Martin Seymour-Smith |
A
distopia é exatamente o oposto da utopia. A distopia de George Orwell é,
portanto, um lugar onde só acontecem coisas horríveis. O planejamento de 1984
foi feito em 1943 e teria o nome de O Último
Homem da Europa. Não foi, portanto, uma amarga e alucinada reação ao seu
colapso final, como resultado da tuberculose nos pulmões que o matou em 1950,
antes de ele completar 50 anos. O trabalho é de proporções swiftianas e
transcende o desespero pessoal. Retrata a deplorável vida individual dominada
por um Estado imaginário, reminiscente da União Soviética, no futuro. Demonstra
que sob o impiedoso socialismo a individualidade não é diminuída, mas
totalmente destruída.
Orwell, sempre gratificantemente confuso, mantém sua
generosidade e humildade. De qualquer forma, terminou o romance sob severas
condições de saúde, cujos sintomas ele via com extraordinário distanciamento
clínico. Mesmo assim, ao contrário do que muita gente pensa, o livro não é a vingança
profética de um moribundo. Ao contrário: é satírico, mas cheio de esperanças;
uma evocação do que poderia ter acontecido. Representava a visão de Orwell de
tudo o que ele considerava detestável, mas pretendia ser um alerta, e não a afirmação,
de um Estado do futuro.
A influência de 1984 foi enorme. Tanta, que muita gente
chegou a dizer que o livro “impediu o que foi profetizado”. O livro sempre foi
um best-seller e já foi adaptado para
o rádio, o teatro, a TV e o cinema. Isso deve ter feito muitas pessoas influentes
repensar suas atitudes, o que talvez não acontecesse se o livro não houvesse
sido escrito. Big Brother e outros
termos de 1984 entraram para a linguagem universal, e a história, além de
satirizar a pureza e fraude de Stalin,
antecipa o quase exato desenvolvimento paralelo da tirania da correção política dos nossos tempos – um
fenômeno tão horrível, que ninguém admite ser politicamente correto. Felizmente, trata-se de um fenômeno que
ainda não tomou conta de tudo, pois o que faz é uma rendição final à
desumanização do processo. A princípio até mesmo críticos polidos e
inteligentes resistiram a 1984. “Fantasticamente irrelevante!”, escreveu o
capaz e útil escocês David Daiches, que dedicou a maior parte de sua carreira à
extrema ortodoxia. De qualquer forma, como sublinhou o mais astuto e ousado
crítico norte-americano, Irwing Howe, o livro estava fadado a encontrar resistência
porque teria sido muito melhor “não tocar nesse assunto”.
Orwell nasceu em 1903 como Erick Arthur Blair, em
Bengala, onde seu pai trabalhava no governo da Índia. Estudou na exclusiva
escola de Eton, que ainda não conseguiu acabar com a sua exclusividade e a sua devoção
aos castigos corporais. Lá, além de ser açoitado, comportou-se sempre como um
jovem arredio e avesso a turmas. Não conseguiu uma bolsa de estudos para a
universidade e começou sua vida adulta como membro da Imperial Força Policial
da Índia, em Burma. Mais tarde, foi diretor de uma escola e jornalista. Quando jovem,
descreveu a si mesmo como um anarquista
conservador, mas durante os anos 30 se tornou socialista. Orwell tem sido
reivindicado pela esquerda e, por causa da sua sátira à União Soviética, A Revolução dos Bichos (Animal Farm), pela
direita. Embora fosse, sem dúvida, um
homem de esquerda, considerando suas atitudes de modo geral – pacifista,
anticapitalista, envergonhado por ter nascido numa família de classe média e disposto a dividir os
valores simples da classe operária -, transformou-se, em essência, num
anarquista conservador que odiava os políticos.
Sobretudo, era um escritor e passou muito tempo
procurando explicitamente um modo de manter suas ideias humanistas de reforma
politica sem perder sua independência. Não precisaria ter se preocupado, mas,
se não reconhecesse a necessidade de tal conflito, não teria sido o escritor
que foi. Sua mudança de atitude, não de todo atípica para um britânico de
esquerda do seu tempo, não pode ser ilustrada melhor em qualquer outro texto do
que em dois comentários que deixou registrado.
O primeiro é de 1943:
“O mundo medonho que os milionários
americanos e seus lacaios ingleses pretendem nos impor começa a tomar forma. O povo
britânico, a massa, não quer tal mundo... Sentimentalmente a maioria do povo
deste país preferiria estar ligada a Rússia, e não aos Estados Unidos.”
O segundo é de 1947:
“Se você tivesse de escolher entre a
Rússia e os Estados Unidos, o que escolheria...? já não somos suficientemente
fortes para ficar sozinhos. E, se falharmos na esperança de uma união ocidental
(ninguém deveria chamar a comunidade europeia de união), seremos obrigados a
longo prazo a subordinar nossa política a um ou outro Grande Poder. E, apesar
de tudo que se diz e está em voga, todos sabemos secretamente que deveríamos
escolher os Estados Unidos”
Isso, entretanto, não significava o que alguns
anticomunistas entenderam, ou seja, que Orwell tornara-se um admirador da
América do Norte. Por exemplo, enquanto viveu, foi um inimigo da bomba atômica.
“Ou renunciamos a ela ou ela nos destruirá.”
Orwell largou tudo para ir à Espanha lutar contra Franco
na Guerra Civil Espanhola. Foi durante esse conflito, do qual saiu ferido, que
notou pela primeira vez os métodos stalinistas que viria a satirizar em A Revolução dos Bichos. Por volta do fim
da guerra, retraiu-se para o que muitos consideram a posição britânica mais
comum: o desconfortável distanciamento de todos os partidos e desprezo às
manifestações totalitárias. Votava no partido trabalhista, mas diz-se confidencialmente
que fazia isso por achar que era o que fazia a classe operária. Uma de suas,
até certo ponto cômicas e inofensivas, fraquezas era a sua ânsia por
compartilhar o que julgava serem os hábitos das classes desfavorecidas. Estava mais
comprometido com a decência do que com qualquer partido político.
A Revolução dos
Bichos o tornou conhecido, mas 1984 lhe granjeou fama mundial. Isso,
conforme Orwell reconheceu implicitamente, deveu-se muito a outra distopia bem
menos conhecida no ocidente: Nós, de
Zamiantin. Entretanto quando pensamos num rival de 1984, não é Nós que nos vem imediatamente à memória,
mas Admirável Mundo Novo (1933), do
romancista britânico Aldous Huxley, que passou a maior parte de sua vida nos
Estados Unidos, onde acabou morrendo.
A intenção do livro de Huxley era ser profético. E, mais
como profecia do que como um trabalho imaginativo, acabou por obter sucesso. Nele,
o autor expressou principalmente seu desgosto com os rumos do seu tempo em
direção à superficialidade mental e à auto-indulgência sensual. Ele também
deveu muito – em seu caso, quase tudo – à fonte russa de Orwell: Nós, em russo My, de autoria do grande dissidente russo Evgeni Zamiantin (1884-1937),
que nasceu em Lebedian, às margens do rio Don e morreu exilado em Paris. Por alguma
razão desnecessária e conhecida apenas por ele mesmo – provavelmente vaidade,
um mal que atinge a maioria dos escritores -, Huxley se negou a reconhecer o
livro de Zamiantin e declarou jamais tê-lo lido. É óbvio que o leu, e nenhum
crítico sério jamais duvidou disso.
Nós, escrito em
1920, apareceu numa pobre versão inglesa em 1924 e numa versão tcheca, em 1926,
pior ainda. Os comunistas não quiseram saber do livro, embora o autor fosse
famoso e vivesse muito infeliz na Rússia. Outra tradução apareceu em inglês em
1970, mas essa também não alcançara êxito. Precisamos desesperadamente de uma
boa tradução de Nós. Se isso já
houvesse ocorrido, eu teria de incluir o livro do russo nesta seleção, pois ele
é muito superior a 1984 em termos de imaginação. Como as coisas estão, é
suficiente chamar a atenção para ele como a maior distopia já escrita nos
tempos modernos e sublinhar que o livro de Orwell, embora esteja longe de ser
um plágio, não poderia existir sem ele.
Gleb Struve, um crítico norte-americano, chamou a atenção
de Orwell, em 1944, para Nós. O
escritor inglês lhe disse: “estou interessado nesse tipo de livro e venho
tomando notas para escrever um que talvez saia mais cedo ou mais tarde.”
Provavelmente, àquela altura, nem tivesse em mente as anotações para O Último Homem da Europa. Os biógrafos e
críticos de Orwell tiveram pouquíssima consideração para com Zamiantin, e
talvez isso se deva ao fato de nenhum deles ter grandes conhecimentos da
literatura russa.
Se é verdade que Orwell não plagiou Nós, também é verdade que ele não o transcendeu ou melhorou. E nem
jamais declarou isso. Ele simplesmente entendeu o sutil, poético e majestoso
painel descrito por Zamiantin de como a sexualidade funcionaria sob um estado
robótico – o que, de certo modo, começava a acontecer sob muitos temas
conformistas na União Soviética – e o transformou num caso totalmente
britânico. Mas não o igualou e nem tentou fazê-lo. A principal personagem
feminina de Orwell, Julia, é insípida comparada com a incrível E-330, de Zamiantin.
O fato de Nós está por trás de 1984 não diminui o livro de Orwell. Algumas músicas de
Mozart estão obviamente por trás da Mozartiniana
de Tchaikovski, e o próprio SHAKESPEARE usou frequentemente ideias de trabalhos
alheios em suas peças. Mas o romance de Orwell – embora não profético e nem
escrito com essa intenção – é talvez mais um fenômeno político, no melhor
sentido, do que literário. Nós está
certamente entre os cento e poucos melhores romances de todos os tempos. Já 1984
é um mito na Inglaterra e um inspirado comentário sobre o fato de que a fina
crosta do etonismo, que Orwell
conhecia intimamente, estava para rachar. O regime de Eton nos tempos de Orwell
era de um terror ritualístico, mas um terror para cavalheiros: um terror
disfarçado em benevolência em benefício dos estudantes. Era fascista na medida
em que sua teologia (melhor chamá-la assim) baseava-se no medo – o tipo de medo
que encontramos no imperialismo de Kipling, por quem Orwell tinha grande
interesse. O regime da escola era fascinante, mas também repelente, para
Orwell. Ele o via abrindo caminho para algo mais sinistro: algo não-inglês. Essencialmente, trata-se de uma
sátira sobre a necessidade não reconhecida, não compreendida, viciosamente não
inteligente, de certas pessoas de exercer o poder. Talvez, algo a ver com os
poucos críticos e os muitos triviais obedientes da visão de PARETO?
Nesse sentido o personagem O’Brien, de Orwell, diz ao herói comum Winston Smith:
“O partido busca o poder inteiramente em seu próprio
interesse. Não estamos interessados no bem dos outros. Estamos interessados
apenas no poder. Você vai entender em breve o que é o poder puro... Os nazistas
alemães e os comunistas russos chegaram próximos de nós com seus métodos;
contudo, jamais tiveram a coragem de reconhecer seus próprios motivos... O
poder não é um meio, é um fim... A finalidade da perseguição é a própria
perseguição...”
Que o mundo – ou parte dele – sinta-se hoje em dia menos
horrorizado com tais passagens se deve em boa parte a Orwell. Que tenha sido
inspirado por Zamiantin, que escreveu tudo o que ele escreveu e mais alguma
coisa, não é importante, desde que lhe demos crédito. O que permanece espantoso
é que 1984 continua sendo estudado em
lugares como Eton. Isso é fantástico,
mas não fantasticamente irrelevante.
Smith, Martin Seymour.
Os cem livros que mais influenciaram a humanidade: A história do pensamento dos
tempos antigos à atualidade. 6 ed. Rio de Janeiro: Difel, 2004.
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