dificuldades não foram empecilhos para que eles desistissem de seus sonhos de estudar e mudar sua realidade social e econômica, ao contrário, as adversidades reforçaram a certeza de que somente os estudos podiam reverter à situação em que se encontravam.
Diferentemente do relato de Júlio e Lucinéia, no depoimento de Vera Lúcia foi o sofrimento de sua mãe que não tinha condições de proporcionar uma vida com o mínimo de conforto aos filhos que lhe impulsionou a estudar. Caroline por sua vez foi incentivada por uma professora que através de palavras de apoio percebeu o seu valor enquanto pessoa. Portes (1998) encontrou em sua pesquisa com estudantes carentes traços marcantes relacionados às redes familiares, e até mesmo apoio de professores que auxiliaram seus alunos direcionando-os para a garantia de uma trajetória escolar segura.
A solidariedade por parte dos professores em muitos casos foi fundamental para a continuidade escolar dessas pessoas. Mas não somente isso, eles foram movidos por uma determinação pessoal, forjada nas dificuldades que encontraram em sua trajetória escolar. Portes (1998) em seu trabalho com famílias populares identificou práticas familiares que teriam favorecido o acesso e permanência dos filhos no sistema de ensino: a ordem moral doméstica, a presença constante das mães no trabalho escolar, e principalmente, formas de solidariedade extra-familiar. Esse apoio fora do núcleo familiar mostrou-se extremamente importante, tanto material como psicologicamente, nessa construção de uma trajetória escolar prolongada.
Para Terrail (1990, P. 239), ”o sucesso escolar dos egressos das famílias populares implica penetrar em um universo hostil, no qual a diferença não pode ser vivida como justaposição, mas como oposição, antagonismo, repressão das palavras e das práticas familiares”. Sendo assim, percebe-se que as várias formas de atitudes empreendidas tanto pela família quanto pelos amigos são fundamentais para que o estudante oriundo de meios populares possa romper com o estatisticamente improvável e, consequentemente, ingressar no ensino superior como se verifica nos fragmentos a seguir:

“Eu queria alcançar um grande objetivo, vencer o fantasma do vestibular, e por várias vezes pensei que não conseguiria realizar este sonho. Resolvi montar um grupo de estudo, composto por 5 rapazes e uma 1 moça que era eu. Éramos bastante distintos, tínhamos sonhos diferentes, no entanto com um objetivo em comum o de nos tornarmos acadêmicos. Os meninos me ajudaram a compreender as inúmeras formulas de matemática e física, incentivaram-me a ler jornais e livros, a debater, tirar dúvidas com os professores e a dialogar com minha família”. (VERA LÚCIA, UNIFAP, 2009, P. 86)
“Após o ensino médio a próxima etapa é a mais almejada por todos. Para conseguir esse ‘pódio’ necessita-se abrir mão de algumas regalias e confortos. Logo dedicação e o esforço tornam-se os maiores responsáveis por mais essa conquista. Uma vitória recheada de sacrifícios, choros e claro, muita alegria, pois mesmo nas maiores dificuldades, tendo que pegar o sol das doze horas da manhã todos os dias ao voltar do cursinho de bicicleta. Ao chegar no degrau mais alto e ao olhar para trás e avaliar todos os momentos que passei até aqui, nenhum se compara com a alegria que senti ao ver as lágrimas de satisfação deslizarem pela face cansada de minha mãe, que sacrificou toda sua vida pelos filhos, essa é a melhor recompensa que uma garota pobre de bairro periférico, proveniente de escola pública e cursinho pré-vestibular gratuito pode pedir a Deus”. (ANA CLÁUDIA, UNIFAP, 2009, P. 15)
Aos quarentas anos, percebi que não seria tão fácil arrumar emprego, pois as dificuldades que encontrei por causa da minha origem negra e da minha idade, me dei conta de que o futuro seria o estudo. E assim fui, fiz cursinho pré-vestibular, durante dois anos, sendo que no primeiro e no segundo vestibular que fiz fiquei na segunda fase, mas minha força de vontade e minha persistência em busca do meu objetivo me animaram a tentar mais uma vez. Na terceira tentativa fui feliz, fui aprovada, sinto-me feliz em ter alcançado esse objetivo, hoje sou citada como exemplo por todos que me conhecem. Minhas filhas me olham com orgulho, minha família se transformou, pois todos hoje buscam também alcançar seus objetivos. (TEREZINHA, UNIR, 2009, P. 78)
Quando se nasce numa família de classe popular, tendemos a sonhar baixo, a crer que certos lugares não nos pertencem e isso nunca entrou em minha cabeça. Sou a primeira pessoa da família a estar numa universidade publica e sei que sou um orgulho para todos e um incentivo para que outros também consigam. Agradeço a minha mãe, que sempre acreditou em mim, mesmo quando nem eu mesma acreditava. E tem uma frase que ela me fala até hoje: ”isso ninguém tira de você”. (CAROLINE, UNIRIO, 2009, P. 39) (Grifos nossos)

Percebe-se que essas pessoas tinham o objetivo de ingressar no ensino superior, todavia tiveram que transpor obstáculos que normalmente são impostas ao aluno estudante de baixa renda que cursou todo ensino básico em escolas públicas e, que por vezes, tem um ensino deficiente na maioria das escolas. Dessa forma, tiveram que frequentar cursinhos pré-vestibulares que lhes forneceram uma base educacional, proporcionando assim, o acesso ao ensino superior público. Isso pode ser constatado na declaraçãode Vera Lúcia quando ela afirma que precisou do cursinho e do auxilio dos colegas para compreender as disciplinas de ciências exatas como matemática e física.
Em meio a essas dificuldades percebe-se que o apoio da mãe foi imprescindível nessa trajetória escolar como no caso de Ana Claudia e Caroline que dedicam seu sucesso as suas mães. Sendo assim, os processos de resistência estão também ligados a uma mobilização pessoal muito forte, que os impulsiona ao sucesso escolar como Terezinha que aos quarenta anos resolveu voltar a escola e tornou-se exemplo para os filhos.
Sendo assim, considera-se que trajetória escolar desses estudantes apesar de ser tortuosa é constituída por etapas que demonstra que o empenho familiar ou individual pode ser considerado um fator determinante que ao adquirir consistência possibilitou o ingresso nas IFES. Dessa forma, para esses jovens não existe um percurso da vida escolar que deveria ser natural a todos, ou seja, uma fase ininterrupta do tempo, que inicia na infância, perpassa pela juventude e, culmina com a posse de diplomas, estabilidade profissional e constituição da família, como acontece com a maioria dos jovens da classe média.

Segundo Viana (2006, p. 202) “O tempo da vida pode ser atravessado por rupturas que desorganizam o curso normal da vida. Alguns desses jovens vivenciam esse fenômeno com algum nível de fatalismo. Outros, ao contrário, pensam que é preciso “provocar” as coisas, porque nada, jamais, vem sem esforço”. Sendo assim, a entrada na universidade de pessoas de camadas desfavorecidas economicamente, que antes não tinham acesso é fato positivamente consumado, pois para esses indivíduos a educação é um mecanismo de mobilidade social importante, que pode ampliar seus horizontes em busca de uma vida digna, ou pelo menos mais confortável em relação a dos seus genitores. Portanto, de acordo com os memoriais desses alunos a educação, possibilitou que eles não ficassem à mercê do paradigma educacional estabelecido pela sociedade capitalista.


6.2 - AS TRAJETÓRIAS SOCIAIS E ESCOLARES DE ESTUDANTES POPULARES.

O diálogo da teoria com a empírica que se estabelece neste trabalho provém de memoriais de estudantes universitários que ingressaram em um curso de licenciatura de uma instituição pública federal, localizada no extremo norte do país. Dessa forma, do universo de 48 (quarenta e oito), que frequentam essa turma, foram selecionados somente 05 (cinco). Isto posto, a intenção é compreender as circunstâncias complexas a partir da reconstrução da trajetória escolar, mas que é também social, desses alunos. Acredita-se que a reconstrução escolar avalia de forma abrangente a herança cultural, econômica e social dos sujeitos, e mostra também a carga de sentimentos de orgulho despertada na pessoa ao acessar a educação superior.
Sendo assim, seguem os cinco relatos que mostram as circunstâncias complexas atuantes, nas quais, os jovens investigados foram efetivando ações que possibilitaram a eles chegar a um espaço “improvável”: a universidade pública.
Herança cultural:
 “Minha trajetória escolar me concebeu o quanto o estudo é relevante para vida pessoal e profissional de um indivíduo. Meus pais são oriundos da região amazônica, são semianalfabetos, ela trabalhava como empregada doméstica e ele carpinteiro, juntos tiveram 13 filhos. Comecei a estudar aos sete anos de idade, não fiz o jardim de infância, ingressei diretamente na primeira série. Estudei nessa escola até a sexta série do ensino primário na época, com a separação dos meus pais, minha mãe tomou uma atitude de sair da casa que ajudou a construir, deixando o meu pai com a casa e fomos morar alugado em outro bairro, próximo do centro” (ALUNO A).
“Eu nasci no dia 09 de novembro de 1979, filha de pais nordestinos, minha mãe maranhense (dona de casa), meu pai cearense (motorista), ambos estudaram até a 5º serie do fundamental, tiveram cinco filhos (quatro mulheres e um homem), sou a segunda filha do casal. Comecei a minha trajetória escolar com quatro anos, estudei no jardim de infância em Santa Inês – MA, devido algumas dificuldades financeira, minha avó foi buscar a minha família para morar neste Estado,e passamos a morar ao lado da casa de meus avôs no bairro Alvorada, então a minha mãe me matriculou na escola que ficava próximo de casa, lá eu estudei da 1ª a 4ª série”. (ALUNO B).
“Minha família é oriunda do interior da região amazônica, minha mãe é dona de casa e estudou até a 4ª série do fundamental. Minha avó e analfabeta só sabem assinar o nome, e é servente concursada da prefeitura há 20 anos. Somos 5 irmãs, no entanto sou a única  que mora com a minha avó desde pequena.  Sou também a primeira filha e a primeira neta.Iniciei meus estudos aos 5 anos de idade numa escola no Rio Cupixi, contudo não valeu meu pré-escolar porque a professora não tinha diploma e a escola não era regularizada.”. (ALUNA C).
“Meus pais são do interior da Amazônia, meu pai é carpinteiro, e estudou até a 4ª série do fundamental. Minha mãe é dona de casa e analfabeta, eles tiveram doze filhos. Eu nasci em 1977 no interior e meus irmãos também nasceram nesta localidade. Iniciei meus estudos com sete anos de idade, porém nos mudamos para a atual capital onde residimos. Foi aí que começou as dificuldades, pois eram muitos filhos para por na escola e sustentar. Meus irmãos mais velhos tiveram que trabalhar logo para ajudar no sustento da família. Em pouco tempo eu também comecei a trabalhar de babá e assim o tempo foi passando, e quando entrei na escola para fazer a 1ª série eu tinha 12 anos” (ALUNO D)
Sou de uma família paraense, tenho 11 irmãos, sou fruto do segundo casamento, tenho 3 irmãos e sou a única filha mulher, todos nos concluímos os estudos em escolas públicas. Meu pai é soldador eminha primeira experiência escolar, foi quando eu tinha 4 anos. No ano de 1987, devido ao falecimento de minha mãe, vitima de acidente de trânsito, vim para este estado, com meus irmãos e meu pai. Iniciei meus estudos com 5 anos em uma escolinha de reforço, pois nessa época não havia escola disponível para minha faixa etária, meu pai não pagava mensalidade, ele colaborava com o lanche, era uma espécie de escola comunitária, fiquei 2 anos nessa escola e com 7 anos meu pai me matriculou em outra escola pública, que ficava próximo de casa, estudei 4 anos nessa escola, e tive que ser transferida para outra escola, pois não tinha a 5ª série (6º ano) ” (ALUNA E) (Grifos nossos).

Observa-se que os sujeitos analisados são oriundos do interior da Amazônia, com exceção de um universitário que veio do Nordeste. Todos eles possuem pais com baixa escolaridade, profissões populares, as famílias são numerosas e devido a condições econômicas, principalmente, acabaram migrando para a cidade em busca de emprego ou até mesmo estudo para os filhos. Sendo assim, no que tange as configurações das famílias, segundo Ribeiro (2011) eles são “nativos“ da região amazônica.
Essa região possui peculiaridades que a difere do restante do Brasil, ou seja, o campesinato caboclo amazônico é composto por ribeirinhos que vivem dos recursos naturais as margens dos rios e igarapés e sobrevivem da caça e da pesca, residem em palafitas, muitos têm dificuldades para colocar seus filhos na escola, pois nessa região o ensino, quando existe, no máximo vai até o fundamental como se verifica no relato da aluna “C”, que precisou migrar para a cidade, para continuar os estudos e, além disso, a escola anterior não era reconhecida.
Dessa forma, ao chegarem à cidade, essas pessoas acabam exercendo profissões populares justamente por causa de sua baixa escolaridade. O que para elas torna-se bastante incomoda, pois elas precisam do auxilio dos filhos para sustentar a família, como no caso da aluna “D” que trabalhou de babá desde pequena. Isso fez com que ela abandonasse os estudos, retornando, somente, aos doze anos de idade. Outra questão comum aos cinco estudantes é o acesso à educação para essas famílias na cidade, onde muitas vezes não existem escolas perto de suas casas e por esse motivo precisam transferir seus filhos para outra escola, para continuarem estudando.

A mobilização familiar é voltada, em primeiro lugar, para a sobrevivência, e é graças ao rendimento coletivo do grupo, decorrente do trabalho de seus integrantes, que este tenta assegurar suas necessidades básicas. A participação dos filhos no trabalho, para um número significativos deles teve lugar ainda na infância. Essa inserção acontece geralmente nos serviços domésticos, para as meninas, tomando conta da casa quando a mãe trabalha fora, ou em ocupações como babás ou empregadas domésticas. Para os meninos, as atividades são bem mais variadas, na maioria das vezes ligadas aos serviços de ajudante de pedreiro, pintor, limpeza de terrenos, comércio ambulante, etc. (ZAGO, 2011, P.26).

Nesse sentido, nota-se que essas famílias são muito pobres, que associado ao número considerável de filhos, torna-se um entrave para a continuação dos estudos. (ABRANCHES apud PORTES, 1998, p. 09): “a pobreza é ‘destituição, marginalidade e desproteção’ dos meios de sobrevivência física, dos benefícios do progresso, do acesso às oportunidades de moradia, escolares, habitacionais, de saúde, de trabalho etc.”, que são determinadas pela inoperância das políticas públicas. Esses indivíduos de acordo com suas necessidades buscaram meios para sobreviver na cidade.

A estabilidade profissional do chefe de família permite claro, sair da gestão do cotidiano "no dia a dia”, mas, também oferecer os fundamentos de uma regularidade doméstica de conjunto: regularidade das atividades e dos horários familiares, limites temporais estruturados e estruturantes. (LAHIRE 1997, P. 24)
Dessa forma, na perspectiva de Bourdieu (1998), as trajetórias escolares de estudantes provenientes de famílias de camadas populares acontecem dentro de um contexto social e circunstâncias que resultam no reduzido (ou insuficiente) capital econômico, cultural e escolar da família à qual eles pertencem. Com base nisso (LAHIRE, 1997,154) afirma que: “aquilo que se ‘transmite’ de uma geração a outra é muito mais que um capital cultural. É um conjunto feito de relações com a escola e a escrita, de angústias e de vergonhas, de reticências e rejeições, de sistema de defesa diante de julgamentos externos, de relações com a autoridade e com o tempo...”. No entanto, apesar das adversidades eles não desistiram do sonho de estudar como se verificará nos relatos a seguir:
Início da caminhada:

“Saí de uma escola de periferia para uma escola do centro era outra realidade, estudei da sétima série ao terceiro ano do ensino médio, terminei meu ensino médio tarde com 22 anos, não ingressei logo na universidade, pois comecei a trabalhar no comercio, para poder ajudar a minha mãe a criar meus irmãos mais novos, minha mãe hoje ela é aposentada mais sempre trabalhou em casa de família para poder colocar o que comer, vestir e as outras despesas como, por exemplo, materiais escolar para todos nós. Perdi treze anos da minha vida ao trabalhar no comercio, até que resolvi voltar a estudar” (aluno A).
“Como nessa escola só tinha até a 4ª série a minha mãe conseguiu uma vaga em outra escola, que ficava um pouco distante de casa, quando tinha o dinheiro do ônibus eu ia e voltava de ônibus , quando não tinha eu ia e voltava a pés, para chegar nessa escola eu caminhava por uma hora, estudei nessa escola três anos.A época em que estudei nessa escola não foi um momento bom para a minha família, pois meu pai ficou desempregado, e eu tinha que ir de bicicleta carregando a minha irmã para irmos estudar, me lembro de que nessa escola tinha uma disciplina educação para o lar onde era necessário comprar alguns materiais para a confecção de algumas atividades, como meu pai não tinha condições de comprar eu ficava só olhando os outros fazerem. Para cursar o 2º grau minha mãe teve que passar mais uma vez à noite na fila. Passei 3 anos estudando nessa escola, era uma escola que eu tinha que ir de ônibus, e o governo não oferecia mais a passagem integral para os estudantes, então tinha que pagar a meia-passagem, ficou difícil para o meu pai sustentar cinco filhos na escola, mais mesmo assim ele trabalhava noite e dia para nos proporcionar uma educação” (aluno B).
Moro com minha avó porque no Município onde residíamos não tinha vaga para eu estudar. Aos 6 anos vim morar com minha avó, onde fiz o pré-escolar novamente e os 7 anos ingressei na primeira série. No momento sou estagiária, mas nós sempre sobrevivemos com o salário dela. Eu sempre estudei em escolas públicas, e minhas irmãs estudam em escola pública ainda, pois, por serem menores que eu, ainda não concluíram seus estudos. Fui auxiliada por minha tia no processo de aprendizagem da leitura e minha avó foi a principal responsável por me manter na escola e apoiar meus estudos. Eu e minha avó temos uma relação harmoniosa, e até hoje se preciso de apoio material e financeiro ela esta pronta para me ajudar” (Aluna C).
Fiz a 1ª série de aceleração e passei para a 3ª série. No ano seguinte fui transferida para outra escola, nessa eu fiquei até a 6ª série. Fiquei sem estudar depois dessa época, pois eu tinha me casado, e retornei para estudar na EJA anos depois. Estudei um ano e depois parei novamente, tinha que trabalhar e estudar e eu não estava dando conta de fazer as duas coisas. Então foram mais alguns anos sem estudar, foi quando percebi a necessidade de concluir meus estudos e retornei no ano de 2003 para fazer a EJA. Conclui o ensino fundamental com muitas dificuldades, pois já estava muito desatualizada e os conteúdos e as disciplinas eram diferentes da época em que eu parei, mas com muito esforço consegui vencer” (aluna D).
“Conclui meu ensino fundamental, claro que com bastantes dificuldades, pois com a morte da minha mãe, meu pai mergulhou de vez no alcoolismo, como forma de tentar fugir dos problemas decorrentes da morte dela. Largou o emprego de soldador em uma firma de construção civil, e nossos problemas só aumentaram, pois passamos muitas dificuldades, principalmente para nos mantermos na escola, nessa época era exigido que os alunos fossem devidamente uniformizados, e como não podíamos entrar todos os dias meu pai nos acompanhava até a coordenação para assinarmos uma autorização. Interessei-me em fazer o processo seletivo para uma escola que tinha o curso de magistério, assim eu estudava em casa, e tive ajuda de dois vizinhos nas matérias que eu tinha mais dificuldades, graças à Deus consegui passar e foram 4 anos me profissionalizando na área da educação” (Aluna E) (Grifos nossos)

Os depoimentos demonstram que ao almejar uma escola melhor para os filhos, as famílias populares encontram muitos percalços nessa trajetória, como relata o aluno “A” que ao ser transferido para uma escola sentiu a diferença no ensino e ao terminar a educação básica fez o que muitos jovens de camadas populares de certa forma fazem, obrigados, eles ingressam no mercado de trabalho para auxiliar no sustento da família adiando assim o acesso ao ensino superior.

As condições de estabilidade econômica são um fator tranquilizador importante no universo das configurações familiares. Ou seja, certa tranquilidade, uma relativa distância da sobrevivência material. Casa própria, salários baixos, mas sempre disponíveis, ajuda de familiares, ou duplas jornadas de trabalho para ambos os pais são circunstâncias que colocam alunos em situação privilegiada em relação às demais famílias dos segmentos populares. Setton (2002 apud Lahire, 2011, p. 64).

O ingresso precocemente no mercado de trabalho por esses jovens dificulta, e muito, o acesso ao ensino superior. Sendo assim, os transtornos também foram muitos para a aluna “B” que foi excluída da aula de educação para o lar por não possuir o material exigido pela escola.
”Do ponto de vista dos “vencidos do sistema”, dos que não são ouvidos, os alunos “menos bons e menos dignos” que a escola meritocrática de massas termina por criar. A “máxima” que acompanha a organização e funcionamento da escola, o sucesso para todos, é uma frase vazia, porque contradiz os próprios princípios meritocráticos sobre os quais essa escola se funda. Atualmente, do ponto de vista da igualdade de oportunidades de acesso á escola, a democratização escolar até pode ser considerada uma realidade; no entanto, essa escola, aparentemente mais justa que a do passado, criou novas situações e sentimentos de injustiça entre os diferentes atores” (GIOVANNI; DUBET , 2011, P.103).
Nesse sentido, quando a escola não se preocupa em incluir todos os seus alunos nas atividades escolares ela causa constrangimentos que repercutem, muitas vezes, em evasão. Em relação à aluna “C”ela pôde contar com a ajuda da tia no processo de alfabetização, isso foi muito vantajoso, pois sua avó não tinha condições para desempenhar esse papel por ser analfabeta.
Existe a necessidade do cursinho preparatório:

“Fiz um cursinho pré-vestibular gratuito, para me situar como estava a minha situação escolar, pois estava muito tempo parado, em 2006 fiz meu primeiro vestibular, passei na primeira fase por muito pouco não consegui entrar, continuei estudando, em 2007 tentei novamente, mas agora para o curso de Geografia, novamente passei na primeira fase e fiquei na segunda, meu objetivo de cursar o ensino superior estava escapando, pois já não tinha mais esperança e nem paciência para estudar, mais incentivado por outros colegas para não desistir, resolvi fazer de novo o vestibular” (aluno A).
“Quando eu terminei o 2º grau eu não tive condições de pagar a inscrição para prestar um vestibular, pois nessa época só quem tinha condições de entrar em uma universidade eram pessoas bem de vida, então passei dois anos sem estudar, então resolvi fazer o teste de seleção para o Magistério, passei e fiquei estudando por quatro anos nessa escola. No ultimo ano o governo do estado passou oferecer a inscrição de graça para estudantes que terminavam em escola publica, então eu fiz o vestibular e só passei na 1ª fase. Em 2004 eu fiz o pré-vestibular gratuito, mais infelizmente minha mãe nesse mesmo ano faleceu, eu ainda cheguei a fazer a prova mais não passei. Por essa situação eu fiquei três anos sem estudar, nesse período minha irmã e eu sofremos um acidente de ônibus, impedindo-me de cursar um cursinho, devido os gastos que tivemos com o acidente” (aluno B).
“Durante toda minha carreira escolar no ensino básico sempre tive o apoio de minha família. Concluir meus estudos no ensino básico no ano de 2008 fiz cursinho pré-vestibular gratuito e finalmente, no ano de 2009, eu consegui ingressar na universidade, fiquei em quarto lugar fui aprovada para o curso de Licenciatura, o qual espero estar concluindo em 2013” (aluna C)
No ano de 2006 iniciei o ensino médio na EJA, fiz o 1º ano em 2006 e em 2007 o 2º e o 3º ano junto. Logo em seguida comecei um cursinho pré-vestibular gratuito. Neste mesmo ano saiu á lista dos alunos para fazerem a inscrição do vestibular. Nesta época o governo pagava a inscrição de alunos de escolas públicas. Então chegou o grande dia da prova do vestibular, com todas as dificuldades que passamos no decorrer do ensino médio, como falta de professores e muitas outras coisas, eu fui com fé e a coragem fazer o vestibular, pois vi ali a minha chance de ingressar em uma universidade” (aluna D).
Conclui o 2º grau e passei 5 anos sem tentar o vestibular, por causa do nascimento da minha filha, que sem ter com quem deixar, tive que adiar meu sonho de entrar em universidade. Passado esse tempo, fiz minha inscrição em um cursinho pré-vestibular gratuito, só tínhamos que comprar a camisa, estudava no turno da noite, ele fica longe da minha casa, muitas vezes meu marido me levava de bicicleta, era o ano de 2008, e eu decidi que aquele era o meu ano de ingressar de vez para o ensino superior, estudava também em casa, acompanhando a revisão do cursinho que era transmitido pela televisão por volta de 1 hora da noite, eu acompanhava tudo, todos os dias” (aluna E).

Os estudantes da rede pública de ensino trazem uma defasagem educacional muito grande, se comparado com os alunos que estudam em escolas privadas. Nesse sentido, os acadêmicos pesquisados precisaram frequentar cursinhos preparatórios para compensar a deficiência nas disciplinas, o aluno “A”, por exemplo, somente conseguiu ingressar no ensino superior na terceira tentativa, quando estava quase desistindo, mas o apoio dos colegas foi determinante para sua persistência.
O mesmo aconteceu com a aluna “B”, que somente obteve êxito na terceira tentativa. As alunas C, D e E passaram na primeira tentativa, no entanto, todos eles frequentaram cursinho pré-vestibular gratuito, e também foram contemplados com a isenção na taxa de inscrição para o vestibular. Esses sujeitos demonstram em seus relatos que as dificuldades foram, demasiadamente exaustivas, quase insuportáveis, mas o desejo de cursar o ensino superior era maior.
As trajetórias de vida desses sujeitos são singulares, atípicas, extremas, marginais e excepcionais. Mas, fazem parte de um mosaico diversificado que demonstra como grupos familiares ou atitudes individuais são capazes de tomar determinadas decisões que revelam estratégias vinculadas a metas de vida. Está claro que além de processos de ajuda advindo de membros das famílias em algum momento eles perceberam individualmente, o quanto tinham que se apegar aos estudos para vencerem barreiras e as dificuldades sociais e educacionais. Fica claro que as condições objetivas acabam influenciando muito nas decisões dos sujeitos que precisam adiar o sonho de chegar à universidade. (RIBEIRO 2011, P.13)

 Sendo assim, a persistência é uma característica marcante nesses jovens, como se percebe no último relato, a seguir, pois o improvável tornou-se realidade.

“Em 2008 com todos meus esforços consegui ser aprovado, para mim foi uma alegria muito gratificante entrar em uma instituição Federal, onde muitos almejam uma vaga. Antes a universidade era almejada pelos filhos de famílias classe média alta, hoje a realidade e outra, os filhos de famílias populares também fazem parte dessa realidade” (aluno A).
“Em 2008 me matriculei em um cursinho de graça, mais passei várias dificuldades tanto financeira quanto de doenças no meio de meus parentes, Mais em meio tantas dificuldades eu conseguir fazer o vestibular que era oferecido à inscrição de graça para alunos que estudaram em escola pública. Fiz a prova e passei em 2º lugar para o curso de Licenciatura, eu e minha família ficamos muito felizes por essa benção concedida por Deus, pois sou a primeira da minha família a ingressar em uma instituição federal. A minha mãe sempre dizia que ela não tinha dinheiro para deixar para nós, por isso ela se esforçava em deixar os estudos como herança porque isso ninguém ia nos tomar. Meus pais não concluíram seus estudos mais sempre tiverem a certeza que a educação mudaria nossas vidas, eu agradeço a Deus pelo esforço que meus pais tiveram para que pudéssemos estudar” (Aluno B).
”Em 2008 passei no vestibular das duas instituições do Estado na federal e na estadual. Optei pela federal, mas eu estava grávida e passei por uma cesariana inesperada. O bebê havia passado da hora de nascer e houve várias complicações e acabei passando 16 dias na maternidade. Tive que entrar com pedido para trancar minha matrícula do 1º semestre sem saber de nada. Ao retornar no 2º semestre me deparei com situações difíceis, sem ninguém para me orientar tive que lutar para não perder minha vaga, pois havia muitas disciplinas acumuladas, foi aí que entrei com pedido de transferência para a turma 2009. Na coordenação do cursodisseram que a prioridade era para quem estava estudando normalmente, como eu não estava só havia uma disciplina que eu podia fazer. Quando eu resolvi que não ia mais atrás, que iria deixar como estava e então neste mesmo dia recebi uma ligação dizendo que meu pedido havia sido aceito, mais fizeram eu prometer que realmente iria estudar, que não iria parar ou abandonar. Agora imagine se eu estava lutando para permanecer como eu não iria estudar. Só tem uma coisa que poderia me tirar do curso: a morte. Na minha família eu sou a única que esta fazendo o ensino superior. Por isso, para mim e minha família é muito importante esse momento em que estou vivendo, mesmo com todas as dificuldades me considero uma vencedora” (aluna D).
“Consegui passar no vestibular, em um curso de licenciatura, meu pai e meus irmãos ficaram muito felizes, e eu mais ainda, tinha realizado um sonho. Mas a minha permanência na universidade era apenas uma das dificuldades que eu encontrei na minha caminhada acadêmica, pois dependia de ônibus para chegar até a universidade, sem contar que muitas vezes tinha que voltar a pé, pois tinha que economizar passe escolar. Mas na vida nada vem fácil, então encaro esses fatos com uma motivação, para conseguir o meu tão sonhado diploma superior e colocar em prática tudo que aprendi nesses anos de ensinamentos, e continuo aprendendo tanto no que tange o curso de como também com a maior professora que já conheci: a VIDA!!!”(aluna E). (Grifos nossos)

Ao ingressar no ensino superior, esses jovens encontram uma das muitas etapas a serem vencidas, pois se deparam com situações adversas que, muitas vezes, acabam por excluir os estudantes de baixa renda. A permanência não é fácil, e existem ainda as dificuldades que fogem a sua competência, como aconteceu com a aluna “D”, que após o nascimento de sua filha não conseguiu acompanhar a turma a qual ela tinha prestado vestibular, sendo obrigada a transferir-se para outra turma para dar continuidade a seus estudos. Nessa perspectiva, os processos de resistências foram decisivos para sua permanência.

“Por processos de resistência entende-se, a capacidade que esses sujeitos encontram para lutar contra o destino natural que, em tese, teriam: jamais cursar uma universidade publica federal ou mesmo o ensino superior. Entende-se que se trata de um conjunto de atitudes, comportamentos e estratégias (influenciadas que são pelos capitais econômico e cultural, principalmente), variando de sujeito para sujeito, que os fazem vencer as barreiras do improvável estatisticamente. Afinal, se não foi tão difícil acessar a universidade, devido o modelo de seleção, para eles permanecer cursando é um enorme desafio que requer o cumprimento de metas subjetivas. Processos de resistências, portanto, devem ser entendidos muito mais do que formas de resistência. Esta pode ser efêmera, passageira. Aqueles são geralmente duradouros e permanentes, ainda que possam ser interrompidos por um período”(Ribeiro, 2011, p. 09).

Nesse sentido, os fragmentos extraídos dos relatos, demonstram que o processo de resistência fica evidente diante de tantas dificuldades que esses estudantes tiveram para acessar e se manter no ensino superior. Suas trajetórias são marcadas por percalços decorrentes de profundas desigualdades sociais que imperam no país. Dessa forma, a narrativas escritas por eles são marcadas por sentimentos que apontam para o processo de resistência pautada em um objetivo, a saber: ascensão educacional e social. E como se eles quisessem provar para a sociedade que, a pesar de todas as dificuldades, eles não desistiram de suas metas, portanto, são capazes de melhorar suas condições socioeconômicas, culturais e humanas através da educação, como afirma a aluna B: “A minha mãe sempre dizia que ela não tinha dinheiro para deixar para nós, por isso ela se esforçava em deixar os estudos como herança porque isso ninguém ia nos tomar”.
Assim sendo, a particularidade de cada história imprime intensidade e dinâmica próprias de acordo com a trajetória de cada um. Essas singularidades são debitadas às experiências escolares, culturais e sociais vividas por esses sujeitos, mesmo que os memoriais mostrem os caminhos desses jovens, até o momento do ingresso na universidade, esse sucesso não se explica apenas através de variáveis ou fatores explicativos.
Dessa forma, as trajetórias escolares surgem em um contexto no qual a sua construção ocorreu em um cenário desfavorável para esses sujeitos, ou seja, foi possível perceber as pressões pela quais eles passaram, como por exemplo, a aprovação no vestibular, que infringe nos estudantes das camadas populares um processo doloroso, pois eles têm que disputar com alunos de classe média uma vaga nas universidades, sendo que estes apresentam maiores vantagens por estarem mais bem preparados, uma vez que eles vêm de lares que oferecem uma série de recursos que lhes beneficiam. Como afirma Bourdieu (1979) que os sujeitos mais dotados de capital social teriam mais êxito dentro do sistema educacional.
Dessa forma, a intenção deliberada de reconstruir a trajetória escolar desses sujeitos, visa promover e servir de modelo para aqueles outros jovens provenientes de meios populares, por apresentar um caráter de complexa singularidade na sua constituição, por outro lado essas memórias fortalecem a identidade desses estudantes dando um significado a sua existência dentro de uma sociedade capitalista fortemente marcada pela desigualdade social. Contribui, ainda, para o esclarecimento de que o empenho individual juntamente com a mobilização da família e das redes de relacionamentos extra-familiares são fatores imprescindíveis que possibilitam a construção de uma trajetória escolar de sucesso pouco conhecida, como as aqui relatadas.

CONCLUSÃO

Este trabalho de conclusão de curso teve como objetivo analisar quais práticas socializadoras familiares utilizadas por estudantes de meios populares possibilitaram dar-lhes condições de longevidade escolar, êxito nos estudos e acesso as IFES. As análises mostram que as famílias desses sujeitos não possuíam projetos de ascensão educacional definido, justamente por possuírem baixo capital cultural, pouca escolaridade, são desprovidos de recursos financeiros, possuem ocupações populares, famílias numerosas e reduzida rede de relacionamentos extra-familiar.
Sendo assim, a trajetória escolar desses estudantes, muitas vezes foi interrompida, devido às péssimas condições econômicas de suas famílias, que exigiam que eles contribuíssem com a renda familiar. Em outras situações essa trajetória foi descontinuada devido às adversidades que não estão relacionadas somente a recursos financeiros, mas que de alguma forma influenciaram nesse percurso.
Nesse sentido, constatou-se que a mobilização pessoal desses alunos foi o diferencial para o seu sucesso. Na impossibilidade, na maioria das vezes, de encontrar em casa referências de pessoas que tinham um acúmulo de capital social, cultural e escolar induziu esses alunos a buscar referências em outras instâncias, como nas relações extra-familiares. Assim, apesar de alguns membros da família terem sido mencionados como referência, houveram também professores, vizinhos e membros de grupos de estudos, que serviram de norte para alguns dos sujeitos analisados.
Para esses estudantes, a escolarização está intimamente relacionada à melhoria de condição de vida socioeconômico, ou seja, para eles, parece estar obvio que, através dos estudos, eles poderão ascender socialmente, poderão ter garantia de bons empregos e boa condição na vida. No entanto, eles tinham também um sonho, uma meta de cursar o ensino superior. Essa mobilização pessoal foi determinante para o acesso ao tão almejado ensino superior em uma IFES.
Dessa forma, apresentando as singularidades dos percursos escolares de cada um dos universitários analisados, pode-se inferir que a configuração de fatores que compõem a trajetória escolar de cada um deles ultrapassou as expectativas familiares, pois em sua maioria, eles são os primeiros de suas famílias a acessarem o ensino superior, tornando-se assim, um orgulho e exemplo para os demais membros da família.
Em suma, pode-se afirmar que os estudantes vivenciaram uma pluralidade de experiências diversificadas e, às vezes contraditórias, que fazem parte de um contexto singular, múltiplos e heterogêneos, que somadas às dimensões já examinadas, reafirmam uma contradição socialmente construída de que somente os dotados de recursos materiais acessam o ensino superior. Dessa forma, esses estudantes em uma trajetória marcada por sofrimento e angústias conseguiram vencer as barreiras estatisticamente improváveis.
Todavia, as considerações aqui apresentadas não podem ser consideradas conclusivas. Percebeu-se que mais difícil do que acessar, na educação superior, existe a dificuldade de permanecer na instituição e concluir o curso. Nesse sentido, segundo esses estudantes, programas como o Conexões de Saberes garantem a permanência de alunos de meios populares. Assim, o conceito de sucesso escolar defendido nesta pesquisa tem um caráter processual que ainda não se configurou em todas as suas dimensões, merecendo, portanto, ser continuado em pesquisas futuras.


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------: Os três estados do capital cultural. IN: NOGUEIRA, M. A.; CATANI, A.: Escritos da educação; 3º ed. Petrópolis. Vozes, 2001.

ZAGO, Nadir. Do acesso à permanência no ensino superior: Percursos de estudantes universitários de camadas populares. Disponível em: <http://www.scielo.br>
 Acesso em: 17 de jun. 2012







ANEXO A -  ALUNO A: MINHAS CAMINHADAS

Minha trajetória escolar me concebeu o quanto o estudo é relevante para vida pessoal e profissional de um indivíduo. Meus pais são oriundos da região amazônica, são semianalfabetos, ela trabalhava como empregada doméstica e ele carpinteiro, juntos tiveram 13 filhos. Comecei a estudar aos sete anos de idade, não fiz o jardim de infância, ingressei diretamente na primeira série. Estudei nessa escola até a sexta série do ensino primário na época, com a separação dos meus pais, minha mãe tomou uma atitude de sair da casa que ajudou a construir, deixando o meu pai com a casa e fomos morar alugado em outro bairro, próximo do centro.
Saí de uma escola de periferia para uma escola do centro era outra realidade, estudei da sétima série ao terceiro ano do ensino médio, terminei meu ensino médio tarde com 22 anos, não ingressei logo na universidade, pois comecei a trabalhar no comercio para poder ajudar a minha mãe a criar meus irmãos mais novos, minha mãe hoje ela é aposentada mais sempre trabalhou em casa de família para poder colocar o que comer, vestir e as outras despesas como, por exemplo, materiais escolar para todos nós. Perdi treze anos da minha vida ao trabalhar no comercio, até que resolvi voltar a estudar.
Fiz um cursinho pré-vestibular gratuito, para me situar como estava a minha situação escolar, pois estava muito tempo parado, em 2006 fiz meu primeiro vestibular, passei na primeira fase por muito pouco não consegui entrar, continuei estudando, em 2007 tentei novamente, mas agora para o curso de Geografia, novamente passei na primeira fase e fiquei na segunda, meu objetivo de cursar o ensino superior estava escapando, pois já não tinha mais esperança e nem paciência para estudar, mais incentivado por outros colegas para não desistir, resolvi fazer de novo o vestibular.
Em 2008 com todos meus esforços consegui ser aprovado, para mim foi uma alegria muito gratificante entrar em uma instituição Federal, onde muitos almejam uma vaga. Antes a universidade era almejada pelos filhos de famílias classe média alta, hoje a realidade e outra, os filhos de famílias populares também fazem parte dessa realidade.

ANEXO B - ALUNA B: MINHA LUTA


Eu nasci no dia 09 de novembro de 1979, filha de pais nordestinos, minha mãe é maranhense (dona de casa), meu pai cearense (motorista),ambos estudaram até a 5º serie do fundamental, tiveram cinco filhos (quatro mulheres e um homem), sou a segunda filha do casal. Comecei a minha trajetória escolar com quatro anos, estudei no jardim de infância em Santa Inês – MA, devido algumas dificuldades financeira, minha avó foi buscar a minha família para morar neste Estado, passamos a morar ao lado da casa de meus avôs no bairro Alvorada, então a minha mãe me matriculou em uma escola que ficava próxima de casa, lá eu estudei da 1ª a 4ª série.
Como nessa escola só tinha até a 4ª série a minha mãe conseguiu uma vaga em outra escola, que ficava um pouco distante de casa, quando tinha o dinheiro do ônibus eu ia e voltava de ônibus , quando não tinha eu ia e voltava a pés, para chegar nessa escola eu caminhava por uma hora, estudei nessa escola três anos.
Em 1994 nós nos mudamos para outro bairro, então a minha mãe conseguir vaga em outra escola, ela passou a noite na fila, onde eu fiz a oitava série, essa escola ficava em outro bairro, e era necessário ir e voltar de ônibus. A época em que estudei nessa escola não foi um momento bom para a minha família, pois meu pai ficou desempregado, e eu tinha que ir de bicicleta carregando a minha irmã para irmos estudar, lembro-me que nessa escola tinha uma disciplina educação para o lar onde era necessário comprar alguns materiais para a confecção de algumas atividades, como meu pai não tinha condições de comprar eu ficava só olhando os outros fazerem. Pelo meio do ano o governo da época passou a oferecer passagem de ônibus integral para os estudantes que obtinha a carteirinha de estudante, foi quando deu uma melhorada para chegarmos à escola, passei um ano nessa escola.
Para cursar o 2º grau minha mãe teve que passar mais uma vez à noite na fila. Passei 3 anos estudando nessa escola, era uma escola que eu tinha que ir de ônibus, e o governo não oferecia mais a passagem integral para os estudantes, então tinha que pagar a meia-passagem, ficou difícil para o meu pai sustentar cinco filhos na escola, mais mesmo assim ele trabalhava noite e dia para nos proporcionar uma educação.
Quando eu terminei o 2º grau eu não tive condições de pagar a inscrição para prestar um vestibular, pois nessa época só quem tinha condições de entrar em uma universidade eram pessoas bem de vida, então passei dois anos sem estudar, então resolvi fazer o teste de seleção para o Magistério, passei e fiquei estudando por quatro anos nessa escola. No ultimo ano o governo do estado passou oferecer a inscrição de graça para estudantes que terminavam em escola publica, então eu fiz o vestibular e só passei na 1ª fase.
Em 2004 eu fiz o pré- vestibular em um cursinho gratuito, mais infelizmente minha mãe nesse mesmo ano faleceu, eu ainda cheguei a fazer a prova mais não passei. Por essa situação eu fiquei três anos sem estudar, nesse período minha irmã e eu sofremos um acidente de ônibus, impedindo-me de cursar um cursinho, devido os gastos que tivemos com o acidente.
Em 2008 eu me matriculei no cursinho de graça, mais passei várias dificuldades tanto financeira quanto de doenças no meio de meus parentes, Mais em meio tantas dificuldades eu conseguir fazer o vestibular que era oferecido à inscrição de graça para alunos que estudaram em escola pública. Fiz a prova e passei em 2º lugar para o curso de Licenciatura, eu e minha família ficamos muito felizes por essa benção concedida por Deus.
Enfim eu passei toda a minha trajetória escolar estudando em escola publica, meus pais passaram grandes dificuldades para manter a mim e meus irmãos na escola. A minha mãe sempre dizia que ela não tinha dinheiro para deixar para nós, por isso ela se esforçava em deixar os estudos como herança porque isso ninguém ia nos tomar. Meus pais não concluíram seus estudos mais sempre tiverem a certeza que a educação mudaria nossas vidas, eu agradeço a Deus pelo esforço que meus pais tiveram para que pudéssemos estudar.



ANEXO C - ALUNA C: MINHA TRAJETÓRIA


Minha mãe é amapaense e teve 5 filhas, sou a primeira filha de minha mãe e a primeira neta de minha avó.Minha mãe é dona de casa e estudou até a 4ª série do fundamental. Minha avó é analfabeta, só sabe assinar o nome, e é servente concursada da prefeitura há 20 anos. Eu sempre estudei em escolas públicas, e minhas irmãs estudam em escola pública ainda, pois, por serem menores que eu ainda não concluíram os seus estudos. Concluir meus estudos no ensino básico no ano de 2008 na escola Estadual Professor Francisco Waley Lobato Lima.
Iniciei meus estudos aos 5 anos de idade numa escola no Rio Cupixi, contudo não valeu meu pré-escolar porque a professora não tinha diploma e a escola não era regularizada. Aos 6 anos vim morar com minha avó, onde fiz o pré-escolar novamente e os 7 anos ingressei na primeira série.
Durante toda minha carreira escolar no ensino básico sempre tive o apoio de minha família. Fui auxiliada por minha tia no processo de aprendizagem da leitura e minha avó foi a principal responsável por me manter na escola e apoiar meus estudos. Eu e minha avó temos uma relação harmoniosa, e até hoje se preciso de apoio material e financeiro ela esta pronta para me ajudar.
Sempre estudei em escola pública, o ensino fundamental e médio.Concluir meus estudos no ensino básico no ano de 2008 fiz cursinho pré-vestibular gratuito e finalmente, no ano de 2009, eu consegui ingressar na Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), no quarto lugar fui aprovada para o curso de Licenciatura, o qual espero estar concluindo agora em 2013.


ANEXO D - ALUNA D: CAMINHO TORTUOSO


Meus pais são do interior do Pará, meu pai era carpinteiro, e estudou até a 4ª série do fundamental.  Minha mãe é dona de casa e analfabeta, eles tiveram doze filhos. Eu nasci em 1977 no interior e meus irmãos também nasceram nesta localidade. Iniciei meus estudos com sete anos de idade, porém nos mudamos para a atual capital onde residimos. Foi aí que começou as dificuldades, pois eram muitos filhos para por na escola e sustentar.
 Meus irmãos mais velhos tiveram que trabalhar logo para ajudar no sustento da família. Em pouco tempo eu também comecei a trabalhar de babá e assim o tempo foi passando, e quando entrei na escola para fazer a 1ª série eu tinha 12 anos. Fiz a 1ª série de aceleração e passei e passei para a 3ª série.  No ano seguinte fui transferida para outra escola, nessa eu fiquei até a 6ª série.
Fiquei sem estudar depois dessa época, pois eu tinha me casado, e retornei para estudar na EJA anos depois. Estudei um ano e depois parei, tinha que trabalhar e estudar e eu não estava conseguindo dando conta de fazer as duas coisas. Então foram mais alguns anos sem estudar, foi quando percebi a necessidade de concluir meus estudos e retornei no ano de 2003 para fazer a EJA. Eu concluí o ensino fundamental com muitas dificuldades, pois já estava muito desatualizada e os conteúdos  e as disciplinas eram diferentes da época em que eu parei, mas com muito esforço consegui vencer.
No ano de 2006 iniciei o ensino médio na EJA, fiz o 1º ano em 2006 e em 2007 o 2º e o 3º ano junto. Logo em seguida comecei um cursinho pré-vestibular gratuito. Neste mesmo ano saiu á lista dos alunos para fazerem a inscrição do vestibular. Nesta época o governo pagava a inscrição de alunos de escolas públicas. Então chegou o grande dia da prova do vestibular, com todas as dificuldades que passamos no decorrer do ensino médio, como falta de professores e muitas outras coisas, ei fui com fé e a coragem fazer o vestibular, pois vi ali a minha chance de ingressar em uma universidade.
E então em 2008 passei no vestibular das duas instituições do Estado, a federal e a estadual. Optei pela federal, e assim sai do ensino médio direto para a universidade, fiquei muito feliz. Mas eu estava grávida e passei por uma cesariana inesperada. As aulas iriam iniciar em 3 de março e tive bebê dia 24 de fevereiro. O bebê havia passado da hora de nascer e houve várias complicações e acabei passando 16 dias na maternidade. Detalhe, tive entrar com pedido para tranca minha matrícula do 1º semestre sem saber de nada. Ao retornar no 2º semestre me deparei com situações difíceis, tive lutar para não perder minha vaga.
Foram dias difíceis sem ninguém para me orientar, haviam muitas disciplinas acumuladas. Só pude fazer uma disciplina na turma, foi aí que entrei com pedido de transferência de turma para a turma 2009. Na coordenação do curso não me deram muita esperança e disseram que a prioridade era para quem estava estudando normalmente, como eu não estava só havia uma disciplina que eu podia fazer na turma que era sociologia I.
Eu já estava cansada de fazer documentos e deixar na coordenação, as aulas já haviam começado na turma 2009 e eu estava perdendo aula. Foi quando eu resolvi que não ia mais atrás, ia deixa como estava e então neste mesmo dia recebi uma ligação do DERCA dizendo que meu pedido havia sido aceito, mais fizeram eu prometer que realmente iria estudar, que não iria parar ou abandonar.  Agora imagine se eu estava lutando para permanecer como eu não iria estudar.
Não é qualquer pessoa que faz um vestibular e ingressa assim tão rápido como eu. Só tem uma coisa que poderia me tirar do curso: a morte. Na minha família eu sou a única que esta fazendo o ensino superior, todos os meus irmãos terminaram o ensino médio e prestaram vestibular, mas como não passaram desistiram. Por isso, para mim e minha família é muito importante esse momento em que estou vivendo, mesmo com todas as dificuldades me considero uma vencedora. Estou muito feliz que praticamente terminamos o curso. Obrigado meu Deus!!


ANEXO E - ALUNA E: CAMINHEI, CONQUISTEI E VENCI!!!

Sou de uma família paraense, tenho 11 irmãos, sou fruto do segundo casamento, tenho 3 irmãos e sou a única filha mulher, todos nos concluímos os estudos em escolas públicas.
Em Belém estudei em escolinha chamada Fé em Deus, essa foi a minha primeira experiência escolar, tinha 4 anos. No ano de 1987, devido ao falecimento de minha mãe, vitima de acidente de trânsito, vim para este Estado com meus irmãos e meu pai.
Iniciei meus estudos com 5 anos em uma escolinha de reforço, pois nessa época não havia escola disponível para minha faixa etária, meu pai não pagava mensalidade, ele colaborava com o lanche, era uma espécie de escola comunitária, fiquei 2 anos nessa escola e com 7 anos meu pai me matriculou em outra escola pública, que ficava próximo de casa, estudei 4 anos, e tive que ser transferida para outra escola, pois não tinha a 5ª série (6º ano) e fui estudar em outra escola pública, lá eu conclui meu ensino fundamental, claro que com bastante dificuldades, pois com a morte da minha mãe, meu pai mergulhou de vez no alcoolismo, como forma de tentar fugir dos problemas decorrentes da morte dela. Largou o emprego de soldador em uma firma de construção civil, e nossos problemas só aumentaram, pois passamos muitas dificuldades, principalmente para nos mantermos na escola, nessa época era exigido que os alunos fossem devidamente uniformizados, e como não podíamos entrar todos os dias meu pai nos acompanhava até a coordenação para assinarmos uma autorização.
Me interessei  em fazer o processo seletivo para uma escola que tinha o curso de magistério, estudava em casa, e tive ajuda de dois vizinhos nas matérias que eu tinha mais dificuldades, graças à Deus consegui passar e foram 4 anos me profissionalizando na área da educação.  
Conclui o 2º grau e passei 5 anos sem tentar vestibular, por causa do nascimento da minha filha, que sem ter com quem deixar, tive que adiar meu sonho de entrar na universidade. Passado esse tempo, fiz minha inscrição em um cursinho pré-vestibular gratuito, só tínhamos que comprar a camisa, estudava no turno da noite, ele fica longe na minha, muitas vezes meu marido me levava de bicicleta, era o ano de 2008, e eu decidi que aquele era o meu ano de ingressar de vez para o ensino superior, estudava também em casa, acompanhando a revisão do cursinho que era transmitido pela televisão por volta de 1 hora da noite, eu acompanhava tudo, todos os dias.
Então, consegui passar no vestibular, em um Curso de Licenciatura, meu pai e meus irmãos ficaram muito felizes, e eu mais ainda, tinha realizado um sonho. Mas a minha permanência na universidade era apenas uma das dificuldades que eu encontrei na minha caminhada acadêmica, pois dependia de ônibus para chegar até a universidade, sem contar que muitas vezes tinha que voltar a pé, pois tinha que economizar passe escolar, nesse período tive a oportunidade de estagiar em duas escolas particulares que aliviaram um pouco a situação, mas por pouco tempo, porque o término de curso vem o TCC e temos que ter dinheiro pra comprar livros indicados pelos orientadores, as escolas particulares já não contratam por estarmos terminando o curso e isso dificulta ainda mais a vida de um acadêmico, mas na vida nada vem fácil, então encaro esses fatos com uma motivação, para conseguir o meu tão sonhado diploma superior e colocar em prática tudo que aprendi nesses anos de ensinamentos, e continuo aprendendo tanto no que tange o curso como também com a maior professora que já conheci: a VIDA!!!

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