Nascido em Nijni-Novgorod, hoje Gorki, a 14 de maio
de 1868, Alexei Maximovich Pechtov teve intimas, profundas e compreensíveis
razões para adotar o pseudônimo literário de Máximo Gorki, com qual se imortalizaria.
É que “gorki” em russo significa amargo, amargoso; e amarga, como fel. Tantas
vezes, foi a sua vida desde o berço miserável. E até a sua morte, em pleno
fastígio da glória, a 14 de junho de 1936, não foi isenta de amargura, quando
os médicos que atendiam teriam sido forçados a aplicar-lhe remédios
inadequados, uma espécie de cicuta estatal. É que pelos altos poderes diretivos
era olhado sob a suspeita de conspirador, quando não foi mais, durante toda a
sua agita existência, que um grande e generoso inconformado que, descontente
com a feição que iam tomando os negócios públicos, queria voltar para o
estrangeiro, onde tanto tempo estivera, e negado lhe foi o passaporte – “e tudo
isso era conhecido publicamente e discutido em murmúrios”, escreve Trotski em
livro de memórias, e ainda mais: “durante a fome do primeiro e segundo planos
qüinqüenais, o descontentamento e a repressão chegaram ao mais alto grau... Em
tal atmosfera, Gorki constituía uma séria ameaça. Correspondia-se com
escritores europeus, era visitado por estrangeiros, os danificados lhes levavam
as suas queixas, ele moldava a opinião pública... prendê-lo, exilá-lo, era
impossível. Estava enfermo... e a idéia de apressar a liquidação do Velho Gorki
apareceu como a única maneira de solucionar o problema.”
Órfão muito cedo, desprovido de qualquer instrução,
Gorki começou a trabalhar aos 9 anos, tentou varias ocupações, foi aprendiz de
sapateiro, ajudante de cozinheiro nos navios do Volga, jardineiro, padeiro,
vendedor de frutas, ferroviário – “as minhas universidades”, como chamou
ironicamente – conheceu a miséria, passou fome e frio, por largo tempo não foi
mais do que um vagabundo, percorrendo grande parte de sua querida Rússia e a
substância mais rica dos seus relatos é precisamente aquela em que recorda suas
andanças e sofrimentos, sua fome e desamparo, suas tentativas e contatos,
aquela comovente matéria autobiográfica de Primeiro Amor e Camaradas, de Os
Vagabundos e Os Degenerados, de Os Pequenos Burgueses No Bas-Fond – duas peças
que dariam ao teatro russo uma nova dimensão, elevando-o sensacionalmente além
de suas fronteiras – de As Minhas Universidades e o Asilo Noturno, de O Espião
e Recordações de Minha Vida Literária, ele que tanto privara com Tolstoi e
Tchecov, e especialmente de Minha Infância – um livro de qualidades
excepcionais – ficção povoada de marginais, transviados, desempregados,
aventureiros, pequenos comerciantes, mães de família e prostitutas, místicos e
parasitas, operários e camponeses, soldados e marinheiros, ladrões e rufiões,
bêbados e mais bêbados, páginas densamente impregnadas de um poderoso sentido
social, que iriam torná-lo escritor preferido da era Soviética, escritor
nitidamente proletário e político, que preparou durante anos a consciência
revolucionária do povo russo, pagando por isso com numerosas prisões. Tal
mensagem popular traziam as suas primeiras novelas, que eram esperadas como se
fossem “importantes noticias políticas” cumprindo em relação às mais baixas
camadas do povo russo a mesma conhecida missão que o sentimental humorismo de
Dickens exercera para com as classes médias inglesas.
Enquanto lutava desesperadamente pela mera
sobrevivência, aos azares do nomadismo, tão eslavo. Chega a Kazan, tinha 17
anos. E aí trava conhecimento com estudantes da universidade, com eles se
instrui, lê com voracidade todos os livros que lhe emprestam, e decide-se pela
literatura, melhor dito, por ela é arrastado e começa a escrever. Interessado
pela vida política, ligou-se a um grupo populista, que abandonou aos 18 anos,
tendo nessa ocasião, numa das suas raras explosões de desânimo, tentado
suicidar-se com tiro de pistola que traspassou-lhe o pulmão. É preso em 1890
por convivência com elementos suspeitos e ao sair da prisão interessa-se pelo
nascente movimento marista. E em 1898 publica a sua primeira série de contos,
que foi rejeitada por vários editores, e que teve um sucesso sem precedentes,
pois evocava o que viu e padeceu nos seus anos de vagabundagem, trazendo a
novidade dos assuntos e dos ambientes e chamando para os jovens proletários a
atenção do país.
Em 1901 é preso outra vez por suas ligações com o
movimento revolucionário e liberto pela ação de Tolstoi, recebendo depois, por
todos os lugares que ia, entusiásticas manifestações. Em 1902, já era tão famoso
quanto o seu libertador, é eleito para a Academia Russa, mas não o deixaram
tomar posse e anulada foi a sua eleição sob o estapafúrdio pretexto de que não
tinha em ordem os seus documentos civis, irregularidade que levou Tchecov e
Korolenko, diletos amigos, a se afastarem da Academia, solidários com ele. E
envolve-se na fracassada revolução de 1905, com destacado papel, e acaba
viajando para o exterior a fim de reunir fundos para a revolução. Em 1907 vai
residir em Capri, trava amizade com Lenine, e em 1913 retorna a pátria. Durante
a primeira guerra mundial assumiu atitude pacifista e até germanófila e, em
1917, apóia os bolchevistas, betendo-se pela paz em separado. Após a vitória da
revolução tornou-se o porta-voz dos intelectuais perante o governo, é nomeado
ministro das Belas Artes por Kerenski, mas, por certas divergências com os
sovietes, sai da Rússia, em 1921, para a Alemanha e fixa-se afinal em Sorrento,
tão cara a Tasso. E ao voltar a sua terra, em 1928, foi alvo de ruidosas
manifestações – é um ídolo, é o pai da literatura soviética.
Se Tolstoi é a ilimitada grandeza, que alcança as
alturas das epopéias e Turguenev é a elegância estilística bebida na melhor
lição francesa e a literatura dos senhores rurais, “inúteis” e “supérfluos”; se
Dostoievski é o mergulhador em profundidade nos tristes e ignotos corações
humanos e Tchecov é graça, simplicidade quase de repórter e resignado
decadentismo. Gorki é a chocante força que se revolta contra miséria e
escravidão do povo russo, é a inteligência é a arte engajadas para a defesa de
um ideal proletário, é o salvador da literatura russa, que, sem a sua poderosa
presença, talvez não tivesse sobrevivido à tempestade da revolução de 1917,
após o fracasso da revolução de 1905, quando os intelectuais, como pondo fim a
quase um século de agitação profundamente nacional, realista e naturalista,
refugiam-se num simbolismo enfezado e estrangeiro. É que Gorki soube resistir –
prosseguiu e foi exatamente em Mãe, mais evocativo do que épico, de forma tão
irregular que não seria apontado nunca como uma obra-prima literária, mas que
uma das obras capitais da literatura russa, foi em Mãe que se tornou o
autêntico romancista da revolução proletária e de uma nova era, lançando
através de suas dolorosas páginas as ideias que pregava e que a massa entendia
e esperava.
(REBELO, Marques. A Mãe. Ediouro Publicações S/A. Rio de Janeiro: 2003)
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