É fácil entender por
que o último romance de George Orwell, publicado em junho de 1949, sete meses
antes da morte do autor, foi um sucesso instantâneo. Em primeiro lugar, é uma
narrativa perversamente indecorosa que leva a fantasia adolescente – de
rebeldia solitária, sexo furtivo e terror implacável – a um extremo
escandalosamente inaceitável. Segundo, e mais importante, essa história
singular foi amplamente interpretada como comentário social a até mesmo como
profecia.
Não é surpreendente, talvez, que o romance tenha sido
entendido dessa forma. Monotonia, escassez material e burocracia governamental
eram um modo de vida não apenas no romance, mas na Grã-Bretanha em que foi
escrito. Na mesma época, o totalitarismo era um medo que se aproximava
furtivamente. A Alemanha nazista num passado recente e China e Rússia no
presente de então amolduravam a consciência politica ocidental. Havia a
sensação de se estar olhando sinistramente para uma bola de cristal colocada a
uma imaginável curta distância.
É importante pensar no romance da mesma maneira hoje. É
uma marca da extraordinária influência do autor que, à medida que o 1984
histórico se aproximava, a data no calendário fosse discutida em todo o mundo
quase com apreensão, como se fosse uma espécie de milênio. Mas isso agora é
passado e alguns podem se perguntar se o prazo de validade do romance já se
esgotou. Por quanto tempo pode uma história sobre um futuro que passou
continuar a alarmar seus leitores?
Há aspectos do romance que certamente incitam o crítico
moderno a ser condescendente. Não apenas a suposta advertência contida no livro
estava completamente equivocada no seu intervalo de tempo (não houve, até aqui,
uma terceira guerra mundial ou uma revolução ocidental e os sistemas
totalitaristas são hoje menos, e não mais, comuns do que quarenta anos atrás),
mas as fraquezas literárias do romance podem ser vistas com mais clareza agora.
Se 1984 é um romance acessível, isso se deve em parte à lucidez da escrita de
Orwell. Mas isso se deve também à falta de sutileza de sua caracterização e a
uma trama muito simples.
Esta
última pode ser brevemente resumida. O romance se passa no ano de 1984 em
Londres (“Pista de pouso número 1”), na oceânia, uma superpotência controlada
pelo restritivo “Partido” e comandada por seu líder, o grande irmão. Dentro
desse estado não existe lei e há apenas uma regra: a obediência absoluta em
ação e pensamento. A sociedade da oceânia é repartida hierarquicamente entre o
núcleo do partido, o mais privilegiado, um partido externo subserviente, e uma
massa indistinta de “proletas”. O herói, Winston Smith, é um membro do partido
externo que trabalha no ministério da verdade (isto é, da mentira) como
falsificador de registros.
Apesar da pressão extraordinária para se conformar
ao sistema, Winston secretamente reage contra ele. É abordado por outra oficial
secundária, Julia, que reconhece nele um espírito afim. Encorajados pelo amor,
eles pedem a um burocrata de alto escalão do núcleo do partido que os coloque
em contato com uma força de oposição chamada de confraria, supostamente
liderada pelo arqui-inimigo do grande irmão, à maneira de Trotski, Emmanuel
Goldstein. O estímulo que recebem de O’Brien, porém, revela-se uma manobra
traiçoeira. Eles são presos e separados. Ambos sucumbem a interrogatórios e
traem um ao outro. Libertado antes de sua liquidação final, Winston descobre
que aprendeu a amar o Grande Irmão.
Como
entretenimento, o romance funciona bem, em certo nível. Mas tem limitações
enquanto arte. Falta desenvolvimento à narrativa, o diálogo é por vezes fraco e
maioria das pessoas é bidimensional, existindo apenas para explicar uma opinião
política ou para atingir de raspão um tipo existente no mundo real. Entre as
figuras secundárias no romance, uma mulher que canta enquanto estende roupas
nos alegra e somos assombrados pela imagem lúgubre da mãe há muito desaparecida
de Winston. Mas os conhecidos do herói do partido externo – o estupidamente
animado Parsons, ou o fanático Syme – são meras caricaturas de ativistas
políticos; enquanto a maior parte dos proletas, com seus agás não aspirados e
clichês de cockneys atrapalhados, parece saída de um exemplar da revista Punch[1] anterior à guerra. O Sr. Charrington, o
antiquário que aluga um quarto para ninho de amor de Winston, e que se revela
um policial do pensamento disfarçado, é extraído de uma centena de romances de
suspense baratos.
Dos três personagens principais,
apenas o sinistro O’Brien é uma construção intelectual: não chega a ser um ser-humano
de carne e osso, mas a imagem sombria e definitiva do totalitarismo. Winston e
Julia são mais substanciais. Aspectos de Winston são encontrados nos romances
anteriores de Orwell. Ele é um solitário e um perdedor, um membro sem
expectativas da baixa classe-média alta, cheio de uma raiva impotente contra
aqueles que controlam sua vida. Ficamos deprimidos com a situação difícil de
Winston e, quando ele é elevado pelo amor e pelo compromisso político, torcemos
pelo seu bem-estar. No entanto, ele nunca supera a sua própria autocomiseração,
e é difícil sentirmos a queda desse sujeito pouco atraente como uma tragédia.
Julia
é uma criação mais agradável e simpática. Talvez ela contenha algo da primeira
esposa de Orwell, Eileen, que morreu em 1945. Julia certamente tem uma solidez
e um toque de humor que faltam ao resto. O maior alívio é descobrir, quando
estamos a ponto de sermos sufocados pelo atoleiro de desalento da oceânia, que
a política é absolutamente entediante para Júlia:
“outra coisa em que não estou
interessada é na próxima geração, meu querido. Só estou interessada em nós.”
“Você só é rebelde da cintura para
baixo”, disse ele.
Ela achou aquela frase
brilhantemente inteligente e envolveu-o nos braços, delicada.
No
entanto, Julia contém uma contradição. Do mesmo modo que é a personagem mais
cativante do livro, ela também é a menos apropriada. Ao contrário do moroso
Winston, ela é um espírito livre:
Para ela, a vida era uma coisa
muito simples. Você fica querendo se divertir e “eles”, ou seja, o partido, faz
de tudo para evitar que você se divirta. Você faz de tudo para infringir as
regras.
Ficamos
gratos por Julia existir. Mas somos levados a imaginar como esse ideal
fantasioso de um garoto de escola particular, um ideal de feminilidade
descomplicada, saudável, solar, poderia de algum modo sobreviver à propaganda
enlouquecedora do partido. Ou ainda, se ela conseguia sobreviver, por que não
outros? Winston (“o último homem da Europa”) até faz sentido como uma relíquia
da antiga era, mas Julia parece ser a prova de que os métodos da nova era não
funcionam. No entanto, um tema do livro é que esses métodos são inevitavelmente
eficazes. Nos próprios termos do romance, Julia parece um anacronismo: seu caso
de amor clandestino pertence a um país sob ocupação, o reino de Odete, e não a
um país totalmente controlado.
Julia
(com toda sua inconsistência) inspira vida ao romance; mas a sua presença mal e
mal sustentaria um conto. Se não houvesse nada no romance além dos personagens
e da narrativa, ele dificilmente seria lido hoje, exceto com uma curiosidade.
Há, de fato, muito mais. O que faz do romance uma obra-prima da escrita
política – o equivalente moderno, como corretamente apontou Bernard Crick, do Leviatã de Thomas Hobbes – é a textura
extraordinária do pano de fundo. Disfarçado de ficção de horror cômica, 1984 é
na verdade um ensaio de não ficção sobre o poder maligno. Ele funciona para
nós, analisando e atacando o sistema político, da mesma maneira que o livro
herético de Emmanuel Goldstein funciona para Winston:
Em certo sentido (o livro) não lhe
dizia nada de novo, o que era parte do fascínio. Dizia o que ele teria dito, se
tivesse a capacidade de organizar seus pensamentos dispersos. Era o produto de
uma mente semelhante à sua, porém muitíssimo mais poderosa, mais sistemática,
menos amedrontada. Os melhores livros, compreendeu, são aqueles que lhe dizem o
que você já sabe.
Tal
como em outras passagens de Orwell, o falso e conivente amadorismo do estilo do
autor nos tranquiliza com o entendimento de que ele não apenas está certo, mas
também que está dizendo o que sempre pensamos mas nunca fomos capazes de
formular em palavras.
É
difícil reconhecer 1984 como sátira. Alguns o enxergaram como um ataque ao
stalinismo ou ao totalitarismo em geral, ou as tendências diretivas (na época
do governo trabalhista) do socialismo de estado britânico. Outros o
interpretaram como uma investida contra as pretensões e o iliberalismo dos
intelectuais de esquerda ocidentais. Outros, ainda, explicaram-no como uma
febril alucinação advinda da tuberculose, um libelo contra a escola
preparatória ou (o que deve ser a mesma coisa) um delírio sadomasoquista. O
romance provavelmente contém elementos disso tudo. No entanto, é mais que
apenas um ataque satírico, e muito mais que o produto de uma imaginação febril.
Apesar de fazer uma espécie de advertência, não é uma profecia (o que Orwell
sabia, tanto quanto qualquer um, ser impossível e sem sentido). Ele não está
também muito preocupado com eventos contemporâneos. É um livro sobre o presente
contínuo: uma atualização da condição humana. O que mais importa é que ele nos
lembra de muitas coisas nas quais normalmente evitamos pensar.
O
livro choca onde é mais certeiro. Ficamos indiferentes às descrições
embaraçosas dos encontros de Winston com os proletas - o que parece dizer mais
sobre as próprias dificuldades de classe do autor do que sobre o apartheid
social num mundo real ou ameaçado. Mas a descrição de um sistema baseado no
desvio ideológico e na manipulação psicológica imediatamente nos afeta. A malversação
da razão, à maneira de sonho, toca nosso nervo mais sensível. Não é nenhum
acidente, na verdade, que, das muitas palavras e conceitos de 1984 que se
encontram agora em uso comum por pessoas que nunca leram o livro, a maior parte
se relaciona ao poder do estado de distorcer a realidade. No âmago da percepção
do romancista está o duplipensar, definido como “o poder de sustentar duas
crenças contraditórias na mente simultaneamente, aceitando as duas”. Como
muitos aforismos de Orwell, esse parece absurdo a primeira vista e depois se
torna um aspecto da vida política cotidiana.
Em
O zero e infinito (Darkness at noon), de Arthur Koestler,
um romance anterior que também explorou os limites teóricos do totalitarismo, o
autor mostrava a aniquilação moral produzida por uma ideologia na qual ao fim
era permitido justificar quaisquer meios. A inovação de Orwell foi abolir o
fim. Enquanto outras ideologias se justificaram em termos de um objetivo
futuro, o socing, a doutrina do
partido da oceânia, não tem uma meta. Como O’Brien explica a Winston, “só nos
interessa o poder em si. Nem riqueza, nem luxo, nem vida longa, nem felicidade:
só o poder pelo poder, poder puro”. Mas poder para quê? A resposta de O’Brien
nos diz o que já sabemos sobre a opressão em toda a parte: “O objetivo da
perseguição é a perseguição. O objetivo da tortura é a tortura. O objetivo do
poder é o poder”. A oceânia é uma sociedade estática movida por um equilíbrio
do sofrimento. Diz O’Brien: “Se você quer formar uma imagem do futuro, imagine
uma bota pisoteando um rosto humano – para sempre”.
1984
toma muito emprestado de A revolução dos
gerentes, de James Burnham, cuja imagem de um mundo dividido em três
grandes unidades, cada uma governada por uma elite autoeleita, é refletida na Teoria e prática do coletivismo oligárquico,
de Goldstein, e na divisão do mundo nas três superpotências de Oceânia, Eurásia
e Lestásia, perpetuamente em guerra entre si. Mas também há muito,
indiretamente, de Sigmund Freud. A provação da sociedade de Oceânia, na qual
tudo é feito coletivamente e na qual, no entanto, todos permanecem sós, é a negação
do erótico. É isso que conflagra os sentimentos dominantes de “medo, ódio,
adução e triunfo orgiástico”. A histeria sexual é deliberadamente usada para
fermentar uma aversão sádica aos inimigos imaginados e para estimular um amor
masoquista e despersonalizado em relação ao Grande Irmão.
Ninguém,
nem o cético Winston, está imune. A emoção de massa, nos lembra repetidamente o
autor, é quase irresistível. O conceito dos “Dois minutos de ódio” é uma das
invenções mais famosas de 1984. O autor mostra seu herói no meio dessa obsessão
organizada, incapaz de se impedir de participar. Winston consegue transformar o
“Um êxtase horrendo de medo e sentimento de vingança” que “parecia circular
pela platéia inteira como uma corrente elétrica” em ódio direcionado à garota
sentada atrás dele (que mais tarde descobrimos ser Julia). “alucinações
vívidas, belas, passavam-lhe pela mente. Haveria de golpeá-la até a morte com
um cassetete de borracha (...) Haveria de violentá-la e no momento do clímax
cortaria sua garganta.” Por quê? Porque “era jovem e bela e assexuada, porque
queria ir para a cama com ela e nunca o faria”. Tal ódio particular, esclarece
Orwell, é o propósito do puritanismo de Oceânia. A felicidade sexual é a maior
ameaça ao sistema e o preceito de Julia (“O que você faz ou diz não importa: o
importante são os sentimentos”) é muito mais perigoso do que as dúvidas
intelectuais de Winston. “Aboliremos o orgasmo”, diz O’Brien, com sua habitual
aptidão de ir diretamente ao cerne das coisas. “Nossos neurologistas já estão
trabalhando nisso.”
O
equilíbrio psíquico entre a angústia privada e aceitação da crueldade oficial
em 1984 não antecipou o futuro tanto quanto ajudou a dar forma ao modo como
outros – incluindo os sobreviventes – iriam descrever o totalitarismo. Obras de
Alexander Soljenítsin (Um dia na vida de
Ivan Denisovich e O primeiro círculo, por exemplo) exibem claramente a
marca do conceito de Orwell de um mal estável, sem finalidade, dentro do qual
vítimas e perseguidores estão trancados mutuamente. É o relato da plasticidade
da razão de 1984, porém, que teve impacto mais intenso. O horror completo do
livro começa quando fica evidente que todos na Oceânia, mesmo os membros do
cínico porém fanático núcleo do partido, estão sendo irracionais. Orwell sem
dúvida estava pensando na tentativa de Stalin de fazer as leis da genética
concordarem com o marxismo-leninismo, quando apresentou o Grande Irmão como o
mestre do Universo:
“Que
são as estrelas?”, disse O’Brien com indiferença. “pontos de fogo a alguns quilômetros de nós.
Poderíamos tocá-las, se quiséssemos, ou apagá-las. A terra é o centro do
universo. O sol e as estrelas giram em torno dela. (...) Para certos fins,
naturalmente, isso não é exato. Quando navegamos no oceano, ou quando prevemos
um eclipse, muitas vezes achamos mais conveniente supor que a terra gira em
torno do sol e que as estrelas estão a milhões de quilômetros de distância. Mas
e daí? As estrelas podem estar próximas ou distantes, segundo as nossas
necessidades. Você acha que nossos matemáticos não são capazes de fazer isso?
Já se esqueceu do duplipensamento?”
Isso é loucura, evidentemente. Mas a quem cabe determinar
o que é loucura e o que é sanidade numa sociedade em que todos, incluindo os
que controlam o pensamento, aprendem a acreditar que dois e dois podem ser
cinco? Orwell nos lembra o quanto nossa aceitação do conhecimento objetivo é
volúvel, e quão incerto é nosso domínio dom passado.
Primo
Levi – que sobreviveu a Auschwwitz para tornar-se o melhor escritor sobre o
holocausto – descreveu em os afogados e
os sobreviventes (The drowned and the saved) como Hitler contaminou a moral
de seus subordinados ao negar-lhes o acesso à verdade. Levi conclui que “a
história completa do breve ‘Reich milenar’ pode ser relida como uma guerra
contra a memória, uma falsificação da realidade...”. a guerra incessante da
oceânia contra a memória – na qual todo fragmento de prova que entre em
conflito com a mais recente linha oficial é sistematicamente destruído e uma
pista falsa é colocada em seu lugar – é uma das invenções mais engenhosas a
aterrorizantes do romance.
Outra
invenção é o assassinato da linguagem. A história feita com isenção é uma
artéria essencial da liberdade, talvez a mais essencial, e 1984 pode ser visto
como um diploma de erudição histórica. Uma segunda artéria é a pureza
linguística. A linguagem é testemunho: ela contém camadas geológicas de eventos
do passado e valores fora de moda. Orwell estava fazendo uma observação
relevante tanto para o comportamento de burocratas insignificantes como para
ditadores quando notou a avidez com que aqueles que evitam a verdade afastam-se
assustados de palavras conhecidas e a substituem com suas próprias. Na oceânia,
o partido criou uma linguagem sanitizada, a Novafala, para assumir o lugar do
inglês tradicional e suas associações desconfortáveis. Esse esperanto
ideológico é composto por palavras curtas e apocopadas “que provocam um mínimo
de eco na mente daquele que fala o idioma”, e que por fim torna impossível a
construção de pensamentos heréticos. Orwell dá exemplos da Novafala no mundo
real: Nazi, Gestapo, Comintern, Agitprop.
Há muitos outros exemplos. Por conseguinte, Levi nota como, na Alemanha de
Hitler, expressões como “solução final”, “tratamento especial”, “unidades de
emprego imediato” disfarçavam uma realidade apavorante. Poderíamos acrescentar
nossos próprios exemplos da era do terror nuclear: overkill,[2] o
verbo “to nuke”,[3] o
semijocoso guerra nas estrelas.
Duplipensamento, Novafala,
criminterrupção (a faculdade de “capacidade de estacar,
como por instinto, no limiar de todo pensamento perigoso (...) Em suma, criminterrupção significa burrice
protetora”) são firmes e eternos em qualquer estado autoritário ou
totalitarista, o que ajuda a explicar porque o romance, distribuído
secretamente, tem sido apreciado com tanto entusiasmo no Leste Europeu. Ao
mesmo tempo, os termos também se referem a aspectos de qualquer birô,
corporação ou partido político numa democracia, para não dizer de qualquer
profissão dominada pelo uso de jargões ou disciplinas acadêmicas de orientação
ortodoxa. Eles são previsões apenas no sentido de que qualquer polêmica prevê
uma consequência nefasta se não prestarmos atenção à sua injunção.
Todavia,
1984, com sua data muito específica, tem sim um ponto de referência histórico.
Não é por acaso que Orwell chama a ideologia do partido de Socing, e a apresenta como uma perversão do socialismo inglês.
Alguns enxergaram isso como uma acusação ao governo trabalhista de Clement
Attle. De fato, Orwell, que continuou a se ver como um socialista democrata e
como um defensor do partido trabalhista, não estava muito interessado na
política veloz de meados da década de 1940, de modo que passou grande parte do
período de gestação e escrita do romance (interrompido por uma grande temporada
no hospital com tuberculose) longe da fofoca política de Londres, na casa de
campo na ilha de jura.
No
entanto, o romance pode ser visto – como seu predecessor, A revolução dos bichos – como uma contribuição ao debate que se
travava dentro dos círculos socialistas. Tal como A revolução dos bichos, o livro não antecipa controvérsias futuras mas
retorna às do pré-guerra. A experiência política mais importante da vida de
Orwell (descrita em Homenagem à Catalunha)
foi a guerra civil espanhola, na qual o autor foi ferido enquanto lutava pela
milícia revolucionária POUM (Partido Obrero de
Unificación Marxista). Orwell retornou da Espanha amargamente hostil em relação
ao comunismo comandado por Moscou, cuja influência continuava difusa na intelligentsia progressista britânica.
Ele ficou menos surpreso do que muitos membros da esquerda com o pacto
nazi-soviético de agosto de 1939 (que teve sequência na invasão alemã na Rússia
em 1941, que levou Stalin à guerra ao lado dos aliados, e depois no esfriamento
das relações entre aliados e soviéticos, que fez novamente da Rússia um inimigo
em potencial do ocidente praticamente tão logo a guerra terminou). O cinismo e
impermanência das grandes alianças de poder é uma parte essencial de 1984.
A
Oceânia não é, em nenhum sentido, uma sociedade socialista. Pelo contrário. Um
exemplo fundamental do duplipensamento
é que “o partido rejeita e avilta cada um dos princípios originalmente
defendidos pelo movimento socialista, e trata de fazê-lo em nome mesmo do
socialismo”, Logo, a Oceânia não pode ser entendida como um argumento a favor
do fracasso do socialismo. A questão não é a realização das promessas
socialistas, mas sua rejeição e distorção. Alguns podem ouvir ecos de O caminho da servidão, de Friedrich Von
Hayek, no relato de Goldstein de como “em cada variante do socialismo surgida a
partir de cerca de 1900, o objetivo de instalar a liberdade e a igualdade foi
sendo abandonado cada vez mais abertamente”. No entanto, Orwell não é menos
crítico em relação aos antissocialistas. Nos anos de 1940, diz Goldstein,
“todas as principais correntes de pensamento político eram autoritárias. (...)
Todas as novas teorias políticas, seja lá como se autodenominassem, reeditavam
as ideias de hierarquia e regimentação”. Se pista de pouso número 1 é uma
versão da Londres do período de austeridade (como a interessante adaptação para
o cinema de Michael Radford sugere), então dificilmente há a intenção de se
isolar o socialismo trabalhista para uma crítica particular. De fato, Goldstein
também deixa claro que os sistemas das outras superpotências, Eurásia e
Lestásia, são praticamente idênticos.
O
ataque de Orwell não é direcionado ao socialismo, mas a pessoas crédulas ou egoístas
que se dizem socialistas, e a algumas de suas ilusões. Uma ilusão – que ainda é
parte da retórica da plataforma – é a de que, quaisquer que sejam os obstáculos
e contratempos que apareçam no caminho, a classe trabalhadora irá
inevitavelmente triunfar. Orwell inverte essa ideia. Na Oceânia, a liberdade
relativa das pessoas da classe trabalhadora não passa de um sintoma do desprezo
a elas direcionado. “Nada a temer do lado dos proletários”, declara Goldstein. Pode-se
conceder a eles liberdade intelectual, acrescenta (com um chute na virilha das
pretensões liberais e socialistas), “porque carecem de intelecto”.
No
entanto, os proletas ocupam um lugar importante no romance. Se há esperança,
reflete Winston, ela lhes pertence. Há esperança? A mensagem na superfície do
romance parece ser que não há nenhuma. A oceânia é uma sociedade além do totalitarismo. Mesmo em Auschwitz
ou no Gulag, uma comunidade qualquer poderia continuar existindo e o heroísmo
era possível. Mas na Oceânia, o heroísmo é vazio porque não há ninguém para
salvar. A esperança pisca brevemente e então se extingue: a tentativa de
Winston de preservar sua identidade é um mero clamor ao vento. A resistência física
ao terrorismo do partido significa causar o próprio fracasso. Orwell sublinha o
argumento de Koestler em O zero e o infinito
de que lutar contra a opressão com os métodos do opressor é uma capitulação
moral. Orwell usa O’Brien, enquanto este aparentemente testa a decisão de
Winston de atuar como co-conspirador, para aprisionar Winston num compromisso
monstruoso;
“Se, por exemplo, jogar ácido sulfúrico
no rosto de uma criança for uma ação que de alguma forma atenda a nossos
interesses, será capaz de executá-la?”
“Sim.”
Mais
tarde, O’Brien, o interrogador, pergunta a Winston:
“E você se considera moralmente
superior a nós, com nossas mentiras e nossa crueldade?”
Tudo
de que ele precisa é colocar uma fita da conversa anterior para validar seu
argumento.
Mesmo
com tudo isso, porém, 1984 está longe de ser um livro desesperador. Como um
quebra-cabeça intelectual, o romance é quase impermeável: todas as respostas ou
objeções fáceis são espertamente antecipadas e bloqueadas. Mas o mundo grotesco
que retrata é imaginário. Não há razão para interpretar a escuridão da visão
literária de Orwell como uma negação de qualquer alternativa no mundo real. O romance,
de fato, pode ser visto como uma descrição das forças que ameaçam a liberdade e
da necessidade de se resistir a elas. A maior parte dessas forças pode ser
resumida numa simples palavra: mentiras. O autor oferece uma escolha política –
entre a proteção da verdade e um resvalo na falsidade oportunista para o
benefício dos governantes e exploração dos governados, nos quais reside o
sentimento genuíno e a esperança última.
O
romance, portanto, é sobretudo subversivo, um protesto contra as artimanhas dos
governos. É uma saraivada contra o autoritarismo sobre toda a individualidade,
uma polêmica contra toda ortodoxia, uma rajada anarquista contra todo
conformista incondicional. “É intolerável para nós”, diz o funesto O’Brien, “a existência,
em qualquer parte do mundo, de um pensamento incorreto, por mais secreto e
impotente que seja.” 1984 é um grande romance e um grande tratado por causa da
clareza de seu chamado, e irá resistir porque sua mensagem é permanente: os
pensamentos incorretos são a essência da liberdade.
[1] Revista Britânica de humor
publicada de 1841 a 2002. (N. T.)
[2] Uso da força
excessiva para se atingir um objetivo. O termo tornou-se comum durante o
período da guerra fria, referindo-se à corrida armamentista nuclear entre os
Estados unidos e a União Soviética. Ambos construíram arsenais capazes de
destruir os dois países diversas vezes. (N.T.)
[3] Verbo que tem
origem no termo “nuclear”. Significa “lançar bomba atômica”. (N.T.)