10/14/2014

Ser de esquerda, segundo Deleuze.

Entrevistadora: O que é ser de Esquerda para você?
Deleuze: Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de esquerda. Não se espantem com isso. O governo francês, que deveria ser de esquerda, não é um governo de esquerda. Não que não existam diferenças nos governos. o que pode existir é um governo favorável a algumas exigências da Esquerda, mas não existe governo de Esquerda, pois a Esquerda não tem nada a ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de Esquerda ou definir a Esquerda, eu o faria de duas formas. Primeiro é uma questão de percepção. A questão de percepção é a seguinte: O que é não ser de Esquerda? Não ser de Esquerda é como um endereço postal, parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer para que esta situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar. o que é muita loucura, como fazer para que isso dure? As pessoas pensam:
Os chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais? E ser de Esquerda é o contrário, é perceber. Dizem que os japoneses percebem assim, não veem como nós, percebem de outra forma. Primeiro, eles percebem o contorno, começam pelo mundo, depois o continente... europeu, por exemplo, depois a França, até chegarmos a rue de Bizerte, e a mim. É um fenômeno de percepção, primeiro percebe-se o horizonte.

Entrevistadora: Mas os japoneses não são um povo de Esquerda...
Deleuze: Mas isso não importa. Estão á Esquerda, em seu endereço postal estão á Esquerda. Primeiro vê no horizonte e sabe que não pode durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome, isso não pode mais durar, não é possível esta injustiça absoluta, não em nome da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de Esquerda é começar pela ponta, começar pela ponta e considerar que estes problemas devem ser resolvidos. Não é simplesmente achar que a natalidade deve ser reduzida, pois é uma maneira de preservar os privilégios europeus. Deve-se encontrar os arranjos, os agenciamentos mundiais que farão com que o terceiro mundo... Ser de Esquerda é saber que os problemas do terceiro mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. É de fato uma questão de percepção, não tem nada a ver com a boa alma. Para mim ser de Esquerda é isso. E, segundo, ser de Esquerda é ser ou Devir minoria, não deixar o Devir minoritário. A Esquerda nunca é maioria enquanto Esquerda. Por uma razão muito simples: A maioria é algo que supõe, até quando se vota, não é só a maior quantidade que vota para tal coisa, mas a existência de um padrão. No ocidente, o padrão de qualquer maioria é: Homem, macho, cidadão. Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar este padrão, ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é ninguém. É um padrão vazio. O homem macho, etc... As mulheres vão contar e intervir nessa maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a este padrão. Mas, ao lado disso, o que há? Há todos o devires que são minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza, elas têm um Devir Mulher, os homens também o têm. (...), as crianças também têm um Devir criança, não são crianças por natureza. Todos os Devires são minoritários. Só os homens não têm Devir homem.

Entrevistadora: Só os homens não têm Devir homem.
Deleuze: Não, pois é um padrão majoritário, é vazio. O homem macho, adulto, não tem Devir. Pode Devir mulher e vira minoria. A Esquerda é o conjunto de processos de Devir Minoritário. Eu afirmo: A maioria é ninguém e a minoria é todo mundo e que é ai que acontece o fenômeno do Devir. Por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação á democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições, mas são coisas bem conhecidas.