Nunca,
desde que Shakespeare nasceu, há quatrocentos anos, as suas personagens falaram
a tanta gente ou adquiriram tanto significado como nos nossos dias. Ao longo
das muralhas sinistras de Lourijenac, construída no século XIX, na Iugoslávia,
o fantasma do pai de Hamlet incita seu filho a vingança; no coração da Rússia,
em Tashkent, o ciumento Moor
estrangula a inocente Desdêmona. No outro extremo do mundo, atores australianos,
vestidos de tecido preto, viajam de automóvel ao longo da ilha continente,
transportando uma coroa e uma ou duas espadas entre os seus pertences. Tribos
da Rodésia do sul representam Macbeth, com
os trajes dos guerreiros Zulus.
Nos
teatros, palcos improvisados e salas de aula de todo mundo, onde quer que o sol
se ponha e as cortinas se abram – em inglês puro, em boas ou más traduções -,
as personagens de Shakespeare falam ao homem, do coração da humanidade. É nos
três Stratfords – Inglaterra, Canadá, Estados Unidos – que as personagens
parecem estar mais à vontade. Em Stratford-Upon Avon, após 84 anos de
representações contínuas de Shakespeare, vendem-se cerca de 391 mil ingressos
por ano. Stratford, no Canadá, inaugurada em 1953, atrai mais de milhões de
espectadores, arrecadando 7 milhões de dólares. Stratford, no estado de
Conncticut, vendeu mais de 258 mil ingressos, em 1964.
A julgar Por estes números, ao público do nosso tempo aplicam-se as palavras do crítico Maurice Morgan que, em 1774, escreveu sobre Shakespeare: “É mais seguro dizer que Shakespeare nos domina, do que nós o dominamos”.
Enormes
lacunas no conhecimento da vida de Shakespeare encorajaram teorias tais como a
que pretende provar que Shakespeare não escreveu as obras que lhe são
atribuídas – mas que serviu de “capa” a sir
Francis Bacon ou a Eduardo de Vere, décimo sétimo conde de Oxford, o a
Christopher Marlowe, ou a sir Walter Raleigh, ou a rainha Isabel I, ou até a
própria mulher do poeta, Ana Hathaway. Criptógrafos amadores julgavam ter
decifrado códigos escondidos nos escritos de Shakespeare, que indicavam o
verdadeiro autor. No fundo desta questão está a noção de que um homem com
origem e instrução humildes não poderia ser um gênio com aquelas proporções.
Estas teorias já foram rebatidas de várias formas, mas o testemunho mais
evidente contra elas é constituído pelas próprias peças – o estilo é o homem -,
código insofismável em que a vida e o trabalho se encontram.
Quando
jovem Shakespeare teve um ambiente familiar, e talvez até escolar, bastante
superior ao que os seus detratores admitem. Os Shakespeares eram lavradores do
Warwickshire, mas a ambição do pai de Willian levou-o a mudar-se para
Stratford, onde trabalhou como luveiro. Era, também, um dos provadores oficiais
de cerveja e, quando Willian tinha quatro anos, chegou a, ser nomeado alcaide.
Provavelmente,
o rapaz freqüentou a escola real de Stratford, embora contra a sua vontade, uma
vez que naquele tempo o programa escolar consistia quase exclusivamente em exercícios
de latim (desde as sete horas da manhã até as cinco horas da tarde e mais tempo
ainda, no verão), e era exigida uma disciplina espartana.
Companhias
de atores itinerantes iam representar em Stratford. Atraído por essas companhias,
o jovem Willian, agora com vinte anos, partiu para Londres, onde ingressou em
uma delas. Quer como ator, quer como escritor, teve um êxito rapidíssimo.
Escrevia com uma velocidade espantosa – e, no entanto, os seus manuscritos
raramente estavam corrigidos. Tal como Merlin, que para as suas feitiçarias
utilizava qualquer porção, para Shakespeare qualquer fato servia para escrever,
infundindo-lhe magia, quer fosse tirado das crônicas,
de Holinsheds, quer das vidas, de Plutarco. Era o ídolo dos londrinos.
A
cidade, cujo espírito Shakespeare captara, estava em plena efervescência. Após
a derrota da armada invencível (1588), a Inglaterra dominava os mares e os
ingleses dessa época surpreendiam-se ante o seu próprio poder: “Que obra-prima
é homem! Como é nobre o seu poder de raciocínio! Como é dotado! Como é
expressivo e admirável na forma e no movimento! Nas suas ações, lembra um anjo!
Quão semelhante a um deus é o seu entendimento!”
Deslumbrado pela vida, o inglês do século XVI não estava,
no entanto, menos familiarizado com a morte: as pestes assolavam Londres.
Todavia, uma existência cheia de perigos não impedia que os isabelinos
sorrissem. Shakespeare aplicou uma lente de aumento ao espírito de sua época e,
com sua musa de fogo fez resplandecer
o Globe Theatre.
Em todas as épocas se tem tentado verter Shakespeare em moldes contemporâneos. Uma historia das diversas formas de representar o teatro Shakespeariano, disse T. S. Eliot, é uma história da civilização ocidental. Orson Welles vestiu o César, de Shakespeare, com uniforme fascista. Moscou apresentou Hamlet como uma conspiração militar contra o rei. Em Nova Yorque, uma companhia representou um Rei Lear em que todos os papeis foram desempenhados por mulheres. Muitas destas versões são artificiosas, mas não desvirtuam, necessariamente, o espírito do autor. São possíveis porque Shakespeare é sempre atual. A sua voz chega a todo mundo: católicos, protestantes, agnósticos, aristocratas, democratas, otimistas e pessimistas.
Que tem Shakespeare a dizer de uma época que pressente
que o mundo anda desequilibrado? Não renuncia ao quadro, nem se perde em vãs
lamentações. Shakespeare festeja o amor, os manjares, a bebida, a música, a
amizade, a conversação e a beleza variável e constante da natureza. O homem que
Shakespeare apresenta destila da sua experiência, senso comum e invulgar
sabedoria.
Todavia, o homem é, também, a “quinta-essência do pó” e
os “homens tem de sofrer pacientemente tanto a sua saída do mundo, como a sua
vinda para ele”. O herói da tragédia Shakespeariana é chamado a enfrentar o
impossível e a morrer sem esperança de recompensa. Quando ele vai ao encontro
do seu destino, o público diz, convicto: “Ali, pela graça de Deus, vai um homem
melhor que eu”. O que identifica emocionalmente o público com o herói trágico é
a qualidade que, essencialmente, os separa: a nobreza.
Na pena de escritores menos dotados, essa nobreza
resume-se ao esplendor da linguagem, mas versos belos apenas ficam no ouvido.
Shakespeare fala à alma humana. Sabia manejar a linguagem com mestria
inigualável. A forma como fala de uma coisa faz com que ela se materialize
diante de nós. Condensava o universo em monossílabos: “Ser ou não ser” é a
questão mais complexa e profunda que se põe ao homem, traduzidas pelas palavras
mais curtas e simples.
Shakespeare tão depressa conduz o homem aos limites da
eternidade, como o remete para o comum da humanidade. Ante o cadáver de
Cordélia, Rei Lear, atormentado pela dor, exclama “como é possível que um cão,
um cavalo e um rato tenham vida, enquanto tu jazes inerte?” No auge do seu
desespero, diz: “Não voltarás mais”. E acrescenta: “nunca mais, nunca mais,
nunca mais, nunca mais, nunca mais”. Em seguida, o dique que represava a sua
angústia cede com este pedido comezinho: “Por favor, desaperta-me este botão”.
Só Willian Shakespeare poderia ter ousado empregar, em um mesmo momento
dramático, conceitos tão díspares.
Shakespeare sobrevive, porque a seu respeito só é
possível dizer a penúltima palavra – nunca a última. As suas criações são tão
opacas como as da própria vida. As suas personagens são imensamente
desconcertantes. A exceção de Jesus, de Napoleão e do próprio Shakespeare,
Hamlet é a personagem sobre a qual mais se tem escrito. No entanto, a única
coisa que se sabe de Hamlet é que a sua tragédia é ser Hamlet – como a de todo
ser humano é ser o que é. Todas as épocas e todos os homens encontram a sua
imagem refletida no espelho Universal de Shakespeare. Os ecos da sua paixão e
da sua poesia ressoam no nosso espírito – e assim será até os fins dos tempos.
Fonte: Grandes Vidas, Grandes Obras, seleções
do Reader’s Digest, Lisboa, Portugal, 1980.
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