8/17/2013

Gorki: O escritor da Revolução Proletária



Nascido em Nijni-Novgorod, hoje Gorki, a 14 de maio de 1868, Alexei Maximovich Pechtov teve intimas, profundas e compreensíveis razões para adotar o pseudônimo literário de Máximo Gorki, com qual se imortalizaria. É que “gorki” em russo significa amargo, amargoso; e amarga, como fel. Tantas vezes, foi a sua vida desde o berço miserável. E até a sua morte, em pleno fastígio da glória, a 14 de junho de 1936, não foi isenta de amargura, quando os médicos que atendiam teriam sido forçados a aplicar-lhe remédios inadequados, uma espécie de cicuta estatal. É que pelos altos poderes diretivos era olhado sob a suspeita de conspirador, quando não foi mais, durante toda a sua agita existência, que um grande e generoso inconformado que, descontente com a feição que iam tomando os negócios públicos, queria voltar para o estrangeiro, onde tanto tempo estivera, e negado lhe foi o passaporte – “e tudo isso era conhecido publicamente e discutido em murmúrios”, escreve Trotski em livro de memórias, e ainda mais: “durante a fome do primeiro e segundo planos qüinqüenais, o descontentamento e a repressão chegaram ao mais alto grau... Em tal atmosfera, Gorki constituía uma séria ameaça. Correspondia-se com escritores europeus, era visitado por estrangeiros, os danificados lhes levavam as suas queixas, ele moldava a opinião pública... prendê-lo, exilá-lo, era impossível. Estava enfermo... e a idéia de apressar a liquidação do Velho Gorki apareceu como a única maneira de solucionar o problema.”

Órfão muito cedo, desprovido de qualquer instrução, Gorki começou a trabalhar aos 9 anos, tentou varias ocupações, foi aprendiz de sapateiro, ajudante de cozinheiro nos navios do Volga, jardineiro, padeiro, vendedor de frutas, ferroviário – “as minhas universidades”, como chamou ironicamente – conheceu a miséria, passou fome e frio, por largo tempo não foi mais do que um vagabundo, percorrendo grande parte de sua querida Rússia e a substância mais rica dos seus relatos é precisamente aquela em que recorda suas andanças e sofrimentos, sua fome e desamparo, suas tentativas e contatos, aquela comovente matéria autobiográfica de Primeiro Amor e Camaradas, de Os Vagabundos e Os Degenerados, de Os Pequenos Burgueses No Bas-Fond – duas peças que dariam ao teatro russo uma nova dimensão, elevando-o sensacionalmente além de suas fronteiras – de As Minhas Universidades e o Asilo Noturno, de O Espião e Recordações de Minha Vida Literária, ele que tanto privara com Tolstoi e Tchecov, e especialmente de Minha Infância – um livro de qualidades excepcionais – ficção povoada de marginais, transviados, desempregados, aventureiros, pequenos comerciantes, mães de família e prostitutas, místicos e parasitas, operários e camponeses, soldados e marinheiros, ladrões e rufiões, bêbados e mais bêbados, páginas densamente impregnadas de um poderoso sentido social, que iriam torná-lo escritor preferido da era Soviética, escritor nitidamente proletário e político, que preparou durante anos a consciência revolucionária do povo russo, pagando por isso com numerosas prisões. Tal mensagem popular traziam as suas primeiras novelas, que eram esperadas como se fossem “importantes noticias políticas” cumprindo em relação às mais baixas camadas do povo russo a mesma conhecida missão que o sentimental humorismo de Dickens exercera para com as classes médias inglesas.

Enquanto lutava desesperadamente pela mera sobrevivência, aos azares do nomadismo, tão eslavo. Chega a Kazan, tinha 17 anos. E aí trava conhecimento com estudantes da universidade, com eles se instrui, lê com voracidade todos os livros que lhe emprestam, e decide-se pela literatura, melhor dito, por ela é arrastado e começa a escrever. Interessado pela vida política, ligou-se a um grupo populista, que abandonou aos 18 anos, tendo nessa ocasião, numa das suas raras explosões de desânimo, tentado suicidar-se com tiro de pistola que traspassou-lhe o pulmão. É preso em 1890 por convivência com elementos suspeitos e ao sair da prisão interessa-se pelo nascente movimento marista. E em 1898 publica a sua primeira série de contos, que foi rejeitada por vários editores, e que teve um sucesso sem precedentes, pois evocava o que viu e padeceu nos seus anos de vagabundagem, trazendo a novidade dos assuntos e dos ambientes e chamando para os jovens proletários a atenção do país.

Em 1901 é preso outra vez por suas ligações com o movimento revolucionário e liberto pela ação de Tolstoi, recebendo depois, por todos os lugares que ia, entusiásticas manifestações. Em 1902, já era tão famoso quanto o seu libertador, é eleito para a Academia Russa, mas não o deixaram tomar posse e anulada foi a sua eleição sob o estapafúrdio pretexto de que não tinha em ordem os seus documentos civis, irregularidade que levou Tchecov e Korolenko, diletos amigos, a se afastarem da Academia, solidários com ele. E envolve-se na fracassada revolução de 1905, com destacado papel, e acaba viajando para o exterior a fim de reunir fundos para a revolução. Em 1907 vai residir em Capri, trava amizade com Lenine, e em 1913 retorna a pátria. Durante a primeira guerra mundial assumiu atitude pacifista e até germanófila e, em 1917, apóia os bolchevistas, betendo-se pela paz em separado. Após a vitória da revolução tornou-se o porta-voz dos intelectuais perante o governo, é nomeado ministro das Belas Artes por Kerenski, mas, por certas divergências com os sovietes, sai da Rússia, em 1921, para a Alemanha e fixa-se afinal em Sorrento, tão cara a Tasso. E ao voltar a sua terra, em 1928, foi alvo de ruidosas manifestações – é um ídolo, é o pai da literatura soviética.

Se Tolstoi é a ilimitada grandeza, que alcança as alturas das epopéias e Turguenev é a elegância estilística bebida na melhor lição francesa e a literatura dos senhores rurais, “inúteis” e “supérfluos”; se Dostoievski é o mergulhador em profundidade nos tristes e ignotos corações humanos e Tchecov é graça, simplicidade quase de repórter e resignado decadentismo. Gorki é a chocante força que se revolta contra miséria e escravidão do povo russo, é a inteligência é a arte engajadas para a defesa de um ideal proletário, é o salvador da literatura russa, que, sem a sua poderosa presença, talvez não tivesse sobrevivido à tempestade da revolução de 1917, após o fracasso da revolução de 1905, quando os intelectuais, como pondo fim a quase um século de agitação profundamente nacional, realista e naturalista, refugiam-se num simbolismo enfezado e estrangeiro. É que Gorki soube resistir – prosseguiu e foi exatamente em Mãe, mais evocativo do que épico, de forma tão irregular que não seria apontado nunca como uma obra-prima literária, mas que uma das obras capitais da literatura russa, foi em Mãe que se tornou o autêntico romancista da revolução proletária e de uma nova era, lançando através de suas dolorosas páginas as ideias que pregava e que a massa entendia e esperava.

(REBELO, Marques. A Mãe. Ediouro Publicações S/A. Rio de Janeiro:  2003)

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